quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Falta a criança de três anos

Após Um aprendizado casual, onde é oferecida uma oportunidade para aprender algo com um humilde cavalariço, este blog apresenta um trecho de um artigo que oferece mais uma oportunidade de aprendizado com seres desconsiderados pela maioria (sempre ela!) como capazes de ensinar alguma coisa. Um artigo publicado na edição de 12 de março de 2006 do jornal O Globo, na coluna do Veríssimo, com o título Na cara. Ou seja, mais uma vez, diferentemente do que costumo fazer, não dei à postagem o mesmo título dado ao texto que a provocou, e explico.
A cena de um filme citada em tal artigo aparece em outros artigos de Luis Fernando Veríssimo sob diferentes títulos e já li quatro onde ela é citada. O primeiro em 04 de março de 1999 e o último em 08 de maio de 2014. O título da postagem e as duas frases finais do texto nela apresentado foram copiados do artigo Falta a criança de três anos publicado na edição de 04 de março de 1999 do jornal O Globo.
Na cara
Há uma cena de um filme dos irmãos Marx em que Groucho, um general postando-se à frente de um mapa para explicá-lo aos seus comandados, diz:
- Uma criança de três anos entenderia isto.
E depois de algum tempo examinando o mapa:
- Tragam uma criança de três anos!
A criança de três anos não representa apenas o óbvio, ou o senso comum. Representa um olhar inocente no sentido de ser livre de ideias feitas, ilusões e vícios de pensamento. Não é fácil pensar como a proverbial criança de três anos – há o risco de se confundir simplismo com sabedoria. Mas é sempre saudável pensar em assuntos complexos tentando separar o que é preconceito e vontade do que está na cara.
A criança de três anos não é pró ou anti nada. A criança de três anos só vê o que está na cara, e acha estranho que ninguém mais veja.
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"A criança de três anos não é pró ou anti nada. A criança de três anos só vê o que está na cara, e acha estranho que ninguém mais veja.", diz Luis Fernando Verissimo em um artigo intitulado Falta a criança de três anos. Um artigo inspirado em uma cena de um filme no qual, diante do não entendimento demonstrado por seus comandados, um general ordena que uma criança de três anos seja trazida até eles, pois, segundo ele, tal criança entenderia o que eles não conseguem entender.
Ou seja, há coisas que só uma criança de três anos consegue enxergar ou que ela precisa enxergar antes para que só então os adultos se disponham a ver, pois, corrigindo um antigo ditado que diz que - é preciso ver para crer -, há quem diga que - é preciso crer para ver. Coisas como a nudez de um vaidoso rei enxergada primeiramente por uma criança como nos fala Hans Christian Andersen (1805 - 1875) em seu conhecido conto intitulado A Roupa Nova do Rei. Vocês conhecem esse conto? Vocês sabem qual era a idade daquela criança? Pelo que consigo lembrar, no conto não é revelada a idade, mas, pelo que consigo supor, considerando o que foi dito até aqui, ela deveria ter três anos.
Por que faço tal suposição? Porque, com essa idade, como diz Luis Fernando Veríssimo, a criança só vê o que está na cara, pois aquilo que, com o passar dos anos ela será levada a ver, não com seus próprios olhos, e sim pela nefasta atuação de uma legião composta de indivíduos classificados como formadores de opinião, ela ainda não vê com essa idade. Vocês concordam que os dois vigaristas, que se fizeram passar por alfaiates para encherem-se de dinheiro confeccionando (sic) uma roupa invisível para um vaidoso rei, nada mais eram do que formadores de opinião que fazem pessoas incautas "ver" coisas que não existem? Pois é, crianças de três anos ainda não se deixam enganar por formadores de opinião; ainda conseguem ver o que está na cara.
Sim, falta a criança de três anos! Falta na cena do filme, e o que é pior, falta nesta civilização (sic) onde as crianças perderam o direito de serem crianças, pois cada vez mais elas são criadas como se já tivessem nascido adultas. A postagem publicada neste blog em 13 de maio de 2011 é intitulada Era uma vez uma infância.
É muito triste sobreviver em um mundo onde não existe mais infância; onde não se permite crianças terem três anos. É desolador sobreviver em uma civilização (sic) na qual, consciente ou inconscientemente eleito pela maioria de seus integrantes, o deus mercado reina de forma absoluta. Uma civilização onde permitir crianças perderem tempo com essa bobagem denominada infância, em vez de ganharem tempo preparando-se para tornarem-se vencedores na insana competição que precisarão travar no tal do mercado de trabalho, é considerada uma demonstração de estar fora da realidade. Uma triste realidade que a maioria aceita cada vez mais como algo inevitável. Uma aceitação que me faz lembrar (mais uma vez) a seguinte afirmação de Einstein: "Existem apenas duas coisas infinitas - o Universo e a estupidez humana. E não tenho tanta certeza quanto ao Universo."
E ao falar em crianças e em deus mercado, lembro de um texto que li, há alguns anos, em uma coluna de Paulo Coelho publicada no jornal Extra em uma data que não anotei sob o título A irmã mais velha pergunta. Texto encontrável em extra.globo.com usando o título como argumento de busca.
A irmã mais velha pergunta
Quando seu irmão nasceu, Sa-chi Gabriel insistia com os pais para ficar sozinha com o bebê. Temendo que, como muitas crianças de 4 anos, estivesse enciumada e quisesse maltratá-lo, eles não deixaram.
Mas Sa-chi não dava mostra de ciúmes. E como sempre tratava o bebê com carinho, os pais resolveram fazer um teste. Deixaram Sa-chi com o recém-nascido, e ficaram observando seu comportamento através da porta semi-aberta.
Encantada por ter seu desejo satisfeito, a pequena Sa-chi aproximou-se do berço na ponta dos pés, curvou-se até o bebê e disse: "Me diz como Deus é! Eu já estou esquecendo!"
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Aos quatro anos uma criança já está esquecendo como Deus é! Será que, por si só, esse esquecimento explica a insana forma de agir da autodenominada espécie inteligente do universo? Creio que não, pois a coisa não para por aí, e eu explico. Ao esquecer como Deus é, em conformidade com o que afirmou Voltaire (1694 – 1778) – Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo - a criatura parte para a criação de novos deuses, dentre eles um já citado alguns parágrafos acima - o deus mercado. Um deus cultuado pela maioria dos adultos. Um deus cujo culto exige o sacrifício das crianças. Ou seja, um deus cuja existência, por si só, explica a inexistência da criança de três anos; a falta da criança de três anos. Vocês sentem falta da criança de três anos?

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