Se a postagem anterior trouxe a primeira das
duas opções apontadas em A criança e a infância como candidatas a sucedê-la, esta traz a segunda. O texto intitulado
Contas sem faz de conta, publicado na
edição de 09 de março de 2014 do jornal O
Estado de S. Paulo, é de autoria de José de Souza Martins, sociólogo, professor
emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros livros, de A Sociologia Como Aventura (Contexto,
2013).
A presença (no topo do espaço intitulado Berçário de ouro que circunscreve o
artigo do sociólogo) de uma menção a uma reportagem publicada seis dias antes
no mesmo jornal, sugere que ela tenha alguma parcela de "culpa" na vontade
do sociólogo redigir seu artigo. Publicada em 03 de março de 2014 tal
reportagem é intitulada Escolas dão aulas de finanças, inglês e
empreendedorismo a partir dos 3 anos e já foi citada neste blog na
postagem A criança e a infância. A menção é reproduzida no parágrafo
abaixo.
Reportagem publicada pelo Estado na
segunda-feira retratou escolas da capital paulista que ensinam "educação
financeira" e "empreendedorismo" a crianças. Antes mesmo de
aprenderem a falar, alunos no berço, a partir de 8 meses de idade, já têm aulas
de inglês.
Contas sem faz de conta
Quando chegarem à idade
de sonhar, como sonharão as gerações de adultos precoces que aprendem finanças
aos 3 anos?
Ainda haverá poetas
quando os primeiros rebentos da escola pós-pedagógica forem soltos da gaiola em
que perderam a infância para fazer cursos de finanças, de inglês onírico e de
empreendedorismo antes que lhes nascessem os primeiros pelos pubianos ou mesmo
os primeiros dentes? Ainda haverá quem possa sentir na alma os versos de Castro
Alves, de Paulo Eiró, de Álvares de Azevedo, de Fagundes Varela, de Francisca
Júlia da Silva, de Cora Coralina, de Paulo Bomfim, de Carlos Rodrigues Brandão,
de Dalila Teles Veras, de Bento Prado Júnior, de Hilda Hilst, de tantos e
muitos de uma era de inflação de lirismo antieconômico?
Ainda haverá quem seja
capaz de sentir na alma a Bachiana nº 5,
de Villa-Lobos, sem perder-se no caminho calculando quantas notas e quantos
acordes tem? Quanto tempo o compositor "gastou" para compô-la?
Quantos cruzeiros teria ganho se, em vez disso, tivesse montado uma fábrica de
parafusos ou de goma de mascar? Oh, boy, I don't know! Quantas músicas deixaram
de compor os compositores do barroco, perdendo tempo com aqueles volteios
inúteis, com reiterados retornos sobre o mesmo, fazendo hora para ir daqui até
ali? Muitas? Poucas? Nenhuma? Mas a música não é a expressão do espírito, do
imaterial, do eterno que há no homem?
João, o grande
Guimarães Rosa, se tivesse nascido neste mundo novo, teria encontrado Diadorim
nos ermos e gerais, escondendo-se do mistério do duplo que somos? Teria
desvendado o mistério do coisa-ruim que se esconde nas veredas do sertão?
Desvendar para desvendar-se? Dá pra ser criança sem mistério? Dá pra ser adulto
sem ter sido criança?
Ainda haverá
adolescentes capazes de se comunicar em português e, por cima, com sotaque e
vocabulário nheengatu como é próprio da língua portuguesa falada no Brasil, a
nossa língua? Maybe. Na tiguera da língua que restar, da memória que ainda
houver, o que será possível falar? Poderão saborear uma pitanga e dizer chupei
uma pitanga, comer um punhado de pipocas e dizer comi pipoca, chupar uma
jabuticaba e dizer chupei jabuticaba, chupar maracujá e dizer chupei maracujá,
se sua fala já tiver perdido as palavras que as nações tupi nos ensinaram?
Terão perdido até o português tão nosso, vencido pelo tupi, com aquele suave accent do predomínio das vogais que
encheram de música a calma lentidão de nosso falar? Poderão nossos filhos
pronunciar essas palavras e sentir o sabor dessas pequenas coisas que fazem o
nosso nós? Será possível sentir o sabor de algo que não se pode dizer, apreciar
sem conceito para pensar?
Quando chegarem à
idade de sonhar, como sonharão as gerações pré-fabricadas de adultos precoces,
que aprendem finanças aos 3 anos de idade, que ouvem a língua inglesa e
aprendem a dizer mummy enquanto dormem
o sono dos inocentes, antes mesmo de balbuciar mamãe em português? Que troca é
essa? Sonharão? Sonharão em português ou em inglês onírico de prisioneiros do
sonho alheio, o da mercantilização da inocência em nome de um futuro medido
pelos trocados bem calculados de uma existência para o lucro e a eficiência? Se
não sonharam na infância, como sonharão quando adultos? Sonharão colorido, como
é próprio das crianças, ou sonharão em preto e branco, como é próprio de quem
não viu as cores da vida?
É possível começar a
viver quando já não se sabe sonhar, errar, cair, fazer xixi na cama, ter
dúvidas e incertezas quanto ao que comer, ao que pensar, com que brinquedo
brincar? E o que vai acontecer quando esses adultos da falsa infância da
educação de robô descobrirem que o mundo mercantilizado já não fala inglês, mas
espanhol, francês, alemão, japonês, chinês? Ou, por que não, português? Ou já
não fala nada, porque as máquinas falam pelas pessoas ou porque a palavra se
tornou inútil e o silêncio será a grande linguagem universal dos emudecidos
pela educação cerceante e antecipatória do progresso pessoal sem dilemas, sem
escolhas verdadeiras, sem enganos nem dúvidas, sem inventividade de rua e do
faz de conta das muitas e fantasiosas histórias que criança sabe contar, sem pé
nem cabeça ou com mais cabeça de quem tem os pés na terra e coração na vida? Ah,
meu, sei não!
Se minha filha mais
velha tivesse sido educada numa sociedade dessas, teria ela escrito a um de
seus amigos, como escreveu, quando tinha 5 anos de idade, numa época em que
morávamos na Inglaterra, "dê lembranças ao sol e ao vento de São Paulo"?
Teria, baby? Quantas libras esterlinas teria colocado no cofrinho de louça se
tivesse economizado essas palavras inúteis dizendo ao amigo apenas "aqui
faz frio e chove muito". Qual novidade, cara-pálida? Até índio já entrou nessa
pedagogia desidentificadora. Nos anos 1970, no relutante encontro entre o grupo
brasileiro de aproximação, da FUNAI, e um grupo indígena do Amapá, já não se antecipou o
trêmulo cacique perguntando aos indigenistas: "Do you speak english?".
Serão crianças que
saberão fazer contas sem saber fazer de conta? Saberão perguntar num mundo sem
perguntas? Acertar sem tropeçar? Esperar sem ter esperança?
*************
Com as quatro indagações apresentadas
no último parágrafo José de Souza Martins encerra seu excelente texto repleto
delas. Com a indagação feita a seguir encerro esta postagem. Será que vale a
pena refletir sobre as indagações do sociólogo e professor emérito da
Faculdade de Filosofia da USP?
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