Entre as duas opções apontadas
no final da postagem anterior como candidatas a ser a próxima, a escolhida foi a
primeira delas. Sendo assim, segue o texto intitulado 'Se o mundo tem solução, é através da criança', publicado na edição
de 24 de junho de 2014 do jornal O Estado
de S. Paulo, na seção intitulada Cinema
– Em cartaz, assinado pelo jornalista
e crítico de cinema Luiz Carlos Merten.
'Se o
mundo tem solução, é através da criança'
Com muito verbo e brincadeiras, Cacau Rhoden fez de 'Tarja
Branca' um filme reflexivo e emocionante
Sérgio Augusto
escreveu um texto muito bonito no Aliás
de domingo – Carpe Ludos, sobre a
Copa do Mundo, que está vencendo resistências. Estão ocorrendo tantas
revoluções dentro de campo, tantos gols, tantos times pequenos (Davis) vencendo
os gigantes, os Golias da competição, que ele deu a receita – a conta vai
aparecer, mas, agora, o melhor a fazer é relaxar e desfrutar. O caráter lúdico
do futebol. Da vida. Há um belíssimo filme em cartaz que trata justamente
disso. Do direito e da necessidade de brincar. Tarja Branca – A Revolução Que Faltava começa de mansinho, falando
de crianças.
Elas brincam diante da
câmera de Cacau Rhoden e os adultos viajam no tempo, lembram as crianças que
foram, as brincadeiras que faziam. Concluem que com brincadeira a vida ficava
melhor. E, de repente, a conversa não é mais sobre crianças. Brincar vira uma
ação ancestral desenvolvida pelo homem, para se conhecer melhor e se relacionar
com o mundo. Em busca dos brincantes, o filme chega aos depositários de uma
cultura popular, os que resistem à massificação, à ditadura dos shoppings e dos
eletrônicos. Alguns dos entrevistados até refletem – vão (quem?) dizer que os
brincantes estão perdidos no tempo, que perderam o bonde da história. Não é
verdade.
Está provado que os
gigantes da comunicação contemporânea – Microsoft, Google – investem em
escritórios de madeira e hora de recreio para os funcionários, tudo que torne a
vida mais prazerosa. É uma verdade tão simples – quem faz o que gosta vive
melhor. Alguma dúvida? O problema é que a organização social não está montada
para favorecer o bem-estar das pessoas. Daí a revolução que ainda falta, ou
faltava – a da tarja branca. São tantos os medicamentos de tarja preta, para
segurar as neuroses e para que as pessoas continuem produzindo. A tarja branca
baseia-se na palavra, na brincadeira, no autoconhecimento.
O diretor Rhoden veio
do curta. Fez Infinitamente Maio em
parceria com Marcos Jorge, e a história de vingança, do homem que descobre a
traição da mulher, tem mais a ver com o universo antropofágico, sombrio, do
diretor de Estômago. Meninos de Areia aborda o universo
infantil, por meio do relacionamento ambíguo de duas crianças. Em Tarja Branca, ele ouve gente como Lydia
Hortélio, Antônio Nóbrega, Domingos Montagner, José Simão. Bráulio Tavares
observa que a família, a escola, as instituições em geral, existem para cercear
a liberdade natural dos indivíduos e colocá-los nos eixos. Se desde crianças
não fôssemos disciplinados – com hora para tudo -, provavelmente estaríamos na
selva. O problema é que essas horas programadas raramente preveem brincadeiras,
porque não são coisas 'sérias'.
Em 2000, há 14 anos, a
cineasta gaúcha Liliane Sulzbach fez outro belo documentário, o média-metragem A Invenção da Infância. Ela filmava
crianças de famílias de baixa renda, ou sem renda, que não tinham direito à
infância porque estavam lutando para sobreviver. Mas ela filmava também
crianças de famílias de muita renda e elas também não tinham infância porque os
pais, preocupados com o futuro, roubavam dos filhos o direito ao ócio, enchendo
seu tempo com todo tipo de atividade programada – curso disso e daquilo.
*************
"Elas (as crianças) brincam diante da câmera de Cacau Rhoden e os adultos viajam no tempo, lembram as crianças que foram, as brincadeiras que faziam. Concluem que com brincadeira a vida ficava melhor. E, de repente, a conversa não é mais sobre crianças. Brincar vira uma ação ancestral desenvolvida pelo homem, para se conhecer melhor e se relacionar com o mundo."
As crianças brincam (...) e os adultos (...) lembram as
crianças que foram, as brincadeiras que faziam e concluem que com brincadeira a
vida ficava melhor. E ao ler essas palavras eu lembro um filme em exibição nos
cinemas: O Pequeno Príncipe (vale a
pena assistir, até porque tem muito a ver com esta postagem e com a anterior).
Por que lembro? Por uma frase nele pronunciada mais de uma vez: "O
problema não é crescer, é esquecer." Sim, um dos enormes problemas deste
tempo é os adultos esquecerem que já foram crianças.
E, de repente, a conversa não é mais sobre crianças.
Brincar vira uma ação ancestral desenvolvida pelo homem, para se conhecer melhor
e se relacionar com o mundo. Brincar para se conhecer melhor e se relacionar com o
mundo! Ou seja, se relacionar de uma forma lúdica, e não por meio da
competitividade desenfreada e suicida que caracteriza esta civilização (sic) onde
(como diz Luiz Carlos Merten) "a organização social não está montada para
favorecer o bem-estar das pessoas". Uma civilização onde "São tantos
os medicamentos de tarja preta, para segurar as neuroses e para que as pessoas
continuem produzindo" que não se pode mais negligenciar a
imprescindibilidade da busca da tarja branca.
"A tarja branca
baseia-se na palavra, na brincadeira, no autoconhecimento", diz Luiz Carlos
Merten. Ou seja, baseia-se em coisas essenciais por nós relegadas a
sei lá que plano! Relegação da qual (entre outras coisas) resulta o fim da infância,
algo para o qual já foi chamada atenção no filme A Invenção da Infância, da cineasta Liliane Sulzbach.
Filme no qual "Ela
filmava crianças de famílias de baixa renda, ou sem renda, que não tinham
direito à infância porque estavam lutando para sobreviver. Mas ela filmava
também crianças de famílias de muita renda e elas também não tinham infância
porque os pais, preocupados com o futuro, roubavam dos filhos o direito ao
ócio, enchendo seu tempo com todo tipo de atividade programada – curso disso e
daquilo.".
Filme do qual a psicóloga
Rosely Sayão usa uma frase, por ela classificada como contundente, para iniciar
seu texto A criança e a infância,
publicado na postagem anterior e aqui repetida: "Não basta ser criança
para ter infância.". A diferença entre as duas menções ao filme é que,
comparando com o que é dito no parágrafo anterior, o texto de Rosely Sayão aborda apenas as crianças que perdem a infância devido ao "enchimento de seu
tempo com todo tipo de atividade programada", mas não "àquelas
que não têm direito à infância porque estão lutando para sobreviver".
Considerada uma das
maiores especialistas em cultura da criança no País, Lydia Hortélio descobriu
em casa, no sertão baiano, um vasto e riquíssimo arsenal de cantigas,
brincadeiras e brinquedos. (...) Para Lydia, se o mundo tem solução é através
da infância. "A grande revolução acontecerá por aí", ela crê. O filme
também acredita. Mas a grande revolução só acontecerá quando uma quantidade necessária
e suficiente de indivíduos também acreditar. Uma quantidade capaz de produzir
algo como O Fenômeno do Centésimo Macaco (a segunda postagem deste blog).
Nenhum comentário:
Postar um comentário