Será que é possível curar alguma doença sem chegar
ao diagnóstico correto? Será que é possível solucionar algum problema sem interpretá-lo
corretamente? Será que estamos interpretando corretamente o problema da
violência urbana que a cada dia fica mais apavorante? Será que o texto
apresentado abaixo poderá ajudar-nos a interpretar tal problema corretamente? Para
as três primeiras indagações minha resposta é não. Para a última não tenho resposta,
e sim uma sugestão. Pelo sim pelo não (embora não estejamos em um centro de
depilação) creio que vale a pena dar uma lida na reportagem da jornalista Any
Bourrier.
Um soco no estômago
Filme mostra a explosão da violência urbana, lota cinemas
e vira o grande assunto de Paris
PARIS – O filme La haine (O ódio), dirigido por Mathieu Kassovitz, ganhou o prêmio de melhor
direção no Festival de Cannes, em maio último. Assim que estreou nos cinemas de
Paris, contabilizou 500 mil espectadores em apenas três semanas. E, de quebra,
provocou uma polêmica que envolveu a França, por causa de sua temática realista
e violenta. Em resumo, é o sucesso do ano e está destinado a marcar época na
história do cinema francês.
Por que razão um filme
em preto e branco, realizado por um diretor desconhecido, com artistas
amadores, cujo enredo é deprimente, mobilizou a juventude francesa? A
explicação é simples: La haine é uma
produção sincera, objetiva e, sobretudo, contundente. Representa, na Europa, o
que Pulp fiction representou na
cinematografia americana, ou seja, o filme cult
de uma época e de uma geração, um soco no estômago do público.
Desde o primeiro
plano, entra-se de cheio no problema universal da divisão entre cidade e
a periferia, entre adultos e jovens, entre rejeitados e representantes da ordem
social. Em Muguets, uma alegoria dos subúrbios de Paris, a noite começa tensa.
Na véspera, Abdel, 16 anos, foi ferido por um policial e vai morrer. Na cidade,
policiais e galeras passaram a noite se digladiando porque os amigos de Abdel
querem vingá-lo. O filme começa com a sequência que mostra a entrada em Muguets
de três jovens raivosos dispostos a acertar contas com a polícia. Hubert, Said
e Viniz pisam no asfalto com ódio, cada um deles decidido a se vingar, mas de
maneira diferente. Hubert é o mais calmo, Said está enlouquecido, Viniz só
pensa em violência. Ainda mais porque, no combate com os policiais, uma
metralhadora ficou caída na calçada e, com ela, Viniz vai botar fogo no
subúrbio.
Durante os 90 minutos
do filme, Kassovitz (leia entrevista abaixo)
demonstra como um teorema a extensão do abismo que separa os dois mundos. Seus
personagens são os mesmos que se podem encontrar numa cidade brasileira,
americana ou europeia. São os garotos que falam uma língua diferente, cheia de
gíria, cujo comportamento, para os adultos, vem de outro planeta. O filme é
construído sobre um clima de violência que precede o choque final. Como se o
diretor avisasse ao espectador: tome cuidado, tudo o que foi dito indica que
uma bomba vai explodir no final. Uma bomba que, de fato, explode com a morte
dos personagens principais.
O êxito de La haine não resulta somente da
violência de seu enredo. O filme de Kassovitz constata, denuncia, agride.
Demonstra que os jovens sem rumo sentem ódio porque é tudo o que lhes resta num
mundo cruel e sem perspectiva. Apesar de ficcional, La haine é uma imagem realista do abismo social existente entre a
ordem (a polícia) e a desordem criativa e dinâmica da juventude suburbana.
Cacetadas, gritos, violência policial são as principais formas de expressão de
uma guerra civil urbana que Mathieu Kassovitz conseguiu transformar num filme
trágico e belo.
'Minha obra é
antipática'
Mathieu Kassovitz não
aguenta mais. Em poucos meses, transformou-se no diretor francês mais comentado
e controvertido. É disputado pelas revistas. Já lhe propuseram até editar
discos e fabricar camisetas com o logotipo do filme La haine. Mas frente a tal sucesso, procura manter a cabeça fria,
limitando-se a fazer a promoção do filme em regiões menos favorecidas ou nos
centros culturais onde a entrada é livre para os verdadeiros heróis de seu
filme, isto é, a galera dos subúrbios. Recusando-se a considerar que La haine é um filme "de sociólogo
ou de documentarista", ele prefere explicar por que sua produção, apesar
do sucesso, "é antipática".
- Qual é a razão do sucesso do filme?
- Minha preocupação é
que o público não fique decepcionado quando for ver o filme por causa da
propaganda que o precedeu. Também não gostaria que os jovens suburbanos, que
colaboraram comigo para a realização do filme, sintam-se traídos. Não houve, de
minha parte, nenhuma intenção de "obter sucesso" e, com isto, muito
dinheiro. Meu propósito era dar um empurrão no cinema que, ultimamente, anda
mal. Digamos que La haine é para mim
um filme-panfleto, destinado a fazer evoluir corações e mentes em relação ao
cinema, naquilo que o cinema tem de combativo, incômodo, antipático, mas que
faz a gente pensar um pouco mais na realidade.
- No filme há três heróis, um preto, um árabe e um branco.
Mas só o branco carrega uma arma. Por quê?
- Quando se faz um
filme sobre a problemática dos subúrbios, é claro que a gente torna-se
maniqueísta. Acaba-se sendo vítima do chavão, do clichê. A razão pela qual
decidi que os heróis do filme seriam três pessoas de raças diferentes é
justamente para não ser maniqueísta, ou seja, não fazer aquele jogo de "minoria
étnica contra a polícia". Meu objetivo foi jogar os jovens contra a
polícia.
- Por que optou por um filme em preto e branco?
- Porque isso me
lembra as imagens projetadas nos cinemas do passado, de antes da guerra. Julgo
também que as imagens em preto e branco são mais realistas, se as compararmos
com as coloridas que vemos o dia inteiro na televisão.
- Como julga a revolta dos jovens?
- La haine não é um filme sobre a revolta das novas gerações, mas
sobre o ódio. E quando digo ódio, refiro-me àquela situação de nervosismo
contido dos jovens que vivem na periferia. Ela desemboca sempre na violência
que é, no fundo, uma violência contra si mesmo.
- Como qualifica seu filme, de drama ou documentário?
- Acho natural que o
cinema tenha uma dimensão social. Mas a dimensão social nunca impediu que um
filme fosse interessante e atraente. Para que La haine se transformasse num filme atraente, apesar de seu
conteúdo social, procurei socorro na música, no rap e no funk. Por isto o
trabalho dos atores é ritmado, diria até que é baseado no ritmo natural da
linguagem dos gestos.
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Embora seja um filme
ambientado nos subúrbios de Paris, segundo Any Bourrier, "Seus personagens
são os mesmos que se podem encontrar numa cidade brasileira, americana ou
europeia.", pois, "Desde o primeiro plano, entra-se de cheio no
problema universal da divisão entre cidade e a periferia, entre adultos e
jovens, entre rejeitados e representantes da ordem social". E Any
complementa: "O filme de Kassovitz constata, denuncia, agride. Demonstra
que os jovens sem rumo sentem ódio porque é tudo o que lhes resta num mundo
cruel e sem perspectiva. Apesar de ficcional, La haine é uma imagem realista do abismo social existente entre a
ordem (a polícia) e a desordem criativa e dinâmica da juventude suburbana.".
Feito o destaque de
alguns trechos da excelente reportagem de Any Bourrier, faço a seguinte
indagação. Vocês perceberam que, diferentemente do que sempre fiz, não informei
onde encontrei o texto reproduzido na postagem nem quando ele foi publicado?
Por que fiz isso? Para oferecer-lhes a oportunidade de confirmar a veracidade
das seguintes palavras de Moshe Feldenkrais: "Pense nisso: O que fazemos
conosco agora é o mais importante para o amanhã. Se não fizermos nada para
mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar, amanhã parecerá ontem, exceto pela
data".
Publicado na edição de
02 de julho de 1995 do Jornal do Brasil,
creio que, excetuando aquelas que tenham conhecimento do referido filme, para as
demais pessoas a reportagem de Any Bourrier passe facilmente por algo publicado
nos tempos atuais, pois, considerando que de lá para cá pouco ou nada mudou na
atitude da maioria dos integrantes desta insana sociedade, hoje parece ontem,
exceto pela data. Será que "um soco no estômago" pode ajudar-nos a
interpretar corretamente o problema da violência urbana que a cada dia fica
mais apavorante?
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