segunda-feira, 24 de agosto de 2015

A criança e a infância

Após uma sequência de postagens provocadas por alguma evidente afinidade com a anterior, segue uma provocada pela passagem de uma data instituída pela UNICEF com a finalidade de promover uma reflexão sobre as condições de vida das crianças de todo o mundo. Uma data cuja existência talvez não seja do conhecimento da imensa maioria. O texto apresentado a seguir é de autoria da conhecida psicóloga Rosely Sayão e foi publicado na edição de 27 de agosto de 2013 do jornal Folha de S.Paulo.
A criança e a infância
"Não basta ser criança para ter infância.". Essa frase contundente está presente no documentário "A Invenção da Infância" (disponível na internet) dirigido por Liliana Sulzbach, que propõe uma reflexão sobre os estilos de vida de nossas crianças no mundo atual. É uma frase que persegue meus pensamentos, conduz o meu trabalho e que, no último sábado, me fez pensar muito.
É que no dia 24 de agosto comemorou-se o Dia da Infância. Grandes reportagens a esse respeito nos veículos de comunicação ou mesmo pequenas notas lembrando a data, por acaso apareceram? De um modo geral, pouco vimos a esse respeito. A lembrança da existência dessa data parece ter ficado restrita aos grupos que, de maneira direta ou indireta, trabalham com e / ou para crianças.
Faz sentido esse silêncio da sociedade a respeito de uma data que, aliás, não deve ser considerada comemorativa. A infância está desaparecendo e temos contribuído de modo expressivo para isso. Como temos feito isso?
Para começar a pensar, temos de considerar que ser criança é um fato biológico, mas o modo como ela vive essa etapa da vida, que vai até a adolescência, depende de múltiplos e complexos fatores, entre eles o modo social de pensar a criança. É aí que entramos.
De um modo geral, cada vez mais a criança, notadamente a que pertence à família de classe média, tem sido tratada como um ser que precisa ser preparado para o futuro. Há algumas décadas, passamos a acreditar que quanto mais precocemente a criança for engajada em situações de estudos formais, maiores as chances que ela terá de êxito no futuro.
Já temos inúmeros estudos e pesquisas que comprovam que iniciar o contato com o conhecimento sistematizado mais cedo não contribui no aprendizado que deve ocorrer a partir dos sete anos. Por isso, tudo o que conseguimos ao fazer isso é deixar de ver a criança em seu presente, ou seja, a vemos muito mais como um ser que, um dia, será alguém.
Também temos deixado a criança cada vez mais tempo na escola. As três ou quatro horas iniciais se transformaram, progressivamente, em cinco, seis, oito, dez e até 12 horas de permanência no espaço escolar! Se considerarmos que ir para a escola é o trabalho da criança, elas têm trabalhado demais, à semelhança de seus pais, os adultos.
Temos entendido que o tempo de permanência na escola é uma necessidade social já que os pais têm se dedicado muito à vida profissional. Conheço profissionais que trabalham muito além da jornada e justificam o excesso como necessário para dar conta da responsabilidade profissional. E a pessoal, com os filhos, onde temos colocado tal responsabilidade?
Crianças têm se alimentado como adultos que se alimentam mal. E, como estes, têm enfrentado doenças por causa disso. Esse fato não ocorre por falta de informação dos responsáveis pelas crianças e sim pela falta de paciência e dos cuidados que elas necessitam.
Ah, mas elas pedem, exigem até, as porcarias ofertadas insistentemente e disponíveis em todos os cantos. Sim, mas por isso vamos permitir que fiquem escravas de seus impulsos e que consumam como adultos?
Abordei dois pontos apenas de nossa contribuição direta para o fim da infância. Há muitos outros. Por isso, todo dia deveríamos fazer essa reflexão: queremos que nossas crianças tenham infância, ou já consideramos esse conceito obsoleto?
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"Não basta ser criança para ter infância.". Essa frase contundente (...) presente no documentário "A Invenção da Infância" (...) que propõe uma reflexão sobre os estilos de vida de nossas crianças no mundo atual, é uma frase que persegue meus pensamentos, conduz o meu trabalho e que, no último sábado, me fez pensar muito.
Abordei dois pontos apenas de nossa contribuição direta para o fim da infância. Há muitos outros. Por isso, todo dia deveríamos fazer essa reflexão: queremos que nossas crianças tenham infância, ou já consideramos esse conceito obsoleto?"
Os dois parágrafos acima repetem as palavras iniciais e as finais do excelente texto de Rosely Sayão. Por que repeti-las? Para reforçar a sugestão da conhecida psicóloga com a qual concordo plenamente. Sim, todo dia deveríamos fazer essa reflexão: "queremos que nossas crianças tenham infância, ou já consideramos esse conceito obsoleto?". E seguindo o método das reflexões sucessivas, segue mais uma: será que ter infância é algo importante na vida de um ser humano? O que vocês acham?
O parágrafo acima fala em palavras iniciais e finais; este em fase inicial e fase final. Será que o que ocorre na fase inicial da vida de um ser humano tem alguma relação com o que ocorrerá na fase final? Ou seja, será que, se quisermos dar às crianças (que muitos chegam até a afirmar serem o que mais amam na vida) uma verdadeira oportunidade de tornarem-se adultos felizes, dar-lhes uma infância é condição sine qua non? E haja reflexão, hein!
Rosely Sayão diz ter uma frase que persegue seus pensamentos, conduz o seu trabalho e que a faz pensar muito: "Não basta ser criança para ter infância.". Embora não tendo uma determinada frase, crianças e infância são temas que também perseguem meus pensamentos e me fazem pensar muito. Temas para os quais minha atenção está sempre voltada nos momentos de leitura do que é divulgado pela mídia. Momentos nos quais eu encontro coisas como:
- Em São Paulo, escolas bilíngues recebem bebês a partir de 3 meses. (17 de março de 2014, jornal O Estado de S. Paulo).
- Pais buscam coaching até para crianças de 2 anos. (22 de junho de 2015, jornal O Estado de S. Paulo).
- Escolas dão aulas de finanças, inglês e empreendedorismo a partir dos 3 anos. (03 de março de 2014, jornal O Estado de S. Paulo).
Coisas cada vez mais ao gosto da maioria das famílias de classe média, conforme nos diz Rosely Sayão:
"De um modo geral, cada vez mais a criança, notadamente a que pertence à família de classe média, tem sido tratada como um ser que precisa ser preparado para o futuro. Há algumas décadas, passamos a acreditar que quanto mais precocemente a criança for engajada em situações de estudos formais, maiores as chances que ela terá de êxito no futuro."
Preparar para o futuro, eis o discurso. Viver o futuro já no presente, eis a prática a que estão sujeitas as crianças. Não, o que temos que fazer não é preparar as crianças para o futuro, e sim preparar o futuro para as crianças. Afinal, o que é o futuro? É a resultante natural do somatório das ações, e das omissões, de todos os integrantes dessa dita (bendita ou maldita) espécie inteligente do Universo. Preparar o futuro, eis o que é imprescindível ser feito. Feito, inclusive com a participação das crianças, conforme sugere uma das coisas encontradas por mim:
- Se o mundo tem solução, é através da criança. (24 de junho de 2014, jornal O Estado de S. Paulo).
Embora seja esta a primeira vez que publico uma postagem alusiva ao Dia da Infância, não é esta a primeira vez que toco no assunto fim da infância. Em 12 de maio de 2011 (meados do quarto mês de existência deste blog), provocada por algo dito na anterior, a postagem publicada tem o seguinte título: Era uma vez uma infância. O texto nela apresentado tem tudo a ver com o de Rosely Sayão apresentado nesta. Será que esta postagem provocará a próxima? Entre as coisas por mim encontradas existem duas com grande probabilidade de serem escolhidas: a citada no parágrafo anterior é uma delas; a citada abaixo é a outra:
- Contas sem faz de conta – Quando chegarem à idade de sonhar, como sonharão as gerações de adultos precoces que aprendem finanças aos 3 anos? (09 de março de 2014, jornal O Estado de S. Paulo).

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