Após quase
três meses sem publicar alguma postagem, devido à minha atual ocupação como
acompanhante hospitalar da minha esposa que está hospitalizada desde o dia 15
de dezembro, a proximidade da chegada do Dia Internacional da Mulher
levou-me a esforçar-me para encontrar tempo para elaborar uma mensagem alusiva
a essa data que considero extremamente significativa. Afinal, desde a criação
deste blog (em 1º de fevereiro de 2011), jamais deixei de publicar uma postagem
alusiva a tal dia. Aliás, mesmo antes da criação do blog eu me habituara a
enviar, por e-mail, uma mensagem para uma crescente lista composta apenas de
mulheres. Fiz isso de 2005 a 2010 (ano anterior à criação do blog). Ou seja, há
vinte anos publico mensagens alusivas ao Dia Internacional da Mulher.
Feito esse preâmbulo, segue um texto extraído do livro
intitulado "Livre Como Uma Deusa Grega – Na mitologia, o melhor da
humanidade é a mulher" de autoria de Laure De Chantal, formada em Letras
Clássicas pela École Normale Superiéure, Paris. Autora de vários livros sobre a
língua francesa e mitologia. O texto extraído é o capítulo final do livro, apresentado
como CONCLUSÃO e intitulado "A odisseia das mulheres".
A odisseia das mulheres
Quando Ulisses finalmente retorna a seu palácio, as
mulheres correm abraçá-lo, festejam-no e seguram-lhe as mãos, cobrindo-o de
beijos da cabeça aos ombros. E ele chora, pois "seu coração reconhecia
todas elas" (XII, 492ss.).
Ulisses é um homem mulherengo, no sentido que essa
expressão deveria ter sempre: ama as mulheres e, portanto, as respeita, desde a
humilde Euricleia, sua velha ama, até a poderosíssima Atena, totalmente
convicto de que sem elas seria nada ou, mais exatamente, Ninguém. Em grego, o
jogo de palavras é perfeitamente compreensível: sem mêtis, Ulisses é oútis,
ninguém.
Não há heroísmo
sem mulher e não há feminismo sem homem: essa é uma das muitas lições da Odisseia,
uma lição de feminismo e humanidade, a tal ponto que o ensaísta e escritor
Samuel Butler pretendeu demonstrar que a Odisseia só podia ser obra de
uma mulher.
"Conta-me,
Musa, do homem engenhoso, do peregrino que tanto sofreu, que viu e conheceu
tantos homens e cidades: a Odisseia
começa pela vontade de uma deusa e termina graças à diplomacia de outra: "Põe
fim [a essa guerra], filho de Laerte, descendente dos deuses, Ulisses
engenhoso!", pede Atena a Ulisses, que concorda: "À voz de Atena,
Ulisses, com júbilo no coração, obedece: entre os dois partidos é selada a
paz". A invocação inicial é para a musa, a palavra final é de "Atena,
filha de Zeus, que porta a égide" (Odisseia, XXIV, 548). Aos
combates sanguinários e aos heróis ferozes da Ilíada, que começa com a
cólera e termina com a morte, a Odisseia contrapõe a inteligência e o
entendimento; à guerra violenta de Ares sucede a guerra vitoriosa de Atena, ou
seja, a paz.
Nessa
epopeia rumo à civilização, a presença das mulheres é essencial. Sejam elas
imortais, mortais, monstruosas e aterrorizantes como Sila ou as sereias,
feiticeira divina como Circe, enfermiça e benevolente como Euricleia, que é a
primeira a reconhecer Ulisses quando retorna a Ítaca, são as mulheres que fazem
e desfazem o destino do herói. Agir, orientar, aconselhar, transmitir força e
perseverança, fazer a história avançar, possibilitar o futuro, em suma, é o
papel das heroínas e das divindades da Odisseia.
No olho da tempestade, Ulisses está arrimado a sua jangada no mar encapelado,
mar de aço, cinzento e ameaçador, mar que ele enfrenta numa guerra injusta cujo
desfecho já está dado: sozinho contra as ondas sem fim, ele só pode perder. Com
a boca cheia de água e os olhos inundados de vento e lágrimas, Ulisses está
prestes a desistir de tudo, a deixar-se afundar com sua história e seu renome.
Do fundo das águas, Leucótoe vem reconfortar o náufrago e lhe cede sua vela.
Para que pode servir uma vela quando se trata de enfrentar ventos e mares?
Simplesmente para sobreviver, mantendo a esperança, esperança de nadar para
chegar a uma praia, uma praia que talvez seja aquela onde Penélope o aguarda.
O mesmo acontece na maioria das epopeias. Perdidos e
desorientados, "consumindo-se em desespero", os argonautas estão a
ponto de se entregarem à morte num deserto que não conhecem, "sem deixar
nome nem rastro na memória dos homens da Terra, esses heróis bravos entre
todos, sem terem cumprido seu propósito". Do solo árido e desolado da
Líbia, irrompem as heroínas, as divindades do deserto, que lhes reavivam a
coragem: "Vamos, de pé" Para de gemer tanto sobre teus infortúnios e
faze teus companheiros se levantarem!" (Argonáuticas, IV, 1308
ss.). Os argonautas levantam-se e carregam às costas seu navio, cuja proa
mágica e oracular é um presente de Atena, durante dias, até o mar.
As altivas mulheres das epopeias não são mulheres da
sombra, cuja única esperança de realizar o que ambicionam se resume no sucesso
de seus homens: elas não só agem como conduzem a dança e têm sua própria
carreira. Indispensáveis para o desenrolar da história, são "mulheres de
campo", sujeitos da ação e não unicamente objetos de temor ou desejo.
Quando se trata de lutar com o dragão que vigia o velino, é Medeia em pessoa
que enfrenta a fera. A jovem - pois nessa parte de suas aventuras Medeia mal
saiu da infância - conquista a vitória sobre o monstro enorme, de
"mandíbulas mortais", que ela fascina com um olhar, tornando-o tão
inofensivo quanto um animal doméstico. Sem esse combate, sem os filtros que ela
inventa, sem os assassinatos que comete, Jasão não iria longe.
Mais do que qualquer outro personagem, Ulisses representa
na Antiguidade um ideal de humanidade. Ao lado dos heróis belicosos da Íliada
e das múltiplas criaturas selvagens e abomináveis que encontra, Ulisses
simboliza a vitória sobre a selvageria, quer seja exercida pelo ser humano ou
inerente à natureza. Essa humanidade é feita de comedimento, inteligência e do
máximo respeito pelas mulheres. Ao lado de Atena imensa há todas as outras, Circe,
Nausícaa, Calipso e, por fim, Penélope. Ulisses, o "homem ideal", sem
desmedida, sem hýbris, é amigo das mulheres, que trata como iguais a
ele, com franqueza, e não tem problema algum em reconhecer-lhes superioridade,
em suplicar a Atena, Circe ou à princesa Nausícaa, diante da qual se ajoelha:
"Ah, Rainha, tem piedade!", confiando-lhe: "Não há nada melhor
nem mais precioso do que a concordância, no lar, de todos os sentimentos entre
marido e mulher: grande despeito dos invejosos, grande alegria dos amigos,
felicidade perfeita do casal!" (VI, 180ss.). Esse é o ideal do homem ideal
da Odisseia.
Eruditos e letrados da Antiguidade pretendiam que em
Homero estava tudo. Em todo caso, há nele uma bela lição de feminismo e
humanidade - a melhor lição, a que é dada pelo exemplo e transmitida pela
beleza assombrosa das palavras. A mitologia abundante, quer tenha sido
veiculada na poesia, no teatro, nas artes, na Grécia ou em Roma, também soube
favorecer o gênio feminino, mostrando sua densidade, seu poder e sua
diversidade. Seria preciso muito mais do que um único livro para enumerar todas
elas: Cassandra, Dido, a Esfinge, Europa, todas essas orgulhosas mulheres da
mitologia que são precisamente o orgulho da condição feminina.
Os romanos substituíram a primeira tríade capitolina,
feita exclusivamente de divindades masculinas, por uma nova, majoritariamente
feminina: para proteger a cidade, Marte, o deus da guerra, e Quirino, o deus
com a lança, são substituídos por Juno e Minerva ladeando Júpiter. Os deuses do
Panteão, que agrupa as divindades principais, variaram na Antiguidade, porém o
Panteão sempre precisava ser composto de seis deusas e seis deuses: no topo do
Olimpo, as decisões sempre são tomadas igualitariamente. Nós também possuímos
um panteão e, grandes apreciadores de palavras, temos uma para expressar a igualdade
nas instâncias de poder: paridade. Mas, na prática, nosso Panteão abriga
atualmente oitenta homens e seis mulheres; quanto à paridade, não só ela não existe
em lugar algum como é criticada em toda parte.
Os avanços em todas as áreas são tais que as coisas nunca
terão sido melhores antes, e não trocarei minha vida de mulher francesa do
século XXI europeu pela vida de uma grega da Antiguidade, nem mesmo para pedir
um autógrafo a Safo ou a Sócrates. Entretanto, por mais de longe que a
mitologia venha, ela nos convida a avançar, a não nos contentarmos com boas intenções,
a nunca cedermos a uma igualdade barateada e sim a agirmos mais, para que num
dia próximo nosso Panteão seja tão paritário quanto o dos gregos e romanos!
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Após um
texto usado pela autora como CONCLUSÃO para seu livro, segue um trecho extraído
da quarta capa do referido livro para usá-lo na conclusão desta postagem.
"Embora as narrativas das sociedades antigas sejam dominadas pelos homens, a sua mitologia nos mostra o oposto.A mitologia grega não apenas nos oferece figuras femininas poderosas, mas também imbuiu as mais belas forças da civilização com traços femininos. Na mitologia, o melhor da humanidade é a mulher."
"Todas as pessoas grandes foram um dia crianças.
Pena que sejam poucas as que se lembram disso.", diz Antoine de
Saint-Exupéry, autor do livro intitulado "Pequeno Príncipe". O que tal
afirmação tem a ver com esta postagem? Ela oferece a possibilidade de elaborar
a seguinte paráfrase: "Todos os
homens grandes foram um dia hóspedes do ventre de uma mulher. Pena que sejam poucos os que se lembram disso.".
O que essa paráfrase tem a ver com esta postagem? Ela possibilita a validação
da seguinte afirmação: "Na
mitologia, o melhor da humanidade é a mulher.", eu explico.
Entre seres que cedem seu ventre
para dar a vida a um novo ser e seres que, esquecendo que receberam a vida após
terem passado nove meses em um ventre feminino, chegam ao cúmulo de tirarem a
vida de uma mulher quais devem ser considerados o que há de melhor na
humanidade? Em outras palavras: em termos de humanidade, quem deve ser
considerado melhor: quem dá a vida ou quem tira a vida?
Após uma leitura atenta do que é
dito acima, será que faz sentido discordar da afirmação que "o melhor da
humanidade é a mulher"? Será que após concordar faria sentido negar a
outras pessoas a possibilidade de lerem o excelente texto de Laure De Chantal do
qual a afirmação foi extraída? Será que, apesar do que relatei no primeiro
parágrafo da postagem, faria sentido não me empenhar para publicar uma postagem
alusiva ao Dia Internacional da Mulher? Será que conseguirei elaborar
uma postagem intitulada "Reflexões provocadas por 'A odisseia das mulheres'"?
Sei lá...
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