sábado, 8 de março de 2025

Dia Internacional da Mulher - 2025 ou "A odisseia das mulheres"

Após quase três meses sem publicar alguma postagem, devido à minha atual ocupação como acompanhante hospitalar da minha esposa que está hospitalizada desde o dia 15 de dezembro, a proximidade da chegada do Dia Internacional da Mulher levou-me a esforçar-me para encontrar tempo para elaborar uma mensagem alusiva a essa data que considero extremamente significativa. Afinal, desde a criação deste blog (em 1º de fevereiro de 2011), jamais deixei de publicar uma postagem alusiva a tal dia. Aliás, mesmo antes da criação do blog eu me habituara a enviar, por e-mail, uma mensagem para uma crescente lista composta apenas de mulheres. Fiz isso de 2005 a 2010 (ano anterior à criação do blog). Ou seja, há vinte anos publico mensagens alusivas ao Dia Internacional da Mulher.
Feito esse preâmbulo, segue um texto extraído do livro intitulado "Livre Como Uma Deusa Grega – Na mitologia, o melhor da humanidade é a mulher" de autoria de Laure De Chantal, formada em Letras Clássicas pela École Normale Superiéure, Paris. Autora de vários livros sobre a língua francesa e mitologia. O texto extraído é o capítulo final do livro, apresentado como CONCLUSÃO e intitulado "A odisseia das mulheres".
A odisseia das mulheres
Quando Ulisses finalmente retorna a seu palácio, as mulheres correm abraçá-lo, festejam-no e seguram-lhe as mãos, cobrindo-o de beijos da cabeça aos ombros. E ele chora, pois "seu coração reconhecia todas elas" (XII, 492ss.).
Ulisses é um homem mulherengo, no sentido que essa expressão deveria ter sempre: ama as mulheres e, portanto, as respeita, desde a humilde Euricleia, sua velha ama, até a poderosíssima Atena, totalmente convicto de que sem elas seria nada ou, mais exatamente, Ninguém. Em grego, o jogo de palavras é perfeitamente compreensível: sem mêtis, Ulisses é oútis, ninguém.
Não há heroísmo sem mulher e não há feminismo sem homem: essa é uma das muitas lições da Odisseia, uma lição de feminismo e humanidade, a tal ponto que o ensaísta e escritor Samuel Butler pretendeu demonstrar que a Odisseia só podia ser obra de uma mulher.
"Conta-me, Musa, do homem engenhoso, do peregrino que tanto sofreu, que viu e conheceu tantos homens e cidades: a Odisseia começa pela vontade de uma deusa e termina graças à diplomacia de outra: "Põe fim [a essa guerra], filho de Laerte, descendente dos deuses, Ulisses engenhoso!", pede Atena a Ulisses, que concorda: "À voz de Atena, Ulisses, com júbilo no coração, obedece: entre os dois partidos é selada a paz". A invocação inicial é para a musa, a palavra final é de "Atena, filha de Zeus, que porta a égide" (Odisseia, XXIV, 548). Aos combates sanguinários e aos heróis ferozes da Ilíada, que começa com a cólera e termina com a morte, a Odisseia contrapõe a inteligência e o entendimento; à guerra violenta de Ares sucede a guerra vitoriosa de Atena, ou seja, a paz.
Nessa epopeia rumo à civilização, a presença das mulheres é essencial. Sejam elas imortais, mortais, monstruosas e aterrorizantes como Sila ou as sereias, feiticeira divina como Circe, enfermiça e benevolente como Euricleia, que é a primeira a reconhecer Ulisses quando retorna a Ítaca, são as mulheres que fazem e desfazem o destino do herói. Agir, orientar, aconselhar, transmitir força e perseverança, fazer a história avançar, possibilitar o futuro, em suma, é o papel das heroínas e das divindades da Odisseia. No olho da tempestade, Ulisses está arrimado a sua jangada no mar encapelado, mar de aço, cinzento e ameaçador, mar que ele enfrenta numa guerra injusta cujo desfecho já está dado: sozinho contra as ondas sem fim, ele só pode perder. Com a boca cheia de água e os olhos inundados de vento e lágrimas, Ulisses está prestes a desistir de tudo, a deixar-se afundar com sua história e seu renome. Do fundo das águas, Leucótoe vem reconfortar o náufrago e lhe cede sua vela. Para que pode servir uma vela quando se trata de enfrentar ventos e mares? Simplesmente para sobreviver, mantendo a esperança, esperança de nadar para chegar a uma praia, uma praia que talvez seja aquela onde Penélope o aguarda.
O mesmo acontece na maioria das epopeias. Perdidos e desorientados, "consumindo-se em desespero", os argonautas estão a ponto de se entregarem à morte num deserto que não conhecem, "sem deixar nome nem rastro na memória dos homens da Terra, esses heróis bravos entre todos, sem terem cumprido seu propósito". Do solo árido e desolado da Líbia, irrompem as heroínas, as divindades do deserto, que lhes reavivam a coragem: "Vamos, de pé" Para de gemer tanto sobre teus infortúnios e faze teus companheiros se levantarem!" (Argonáuticas, IV, 1308 ss.). Os argonautas levantam-se e carregam às costas seu navio, cuja proa mágica e oracular é um presente de Atena, durante dias, até o mar.
As altivas mulheres das epopeias não são mulheres da sombra, cuja única esperança de realizar o que ambicionam se resume no sucesso de seus homens: elas não só agem como conduzem a dança e têm sua própria carreira. Indispensáveis para o desenrolar da história, são "mulheres de campo", sujeitos da ação e não unicamente objetos de temor ou desejo. Quando se trata de lutar com o dragão que vigia o velino, é Medeia em pessoa que enfrenta a fera. A jovem - pois nessa parte de suas aventuras Medeia mal saiu da infância - conquista a vitória sobre o monstro enorme, de "mandíbulas mortais", que ela fascina com um olhar, tornando-o tão inofensivo quanto um animal doméstico. Sem esse combate, sem os filtros que ela inventa, sem os assassinatos que comete, Jasão não iria longe.
Mais do que qualquer outro personagem, Ulisses representa na Antiguidade um ideal de humanidade. Ao lado dos heróis belicosos da Íliada e das múltiplas criaturas selvagens e abomináveis que encontra, Ulisses simboliza a vitória sobre a selvageria, quer seja exercida pelo ser humano ou inerente à natureza. Essa humanidade é feita de comedimento, inteligência e do máximo respeito pelas mulheres. Ao lado de Atena imensa há todas as outras, Circe, Nausícaa, Calipso e, por fim, Penélope. Ulisses, o "homem ideal", sem desmedida, sem hýbris, é amigo das mulheres, que trata como iguais a ele, com franqueza, e não tem problema algum em reconhecer-lhes superioridade, em suplicar a Atena, Circe ou à princesa Nausícaa, diante da qual se ajoelha: "Ah, Rainha, tem piedade!", confiando-lhe: "Não há nada melhor nem mais precioso do que a concordância, no lar, de todos os sentimentos entre marido e mulher: grande despeito dos invejosos, grande alegria dos amigos, felicidade perfeita do casal!" (VI, 180ss.). Esse é o ideal do homem ideal da Odisseia.  
Eruditos e letrados da Antiguidade pretendiam que em Homero estava tudo. Em todo caso, há nele uma bela lição de feminismo e humanidade - a melhor lição, a que é dada pelo exemplo e transmitida pela beleza assombrosa das palavras. A mitologia abundante, quer tenha sido veiculada na poesia, no teatro, nas artes, na Grécia ou em Roma, também soube favorecer o gênio feminino, mostrando sua densidade, seu poder e sua diversidade. Seria preciso muito mais do que um único livro para enumerar todas elas: Cassandra, Dido, a Esfinge, Europa, todas essas orgulhosas mulheres da mitologia que são precisamente o orgulho da condição feminina.
Os romanos substituíram a primeira tríade capitolina, feita exclusivamente de divindades masculinas, por uma nova, majoritariamente feminina: para proteger a cidade, Marte, o deus da guerra, e Quirino, o deus com a lança, são substituídos por Juno e Minerva ladeando Júpiter. Os deuses do Panteão, que agrupa as divindades principais, variaram na Antiguidade, porém o Panteão sempre precisava ser composto de seis deusas e seis deuses: no topo do Olimpo, as decisões sempre são tomadas igualitariamente. Nós também possuímos um panteão e, grandes apreciadores de palavras, temos uma para expressar a igualdade nas instâncias de poder: paridade. Mas, na prática, nosso Panteão abriga atualmente oitenta homens e seis mulheres; quanto à paridade, não só ela não existe em lugar algum como é criticada em toda parte.
Os avanços em todas as áreas são tais que as coisas nunca terão sido melhores antes, e não trocarei minha vida de mulher francesa do século XXI europeu pela vida de uma grega da Antiguidade, nem mesmo para pedir um autógrafo a Safo ou a Sócrates. Entretanto, por mais de longe que a mitologia venha, ela nos convida a avançar, a não nos contentarmos com boas intenções, a nunca cedermos a uma igualdade barateada e sim a agirmos mais, para que num dia próximo nosso Panteão seja tão paritário quanto o dos gregos e romanos!
*************
Após um texto usado pela autora como CONCLUSÃO para seu livro, segue um trecho extraído da quarta capa do referido livro para usá-lo na conclusão desta postagem.
"Embora as narrativas das sociedades antigas sejam dominadas pelos homens, a sua mitologia nos mostra o oposto.
A mitologia grega não apenas nos oferece figuras femininas poderosas, mas também imbuiu as mais belas forças da civilização com traços femininos. Na mitologia, o melhor da humanidade é a mulher."
"Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. Pena que sejam poucas as que se lembram disso.", diz Antoine de Saint-Exupéry, autor do livro intitulado "Pequeno Príncipe". O que tal afirmação tem a ver com esta postagem? Ela oferece a possibilidade de elaborar a seguinte paráfrase: "Todos os homens grandes foram um dia hóspedes do ventre de uma mulher. Pena que sejam poucos os que se lembram disso.". O que essa paráfrase tem a ver com esta postagem? Ela possibilita a validação da seguinte afirmação: "Na mitologia, o melhor da humanidade é a mulher.", eu explico.
Entre seres que cedem seu ventre para dar a vida a um novo ser e seres que, esquecendo que receberam a vida após terem passado nove meses em um ventre feminino, chegam ao cúmulo de tirarem a vida de uma mulher quais devem ser considerados o que há de melhor na humanidade? Em outras palavras: em termos de humanidade, quem deve ser considerado melhor: quem dá a vida ou quem tira a vida?
Após uma leitura atenta do que é dito acima, será que faz sentido discordar da afirmação que "o melhor da humanidade é a mulher"? Será que após concordar faria sentido negar a outras pessoas a possibilidade de lerem o excelente texto de Laure De Chantal do qual a afirmação foi extraída? Será que, apesar do que relatei no primeiro parágrafo da postagem, faria sentido não me empenhar para publicar uma postagem alusiva ao Dia Internacional da Mulher? Será que conseguirei elaborar uma postagem intitulada "Reflexões provocadas por 'A odisseia das mulheres'"? Sei lá...

Nenhum comentário: