sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Se o mundo tem solução, é através da criança

Entre as duas opções apontadas no final da postagem anterior como candidatas a ser a próxima, a escolhida foi a primeira delas. Sendo assim, segue o texto intitulado 'Se o mundo tem solução, é através da criança', publicado na edição de 24 de junho de 2014 do jornal O Estado de S. Paulo, na seção intitulada Cinema – Em cartaz, assinado pelo jornalista e crítico de cinema Luiz Carlos Merten.
'Se o mundo tem solução, é através da criança'
Com muito verbo e brincadeiras, Cacau Rhoden fez de 'Tarja Branca' um filme reflexivo e emocionante
Sérgio Augusto escreveu um texto muito bonito no Aliás de domingo – Carpe Ludos, sobre a Copa do Mundo, que está vencendo resistências. Estão ocorrendo tantas revoluções dentro de campo, tantos gols, tantos times pequenos (Davis) vencendo os gigantes, os Golias da competição, que ele deu a receita – a conta vai aparecer, mas, agora, o melhor a fazer é relaxar e desfrutar. O caráter lúdico do futebol. Da vida. Há um belíssimo filme em cartaz que trata justamente disso. Do direito e da necessidade de brincar. Tarja Branca – A Revolução Que Faltava começa de mansinho, falando de crianças.
Elas brincam diante da câmera de Cacau Rhoden e os adultos viajam no tempo, lembram as crianças que foram, as brincadeiras que faziam. Concluem que com brincadeira a vida ficava melhor. E, de repente, a conversa não é mais sobre crianças. Brincar vira uma ação ancestral desenvolvida pelo homem, para se conhecer melhor e se relacionar com o mundo. Em busca dos brincantes, o filme chega aos depositários de uma cultura popular, os que resistem à massificação, à ditadura dos shoppings e dos eletrônicos. Alguns dos entrevistados até refletem – vão (quem?) dizer que os brincantes estão perdidos no tempo, que perderam o bonde da história. Não é verdade.
Está provado que os gigantes da comunicação contemporânea – Microsoft, Google – investem em escritórios de madeira e hora de recreio para os funcionários, tudo que torne a vida mais prazerosa. É uma verdade tão simples – quem faz o que gosta vive melhor. Alguma dúvida? O problema é que a organização social não está montada para favorecer o bem-estar das pessoas. Daí a revolução que ainda falta, ou faltava – a da tarja branca. São tantos os medicamentos de tarja preta, para segurar as neuroses e para que as pessoas continuem produzindo. A tarja branca baseia-se na palavra, na brincadeira, no autoconhecimento.
O diretor Rhoden veio do curta. Fez Infinitamente Maio em parceria com Marcos Jorge, e a história de vingança, do homem que descobre a traição da mulher, tem mais a ver com o universo antropofágico, sombrio, do diretor de Estômago. Meninos de Areia aborda o universo infantil, por meio do relacionamento ambíguo de duas crianças. Em Tarja Branca, ele ouve gente como Lydia Hortélio, Antônio Nóbrega, Domingos Montagner, José Simão. Bráulio Tavares observa que a família, a escola, as instituições em geral, existem para cercear a liberdade natural dos indivíduos e colocá-los nos eixos. Se desde crianças não fôssemos disciplinados – com hora para tudo -, provavelmente estaríamos na selva. O problema é que essas horas programadas raramente preveem brincadeiras, porque não são coisas 'sérias'.
Em 2000, há 14 anos, a cineasta gaúcha Liliane Sulzbach fez outro belo documentário, o média-metragem A Invenção da Infância. Ela filmava crianças de famílias de baixa renda, ou sem renda, que não tinham direito à infância porque estavam lutando para sobreviver. Mas ela filmava também crianças de famílias de muita renda e elas também não tinham infância porque os pais, preocupados com o futuro, roubavam dos filhos o direito ao ócio, enchendo seu tempo com todo tipo de atividade programada – curso disso e daquilo.
Considerada uma das maiores especialistas em cultura da criança no País, Lydia Hortélio descobriu em casa, no sertão baiano, um vasto e riquíssimo arsenal de cantigas, brincadeiras e brinquedos. Seus CDs viraram obras de referência – Abra a Roda – Tin dô lê lê e Ô Bela Alice... Para Lydia, se o mundo tem solução é através da infância. "A grande revolução acontecerá por aí", ela crê. O filme também acredita. É maravilhoso.
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"Elas (as crianças) brincam diante da câmera de Cacau Rhoden e os adultos viajam no tempo, lembram as crianças que foram, as brincadeiras que faziam. Concluem que com brincadeira a vida ficava melhor. E, de repente, a conversa não é mais sobre crianças. Brincar vira uma ação ancestral desenvolvida pelo homem, para se conhecer melhor e se relacionar com o mundo."
As crianças brincam (...) e os adultos (...) lembram as crianças que foram, as brincadeiras que faziam e concluem que com brincadeira a vida ficava melhor. E ao ler essas palavras eu lembro um filme em exibição nos cinemas: O Pequeno Príncipe (vale a pena assistir, até porque tem muito a ver com esta postagem e com a anterior). Por que lembro? Por uma frase nele pronunciada mais de uma vez: "O problema não é crescer, é esquecer." Sim, um dos enormes problemas deste tempo é os adultos esquecerem que já foram crianças.
E, de repente, a conversa não é mais sobre crianças. Brincar vira uma ação ancestral desenvolvida pelo homem, para se conhecer melhor e se relacionar com o mundo. Brincar para se conhecer melhor e se relacionar com o mundo! Ou seja, se relacionar de uma forma lúdica, e não por meio da competitividade desenfreada e suicida que caracteriza esta civilização (sic) onde (como diz Luiz Carlos Merten) "a organização social não está montada para favorecer o bem-estar das pessoas". Uma civilização onde "São tantos os medicamentos de tarja preta, para segurar as neuroses e para que as pessoas continuem produzindo" que não se pode mais negligenciar a imprescindibilidade da busca da tarja branca.
"A tarja branca baseia-se na palavra, na brincadeira, no autoconhecimento", diz Luiz Carlos Merten. Ou seja, baseia-se em coisas essenciais por nós relegadas a sei lá que plano! Relegação da qual (entre outras coisas) resulta o fim da infância, algo para o qual já foi chamada atenção no filme A Invenção da Infância, da cineasta Liliane Sulzbach.
Filme no qual "Ela filmava crianças de famílias de baixa renda, ou sem renda, que não tinham direito à infância porque estavam lutando para sobreviver. Mas ela filmava também crianças de famílias de muita renda e elas também não tinham infância porque os pais, preocupados com o futuro, roubavam dos filhos o direito ao ócio, enchendo seu tempo com todo tipo de atividade programada – curso disso e daquilo.".
Filme do qual a psicóloga Rosely Sayão usa uma frase, por ela classificada como contundente, para iniciar seu texto A criança e a infância, publicado na postagem anterior e aqui repetida: "Não basta ser criança para ter infância.". A diferença entre as duas menções ao filme é que, comparando com o que é dito no parágrafo anterior, o texto de Rosely Sayão aborda apenas as crianças que perdem a infância devido ao "enchimento de seu tempo com todo tipo de atividade programada", mas não "àquelas que não têm direito à infância porque estão lutando para sobreviver".
Considerada uma das maiores especialistas em cultura da criança no País, Lydia Hortélio descobriu em casa, no sertão baiano, um vasto e riquíssimo arsenal de cantigas, brincadeiras e brinquedos. (...) Para Lydia, se o mundo tem solução é através da infância. "A grande revolução acontecerá por aí", ela crê. O filme também acredita. Mas a grande revolução só acontecerá quando uma quantidade necessária e suficiente de indivíduos também acreditar. Uma quantidade capaz de produzir algo como O Fenômeno do Centésimo Macaco (a segunda postagem deste blog).

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