sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Reflexões provocadas por "A sabedoria dos povos indígenas" (II)

Continuação do dia 19 de agosto
Após a "intromissão" da postagem alusiva ao Dia do Psicólogo na sequência das postagens, seguem mais algumas reflexões provocadas pela postagem intitulada A sabedoria dos povos indígenas.
"Voltando ao relato dos índios, o que você vai ler a seguir é uma síntese preciosa de um modo de ser e de viver: 'Quando criança eu sabia ser generoso; esqueci esta graça ao me tornar civilizado. Eu vivia a vida natural, quando agora vivo a artificial. Qualquer pedrinha colorida tinha valor para mim, toda árvore era um objeto de reverência.'".
Extraído do texto de Fernando Mansur, que o extraiu do livro Pés nus sobre a terra sagrada – um impressionante autorretrato dos índios norte-americanos, compilado por T. C. McLuhan, o parágrafo acima é o início do primeiro parágrafo de um capítulo intitulado Ohiyesa, o conhecido escritor, fala aqui do seu passado. Parágrafo que é complementado pelo trecho reproduzido no parágrafo abaixo.
"Agora reverencio, juntamente com o homem branco, uma paisagem pintada cujo valor é calculado em dólares! Assim o índio é reconstruído, da mesma forma que as rochas naturais são reduzidas a pó e transformadas em blocos de cimento que servirão para levantar os muros da moderna sociedade."
Quem foi Ohiyesa? Foi um indígena norte-americano de nome Charles Alexander Eastman (Sioux: Ohiyesa, [1858 – 1939]), que tendo vivido seus primeiros quinze anos de vida entre os Sioux, tornou-se autor literário, médico e político reformista.
Quando criança, convivendo com indígenas, Ohiyesa sabia ser generoso; Quando adulto (segundo ele), não sabia mais, pois o processo de civilização o fez esquecer a graça da generosidade. Esquecimento que leva-me a trazer para estas reflexões uma frase que encontrei no topo da capa do DVD de um filme intitulado Instinto: "Nada é mais selvagem que a civilização". Esquecimento, facilmente, explicável se considerarmos que generosidade é algo incompatível com uma moderna sociedade em que as pessoas precisam levantar muros, cada vez mais altos, para protegerem-se, cada vez mais, umas das outras. E ao falar na generosidade da criança, Ohiyesa faz-me trazer para estas reflexões uma história contada por outro indígena: o sábio pensador Ailton Krenak. Onde a encontrei? No livro A vida não é útil.
"Tem uma história antiga do povo Krenak que diz que o Criador deixou uma humanidade aqui na Terra e foi para algum outro lugar do cosmos. Um dia ele se lembrou de nós e disse: 'Ah, eu deixei minhas criaturas lá na Terra, preciso ver o que eles se tornaram'. Mas, enquanto fazia esse movimento incrível de vir até aqui nos ver, ele pensou: 'E se eles tiverem se tornado algo pior do que eu posso conceber? O melhor seria não ter um encontro pessoal com eles. Vou fazer o seguinte: vou me transformar em uma outra criatura para ver as minhas criaturas'. Ele se transformou num tamanduá e saiu pela campina. Em certo momento, um grupo de caçadores, munidos de bordunas e laços, se encostaram numa paisagem, avançaram sobre ele, o prenderam e levaram pro acampamento com a intenção óbvia de comê-lo. Duas crianças gêmeas, que observavam a cena, evitaram que ele fosse levado para a fogueira. Ele então se revelou para os meninos, que, antes que os adultos descobrissem, acobertaram a sua fuga. Do alto de uma colina, os meninos gritaram: 'Avô, o que você achou da gente, de suas criaturas?'. E Deus respondeu: 'Mais ou menos'."
Ou seja, se não houvesse a generosidade das duas crianças gêmeas, as criaturas adultas teriam comido o criador. Sim, com o transcorrer do tempo, o que ocorre nesta dimensão é a criatura ir esquecendo como é o criador. Esquecimento sobre o qual nos fala uma curta história intitulada A irmã mais velha pergunta publicada em uma antiga coluna jornalística do escritor Paulo Coelho.
A irmã mais velha pergunta
Quando seu irmão nasceu, Sa-chi Gabriel insistia com os pais para ficar sozinha com o bebê. Temendo que, como muitas crianças de 4 anos, estivesse enciumada e quisesse maltratá-lo, eles não deixaram.
Mas Sa-chi não dava mostra de ciúmes. E como sempre tratava o bebê com carinho, os pais resolveram fazer um teste. Deixaram Sa-chi com o recém-nascido, e ficaram observando seu comportamento através da porta semi-aberta.
Encantada por ter seu desejo satisfeito, a pequena Sa-chi aproximou-se do berço na ponta dos pés, curvou-se até o bebê e disse: "Me diz como Deus é! Eu já estou esquecendo!"
Esquecer coisas que não deveriam, eis um grande problema dos adultos! E ao falar em esquecimento, o velho método das recordações sucessivas faz-me lembrar da seguinte afirmação de Antoine de Saint-Exupéry em sua obra-prima intitulada O Pequeno Príncipe: "Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. Pena que sejam poucas as que se lembram disso."
E ao lamentar tal esquecimento, Saint-Exupéry faz-me lembrar de uma postagem publicada há sete anos (28 de agosto de 2015). O título? Se o mundo tem solução, é através da criança. Afinal, se a solução para o mundo é através da criança, o esquecimento de ter sido criança é algo que, simplesmente, inviabiliza encontrar solução para o mundo. Por concordar com o título da referida postagem, já publiquei neste blog várias postagens falando sobre crianças e algumas coisas que jamais deveriam negligenciadas nas interações entre elas e os adultos (aqueles seres que esqueceram que algum dia foram crianças). O próximo parágrafo apresenta uma relação de tais postagens. E antes dele, segue a repetição das três frases que intitulam a penúltima ilustração apresentada na faixa direita deste blog: Leia quem quiser... Compreenda quem puder... Aproveite quem souber.
Prosseguindo com estas reflexões, segue uma afirmação de Vladimir Maiakovski que, no meu entender, tem tudo a ver com o modo como as crianças são tratadas neste insano mundo em que sobrevivemos. "Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração".
"Cada um ao nascer", ou seja, cada criança, "traz sua dose de amor". Sendo assim, será que faz sentido atribuir o ressecamento do solo do coração ao que lhe é inculcado em termos do valor atribuído "aos empregos, ao dinheiro", ao estímulo a uma insana competitividade da qual resulta uma sociedade estupidamente desigual na qual uns têm e outros não têm; e onde os que têm ainda são estimulados a tripudiar sobre os que não têm? Para ilustrar o que acabo de dizer, segue o endereço (https://www.youtube.com/watch?v=2nO1wekYB2A) onde pode ser visto um antigo comercial da Tesourinha Mickey e Minnie (Mundial) exibido em 1992 (faz tempo, hein!). Um comercial em que uma criança repete freneticamente o seguinte "mantra": "eu tenho, você não tem". Será que tudo isso, "nos resseca o solo do coração"?
Tentando encerrar estas intermináveis reflexões, segue uma recomendação de Gibran Khalil Gibran extraída do capítulo em que ele fala sobre os filhos em sua obra-prima O Profeta. "Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados." O capítulo completo pode (seria melhor dizer: deve?) ser lido na postagem E uma mulher que carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos" (07.06.2012).
Sim, como diz Antoine de Saint-Exupéry, "As crianças têm de ter muita tolerância com os adultos.". Até porque, tolerância com os adultos é algo que parece-me estar incluído na solicitação feita pelo maior mestre que já passou por esta dimensão no momento em que, segundo o evangelho atribuído a Lucas, ele pronunciou algo mais ou menos assim: Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem. Solicitação feita nos derradeiros momentos de sua passagem por esta dimensão, ou seja, após já ter feito aos adultos a seguinte recomendação: "Deixai vir a mim os pequeninos, e não os impeçais, porque deles é o reino de Deus."
Após todas as reflexões apresentadas acima, no meu entender, a melhor maneira de encerrar esta postagem é repetindo a afirmação que intitula aquela publicada em 28 de agosto de 2015, e já citada nesta: Se o mundo tem solução, é através da criança. E deixar com vocês a tarefa de refletir sobre tudo o que é dito acima.
Termina na próxima quinta-feira 

Nenhum comentário: