sábado, 16 de março de 2024

Meras coincidências

"Pense nisso: O que fazemos conosco agora é o mais importante para o amanhã. Se não fizermos nada para mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar, amanhã parecerá ontem, exceto pela data".
  (Moshé Feldenkrais [1904 – 1984], engenheiro fundador do Método Feldenkrais)
Além da afirmação que epigrafa esta postagem, a articulação parlamentar para apresentação e aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa a blindagem de parlamentares em investigações e operações policiais fez-me lembrar também de um artigo do brilhante jornalista Jânio de Freitas (1932) publicado em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo na edição de 16 de abril de 2000 sob o título "Meras coincidências".
Meras coincidências
O homem enfia a mão no bolso e dele tira o revólver prateado.
O presidente enfia a mão no bolso e dele tira a caneta dourada.
O homem sabe o que o seu ato trará para o outro homem, que há pouco saiu do trabalho.
O presidente sabe o que o seu ato trará para os outros homens, que há pouco saíram do trabalho.
O homem aponta o revólver e toma do outro homem o pedaço substancial de salário com que manteria a família até o fim do mês.
O presidente usa a caneta para assinar uma medida provisória e toma aos outros homens um pedaço substancial dos seus salários presentes e futuros, retirando-lhes a correção devida e que neles manteria o valor necessário ao sustento das famílias.
O homem guarda o revólver, entra em um beco meio escuro, e está tranquilo, indiferente ao seu ato.
O presidente guarda a caneta, passa ao salão todo iluminado, e está tranquilo, indiferente ao seu ato.
O Supremo Tribunal Federal começou a julgar o pedido, por representação dos que vivem de salário, das correções monetárias que foram retiradas, algumas em parte, outras totalmente, pelo Plano Bresser, pelo Plano Verão (de Maílson da Nóbrega), pelo Plano Collor (de Antônio Kandir e outros) e pelo Plano Collor 2 (idem.).
Total da reposição reivindicada: 218%.
Total admitido pelos três ministros que já votaram: 69%.
Pelos três que concordaram – Moreira Alves, Ilmar Galvão e Nelson Jobim – e pelo valor tão cabalisticamente esvaziado em que concordaram, não há por que descrer de um acordo de parte do STF com o governo. O governo do presidente que a cada dia saca da caneta para assinar várias medidas provisórias é, claro, contra o pagamento das correções.
O homem estava tranquilo pela certeza de que o outro homem nem à polícia iria, pela consciência da condição de indefeso.
O presidente estava tranquilo pela certeza de que os outros homens, mesmo que recorressem à Justiça, não perderiam a condição de indefesos.
*************
Publicado no longínquo ano 2000, o artigo de Jânio de Feitas compara um ato praticado por um homem armado com um praticado pelo presidente deste país naquela época. Ambos atos maléficos para alguém, embora de formas extremamente diferentes. O praticado pelo homem armado prejudica um homem e seus familiares por um mês. O do presidente prejudica todos os componentes de uma infinidade de famílias pelo restante da vida de cada um deles. No seu entender, qual dos dois atos é mais maléfico? Para ajudá-la (o) a avaliar, segue uma conhecida indagação de Bertolt Brecht: "O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?".
"O homem armado estava tranquilo pela certeza de que o outro homem nem à polícia iria, pela consciência da condição de indefeso, indiferente ao seu ato. O presidente estava tranquilo pela certeza de que os outros homens, mesmo que recorressem à Justiça, não perderiam a condição de indefesos, indiferente ao seu ato.", diz Jânio de Freitas. 
Manter as pessoas conscientes da condição de indefesas, eis a primeira condição para manter a tranquilidade de homens armados e de políticos mal-intencionados, sejam eles, presidentes, senadores ou deputados federais. Tornarem-se inalcançáveis por investigações e operações policiais, eis, no meu entender, a segunda, e definitiva, condição. Condição essa que parlamentares que integram esse que é o pior congresso da história deste país estão buscando alcançar por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que já recebeu a denominação de PEC da Blindagem.
PEC que, se aprovada, tornará os parlamentares deste país uma casta inatingível que pode fazer o que quiser, o que quiser mesmo, sem que nada aconteça com ela.  Uma casta que pode falar o que quiser, ameaçar pessoas de morte, cometer crimes no mandato e mesmo fora do mandato, crimes comuns mesmo, sem que alguém possa chegar perto dela. Uma PEC que torna os parlamentares imunes a tudo, pois mesmo que a justiça mande a polícia investigar um deputado ou um senador, ela só poderá iniciar uma investigação se a mesas diretora da Câmara ou do Senado autorizar. Uma PEC que deveria provocar as três seguintes indagações. Que tipo de gente quer uma lei que a torne imune à justiça? Que tipo de bandido não almeja ter imunidade total? Que tipo de parlamentar almeja ter imunidade total? Nossa! Acho que acabei de enxergar mais uma mera coincidência
O tempo passou, e hoje, vinte e quatro anos após a publicação de "Meras coincidências", olhando a sinistra PEC da  Blindagem à luz da afirmação que epigrafa esta postagem, enxergo um texto intitulado Meras decorrências. Será que faz sentido afirmar que existir neste momento um congresso que é o pior da história deste país é decorrência de nossa atuação ao longo de décadas? É decorrência de termos feito nada para mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar? Será que  faz sentido afirmar que a elaboração da sinistra PEC é decorrência natural do fato de estarmos diante do pior congresso que este país já teve? Um congresso com um número muito grande de investigados, de golpistas, de negacionistas etc.
Decorrências! "Os problemas de hoje provêm das soluções de ontem.", eis uma afirmação lapidar de Peter Senge em A Quinta Disciplina, um dos melhores livros que já li. Sim, neste percurso que a gente chama de vida tudo o que nele ocorre hoje é decorrência do que foi feito até ontem, assim como o que vier a ocorrer amanhã (o futuro mais próximo) será decorrência do que for feito até hoje e o que vier a ocorrer em futuros distantes será decorrência do que for feito até lá.
A afirmação de Feldenkrais diz que "Se não fizermos nada para mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar, amanhã parecerá ontem, exceto pela data", ou seja, nada mudará. Porém, a coisa não é bem assim; é pior ainda. Por mais estranho que possa parecer, a afirmação de Feldenkrais chega a ser otimista, pois, pior do que ter uma situação ruim mantida é ter sua ruindade aumentada. Sim, não há nada tão ruim que não possa ser piorado.
E aí, até quando vamos continuar fazendo nada para mudar nossa atitude e nosso modo de atuar? Até quando prosseguiremos contribuindo para piorar a qualidade do congresso deste país? Afinal, em conformidade com o regime político vigente neste país, é o presidente da Câmara que, até mesmo acima do presidente do país, define o que pode ou não pode ser feito. Sobre a sinistra PEC da Blindagem, o que disse ele? "Se os líderes garantirem que têm votos suficientes eu coloco para tramitar.". Ou seja, independentemente do teor da PEC, o presidente da Câmara coloca-a para tramitar, bastando apenas que haja uma quantidade suficiente de parlamentares apoiando-a, independentemente também de qual seja a qualificação moral dos que a apoiem. O próprio (ou seria o impróprio?) presidente da Câmara, um dos que a apoiam, está entre os parlamentares investigados. Parlamentares investigados propondo emendas à constituição para que parlamentares fiquem imunes a investigações. Proposta cuja tramitação depende de alguém que também é investigado. Neste país, política é algo realmente surreal.
Armamentistas, ruralistas e evangélicos formam um conjunto de bancadas que se convencionou denominar BBB - em alusão às palavras bala, boi e bíblia. Um BBB no qual o eliminado será você. É apenas uma questão de tempo. Como diz Bertolt Brecht, em "Aos que virão depois de nós": "É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver. Mas acreditem: é por acaso. Nada do que eu faço me dá o direito de comer quando eu tenho fome. Por acaso estou sendo poupado (Se a minha sorte me deixa, estou perdido.).
Dito isto, encerrando esta já longa postagem, resta-me solicitar-lhe uma reflexão sobre as palavras de Feldenkrais usadas na epígrafe e as de Bertolt Brecht usadas no epílogo desta postagem, por enxergar nelas a capacidade de ajudar-lhe a enxergar a necessidade de mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar. Compreendido?

sexta-feira, 8 de março de 2024

Dia Internacional da Mulher - 2024

"Afinal, metade da humanidade é mulher. E, a outra metade, filha de mulher."
  (Frei Betto, Tribuna da Imprensa, 7 de março de 1996, Jesus e as mulheres)
No longínquo ano 2005, trigésimo primeiro ano da minha atuação como analista de sistemas na Petrobras, a chegada do dia 08 de março despertou em mim o desejo de enviar para determinadas colegas de trabalho uma mensagem alusiva ao Dia Internacional da Mulher. Composta de apenas três frases e enviada para vinte destinatárias, a mensagem parabenizava-as por aquele dia e dizia que sua presença contribuía para tornar mais agradável o ambiente de trabalho. Nos anos seguintes, a lista de destinatárias foi aumentando e os textos foram sendo mais elaborados. Enviadas por e-mail, as mensagens chegavam a provocar algumas respostas contendo agradecimento pela lembrança da referida data, até que em 2009, ano em que a quinta mensagem foi enviada, (usando uma linguagem que eu costumava ouvir na área contábil), surgiu o primeiro de três fatos relevantes. Qual foi o fato? O recebimento de uma resposta que começa assim:
"Obrigada por vir tornando o Dia da Mulher cada vez mais aguardado!

Acredita que eu já havia pensado: 'será que esse ano o Guedes vai lembrar de nós???'"

Três anos depois, em 2012, recebi da mesma destinatária uma resposta que continha a seguinte frase:
Sei que já te disse (escrevi) isso, mas não me canso de repetir: aguardo sua mensagem neste dia com bastante ansiedade e alegria!!!.
No ano seguinte uma resposta da mesma destinatária dizia:
Recebi algumas mensagens, mas a sua é sempre a mais esperada!!!
Desde então, não recebi mais mensagens da referida destinatária, porém considerando válida uma conhecida frase de Antoine de Saint-Exupéry que diz que - "Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas." -, eu passara a me considerar 'eternamente' responsável pela difícil tarefa de elaborar um texto alusivo ao Dia Internacional da Mulher. Sim, uma difícil tarefa, pois, no meu entender, não é suficiente escrever, é preciso escrever algo que esteja à altura das homenageadas.
A partir de 2012, ao perceber que no blog (criado em fevereiro de 2011) a mensagem é lida por mulheres e por homens, resolvi enviá-la também para a ala masculina da minha (?) lista de destinatários. E já que a mensagem passaria a ficar disponível para mulheres e para homens a elaboração passou a ser feita sob um enfoque diferente.
Um enfoque cuja intenção é elaborar uma mensagem capaz de estimular as mulheres a jamais desistirem de sua luta histórica para terem seus direitos equiparados aos dos homens e fazer os homens enxergarem seu equívoco histórico: acharem-se superiores às mulheres. Equívoco que, no meu entender, pode ser facilmente desfeito recorrendo, mais uma vez, a uma frase de Antoine de Saint-Exupéry. Qual é a frase? "Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. Pena que sejam poucas as que se lembram disso". Como tal frase pode desfazer o referido equívoco? Usando-a para elaborar a seguinte paráfrase: "Todos os homens grandes foram um dia hóspedes do ventre de uma mulher. Pena que sejam poucos os que se lembram disso". 
Será que faz sentido seres cuja existência, nesta dimensão, depende de um "estágio" de noves meses no ventre de seres de outro gênero considerarem-se superiores aos seres do gênero que lhe concede o direito à existência? Será que faz sentido homens defenderem que mulheres devem ganhar menos, simplesmente, por poderem engravidar? E já que estamos falando sobre ganhar menos, segue a seguinte indagação. Será que o fato de não ser capaz de perceber que - se sua mãe não tivesse tido o direito de poder engravidar ele não teria nascido - pode ser considerado um sinal de que o indivíduo que defende tal coisa deve ter ganhado menos inteligência? O que você acha?
Mais ou menos inteligência, eis uma questão que faz-me lembrar da seguinte frase de Gerges Najjar Jr: "O único ser mais inteligente que o homem é a mulher. Os que duvidam disto vêm em terceiro lugar". Em que lugar você se coloca nesta classificação? Se o homem fosse mais inteligente teria tratado a mulher de maneira diferente. Teria sido menos arrogante e jamais a teria tratado como um ser inferior a ele. E ao referir-me à forma como o homem trata a mulher, vem-me à mente a seguinte afirmação do escritor norte-americano Jack London (1876-1916): "O homem distingue-se dos outros animais por ser o único que maltrata a sua fêmea". Feita há mais de um século, a afirmação de Jack London, infelizmente, parece a cada dia mais atual. É impressionante o nível de violência contra as mulheres.

Ainda no tema tratamento dado pelos homens às mulheres ao longo do tempo, segue a seguinte sugestão de reflexão. O "8 de março" vai além de simples homenagens e congratulações. Acima de qualquer outra coisa, o Dia Internacional da Mulher deve ser visto como um convite a uma reflexão sobre como os homens têm tem tratado as mulheres ao longo do tempo. Reflexão a ser feita tanto no campo dos convívios afetivo, familiar e social quanto nas questões relacionadas ao mercado de trabalho e a representação feminina em nossas diferentes culturas.

Sim, embora as mulheres adorem receber flores, coisinhas gostosas, perfumes, considero imprescindível ficar bem claro que o Dia Internacional da Mulher foi criado por outros motivos e com outros objetivos. E nesta postagem repleta de lembranças de coisas já ditas em outras, de lembrança em lembrança, vem-me à mente uma afirmação de D. H. Lawrence que já usei em várias das vinte mensagens alusivas ao Dia Internacional da Mulher, por considerar que ela expressa algo que deve estar em nossa mente durante todo o tempo. Qual é a afirmação? "O futuro da humanidade não será decidido pelas relações entre nações, mas pelas relações entre homens e mulheres".
Relações que até hoje foram tremendamente prejudicadas pela desigualdade de direitos existente entre eles e elas. Relações que, portanto, necessitam muitas modificações. Modificações que levem homens e mulheres a enxergarem-se como gêneros complementares e não como sexos opostos e que, enxergando-se assim, finalmente, eles e elas consigam viver em harmonia. Afinal, harmonia é algo imprescindível não só para o sucesso em desfiles de escolas de samba como também para o êxito na passagem por este percurso que a gente chama de vida. E para encerrar esta já longa postagem seguem mais duas recordações de afirmações que considero extremamente significativas. Uma de um homem e uma de uma mulher.
"Concedei-me, Senhor, a serenidade necessidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para modificar as que posso, e sabedoria para distinguir umas das outras.", eis uma solicitação atribuída ao teólogo norte-americano Reinhold Niebuhr (1892 – 1971), que ficou conhecida como Prece da Serenidade.
"Eu não estou aceitando as coisas que eu não posso mudar, estou mudando as coisas que eu não posso aceitar", eis uma afirmação de Angela Davis (1944), professora e filósofa norte-americana.
Enquanto Reinhold Niebuhr solicita ao Senhor serenidade para aceitar a coisas que não pode mudar; Angela Davis afirma que está mudando as coisas que não pode aceitar.
Dito isto, encerro esta postagem alusiva ao Dia Internacional da Mulher dizendo que fico com Angela Davis, pois, no meu entender, a única maneira de se construir uma sociedade sem preconceito de gênero, na qual os direitos das mulheres sejam equiparados aos dos homens, é cada um de nós passar a fazer o mesmo que está fazendo a extraordinária Angela Davis: mudar as coisas que não se pode aceitar.