Prosseguindo com a prática de sequenciar
postagens que apresentem alguma relação entre elas, após uma em que um
premiado arquiteto e urbanista brasileiro diz que "O
que educa uma criança é o caminho da escola, nem tanto a escola em si.",
segue uma em que uma arquiteta e urbanista espanhola diz que "Criança
precisa caminhar pela cidade para ser cidadã". Assinada por Júlia Barbon,
a reportagem-entrevista que originou a postagem foi publicada na edição de 20
de junho de 2017 do jornal Folha de
S.Paulo.
Criança precisa caminhar pela cidade para ser cidadã
Hoje crianças são transportadas 'de uma caixa para outra' e não
vivenciam nem aprendem com as ruas, afirma urbanista
Lugar de criança
também é na rua. Inserir essa ideia na cabeça dos brasileiros tem sido a missão
da espanhola Irene Quintáns, 38, nos últimos anos. Moradora de São Paulo desde 2011, a arquiteta e
urbanista defende que os próprios pés sejam o meio de transporte dos alunos até
a escola, substituindo os carros. E argumenta que dá, sim, para fazer isso na
capital paulista. Hoje consultora freelancer, Quintáns já trabalhou como
técnica nas prefeituras de Barcelona e de São Paulo. Veio ao país para
acompanhar o marido brasileiro. Há quatro anos, criou o site Red Ocara, em que
compila projetos de mobilidade infantil pela América Latina. É mãe de dois
meninos, de sete e quatro anos.
Para a entrevista,
escolheu uma cafeteria na região central da cidade com mesas na rua – "uma
mistura do público com o privado", destaca com seu sotaque espanhol.
Folha – Por que defender que a criança ande até a escola?
Irene Quintáns – O caminho para a escola é um trajeto que
todas elas fazem, e fazem todos os dias. É o seu contato mais próximo com a
cidade. Hoje em dia a rotina das crianças é o que eu chamo de caixinhas. Está
na caixinha que é a casa, entra na caixinha com rodas que é o carro ou a van,
vai para a escola, que é a caixa maior, e geralmente só tem dez minutos para
lanche e dez para brincar. Aí ela volta para casa e não sai, porque é perigoso
ou por falta de opção. Nessa rotina ele só teve dez minutos livre, o que traz
muitos problemas.
Quais?
O primeiro é o
sedentarismo, que traz sobrepeso. A criança que é sedentária e tem má
alimentação pode ter diabetes. Ela também não recebe luz solar, que é
importante para o sistema imunológico. Então só caminhar já ajuda muito na
parte da saúde. Um estudo feito na Dinamarca viu ainda que as crianças que iam
a pé ou de bicicleta para a escola tinham mais concentração para desenvolver
atividades complexas.
E ainda tem a ver com
preconceito. Uma criança que não anda não convive com moradores de rua, com
situações e pessoas de cores diferentes. Um dia eu caminhava com o meu filho e
ele deu um sorrisão para um morador de rua e falou 'bom dia!'. Como você vai
fazer esse tipo de construção social se você é transportado de uma caixa para
outra?
Como a criança pode ser um ator social na cidade?
É superimportante
tratar o tema do pertencimento. Se ela não se sente pertencente ao seu bairro,
à cidade, como é que você vai ensinar coisas do tipo 'não se joga lixo na rua'?
Através do tablet?
Uma coisa que eu não
gosto é que as pessoas falam: a criança é o cidadão do futuro. Não, ela é um
cidadão de hoje, de ontem e de amanhã.
Muitas vezes as
pessoas não levam o tema da criança à sério, então eu trago provas científicas.
Os ganhadores do prêmio Nobel de medicina em 2014 viram que, para se orientar,
o cérebro humano absorve referências e cria uma grade mental. Se você não anda
na cidade, como vai absorvê-las? Em oficinas, quando peço que crianças desenhem
o caminho de casa para a escola, é muito clara a diferença. As que vão
motorizadas só conseguem desenhar rua, semáforo e carro, já as que vão a pé
desenham outros seres humanos, elementos naturais.
O que a criança vê que o adulto não vê?
Elas veem beleza e
obstáculos em todo lugar. Um degrauzinho na porta de uma casa para a criança é
uma oportunidade para pular, sentar, parar um pouco. Por exemplo, aquelas
muretas com elementos pontudos ou com espinha de cristo, aquela planta
horrível. Pensa na altura da criança. Se ela vê uma plantinha que machuca, não
pode se aproximar, mas se é uma flor, provavelmente ela vai falar 'olha, mãe!'.
Às vezes nem é nada tão poético. Choveu muito e um rio se forma na rua. Você
adulto, não vai querer pisar nessa água, já as crianças pedem: 'Posso pular?'.
De carro não dá, tem que ser a pé.
A partir de qual idade é recomendável que elas saiam a pé?
Quando a criança é
pequena, de 5 a
7 anos, aparecem as experiências como o Carona a Pé, do colégio Equipe [projeto
em que grupos de crianças vão à escola acompanhados por dois adultos]. Mas meu
filho mais velho, por exemplo, acha muito chato. Crianças maiores, de uns 8 a 10 anos, podem ir com os
amigos que moram perto.
Além disso, esses
projetos de ônibus a pé incentivam que a própria cidade acolha as crianças, com
sinalização e até engajando os comércios no caminho, para que ajudem se a
criança precisar de algo. Se os pais não largam mão do carro, também não dá
para organizar caronas. Você sempre pode pensar em soluções: a pé, de
bicicleta, de transporte público e até de carro.
Quais outras cidades com realidades parecidas com a de SP
podem servir de exemplo?
Na América Latina, a
referência é Bogotá, na Colômbia. Que eu saiba, na região, foi a primeira a
implantar o ônibus a pé. Foi em 2010, na periferia barra pesada, onde moram
guerrilheiros, com circunstâncias bem difíceis. Se deu certo lá, dá certo em
São Paulo. Tem também um em Barranquilha. Isso falando de políticas públicas.
Lá eles construíram um BRT, só que naquela avenida tinham 22 escolas, e muitos
alunos iam a pé. Vendo isso, eles fizeram tipo um Carona a Pé, inclusive
capacitando os professores. São poucos, mas são projetos muito bons. São
política pública quase transversal, que toca várias áreas. A Colômbia é muito
avançada em temas urbanos.
Como driblar o medo?
"O conceito de medo,
segurança, depende muito. Quando fiz um estudo numa escola no Jardim Ângela
[zona sul] pelo IVM [Instituto Cidade em Movimento], perto da estrada do M'Boi
Mirim, as crianças diziam que o maior medo delas quando andavam era de ser
atropelado. Veja só, no bairro considerado o mais perigoso do mundo pela ONU em
1996, o medo é de ser atropelado. É muito fácil falar: 'A criança não pode ir a
pé porque é inseguro'. Vamos ver o que contribui para essa sensação. Às vezes
os medos são múltiplos, e tem um deles que a engenharia de trânsito pode
melhorar facilmente.
A gestão Doria abriu para carros, em alguns domingos, ruas
que ficavam abertas só para lazer. Que impacto isso tem?
As ruas abertas trazem
um elemento muito importante, que é a proximidade, e são uma pequeníssima
contribuição para balancear os espaços da cidade. Existem, em vários países,
projetos de multas cidadãs. As crianças saem para as ruas com umas multas e, se
um carro está estacionado na calçada, por exemplo, ela põe o papel, que diz: 'Você
estacionou em um dos poucos lugares onde eu posso estar, por favor não faça
mais. Assinado, Pedrinho, de 8 anos'. Ou seja, as ruas abertas são um desses
poucos lugares onde elas podem estar. Quando são fechadas é feio, bem feio.
Temos a Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012.
Vamos chorar juntas?
[risos]
Em que fase de implementação dela estamos?
A lei não tem
implementação, mas tem que dar sustento a intervenções e, de fato, ela está aí
engavetada. O ponto principal dela é que o pedestre é prioridade absoluta, e o
pedestre não é prioridade em nenhuma política pública nesse país. Zero. Ainda
assim eu acho a lei supercorajosa. Sabe o que ele fala? Que a distribuição do
espaço urbano tem que ser proporcional à distribuição modal do transporte. Isso
significa que se só 30% das viagens de São Paulo são feitas de carro, só 30% do
espaço urbano teria que estar reservado para carro. Já imaginou?
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Será que vale a pena
refletir sobre o que é dito por Irene Quintáns na reportagem-entrevista?
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