"Cinema é a maior diversão", eis a frase que servia de slogan ao Grupo Severiano
Ribeiro, fundado em 1917 por Luiz Severiano Ribeiro, e atualmente denominado
Kinoplex. Mas cinema também pode ser convite à reflexão, dependendo da visão de
mundo do cineasta que tenha produzido o filme. E entre os cineastas que
convidam à reflexão, um deles é o inglês Ken Loach, dono de "uma rigorosa
carreira, marcada essencialmente pela crítica social e simpatia pelos
desvalidos", e que aos 83 anos tem um filme em cartaz no Brasil. Um filme
sobre o qual foi publicada, na edição de 26 de fevereiro (véspera da estreia em
São Paulo) do jornal O Estado de S. Paulo,
uma reportagem intitulada Realidade
sombria assinada por Ubiratan Brasil na qual é apresentada uma entrevista
com o extraordinário cineasta. Reportagem e entrevista que valem a pena
ler; e sobre elas refletir.
Realidade
sombria
Cineasta
Ken Loach mostra, em 'Você Não Estava Aqui', como o sofrimento de motoristas de entregas
tem efeito na família
Quando terminou a filmagem de Eu, Daniel Blake (2016), o cineasta Ken
Loach, de 83 anos, acreditava que seria seu último trabalho. Seria o encerramento
de uma rigorosa carreira, marcada essencialmente pela crítica social e simpatia
pelos desvalidos. Mas, durante a pesquisa realizada para esse longa, ele e seu
fiel roteirista Paul Laverty enveredaram por uma ramo obscuro da sociedade: o
da selva do livre mercado, em que as pessoas ganham por trabalho executado,
geralmente como motoristas de aplicativos ou entregadores de mercadorias.
Nascia ali a idéia para Você Não Estava Aqui, filme que causou
comoção no Festival de Cannes e estréia nesta quinta-feira, 27, em São Paulo. O
longa acompanha Abbie e Ricky, casal apaixonado e esperançoso de que o trabalho
independente possa resolver seus problemas financeiros – após a crise de 2008,
eles sofrem a ameaça de perder a casa, que está hipotecada. Ricky, então,
compra uma pequena van para trabalhar como motorista de entregas, crente que
vai faturar um bom dinheiro.
O que ele não imagina é entrar
em um sistema que exige longas jornadas, quase sem descanso (é obrigado a
urinar em uma garrafa) e sem nenhuma garantia social. A rotina é tão alucinante
que só consegue falar com os filhos por telefone. "Se ficar doente ou
tiver um problema familiar, não recebe nada", comenta Loach, em entrevista
por telefone ao Estado, na
manhã desta terça-feira, 25. "É um novo tipo de exploração, a chamada 'gig
economy', que nos incentivou a rodar Você
Não Estava Aqui."
O Dicionário Cambridge diz que
"gig economy é uma forma de trabalho baseada em pessoas que têm empregos
temporários ou fazem atividades de trabalho freelancer, pagas separadamente, em
vez de trabalhar para um empregador fixo" Ou seja, o vilão não é mais uma
instituição ou um governo, mas os algoritmos que aceleram o trabalho dos
entregadores a fim de oferecer conforto e rapidez a quem paga pelo serviço.
Sobre o assunto, Loach respondeu a essas questões.
O que o levou a colocar a "gig
economy" como tema central do filme?
Quando filmávamos Eu, Daniel Blake, percebemos, Paul e eu,
que havia uma extensão da forma de atividade dos trabalhadores pobres, ou seja,
com a degradação social, muitos foram obrigados a trocar a segurança de um
emprego com horário regular, férias, seguro doença e outras vantagens por uma
atividade sem nenhuma segurança e tampouco garantia de estabilidade financeira.
Isso provocava um estresse que essas pessoas levavam para casa, agravando ainda
mais a situação porque, em público, se mantêm uma postura; uma vez em casa, a
pessoa entra em colapso total, não é flexível com a família.
O senhor diria que esse é um
problema novo, ou seria algum antigo, mas com nova feição?
O problema é antigo, mas ganha
nova feição por ser provocado pela tecnologia moderna. A exploração ganhou
novos meios no momento em que a tecnologia permitiu, por meio de aparelhos
celulares, que o comprador de algum produto saiba onde exatamente está o carro
do entregador e quando exatamente sua compra vai chegar. Assim, o entregador
tem de correr sérios riscos para cumprir com o prometido. A exploração é
antiga, apenas a tecnologia é nova.
Foi preciso fazer muita pesquisa
para o filme?
(O roteirista), Paul (Laverty)
fez a maior parte da pesquisa, depois que conhecemos algumas pessoas. Não foi
fácil, pois, por temor, os motoristas não queriam falar para não arriscar seus
empregos. Também não foi fácil visitar os depósitos, mas tivemos a sorte de
conhecer um homem, que era gerente de um depósito e que nos deu conselhos
valiosos sobre como construir o nosso depósito. Conseguimos contratar
ex-motoristas, que aparecem no filme e sabiam exatamente como funcionava a
rotina estressante e as pressões que seus colegas ainda passam.
Foi o que mais o impressionou
nessa pesquisa?
Sim, descobrimos pessoas
vivendo situações muito complicadas. É surpreendente a quantidade de horas que
esses trabalhadores precisam empregar para garantir uma vida decente, ainda que
sob muita insegurança. Pense bem, o risco é inteiramente deles porque trabalham
por conta própria. Qualquer um pode perder muito dinheiro rapidamente.
O senhor acredita que o cinema,
de alguma forma, pode ajudar a mudar os problemas?
Sou um contador de histórias
muito próximas das pessoas. Acredito que o cinema tem a força de dar destaque a
determinados problemas e provocar questionamentos. Diferente do que normalmente
acontece em Hollywood – lá, vemos belas pessoas, que viajam, frequentam
restaurantes sofisticados, mas não sabemos de onde tiram dinheiro para isso (risos). É um mundo de sonhos, mas
prefiro longas que compartilham responsabilidades com o publico.
"Hollywood, mostra belas pessoas, que viajam, vão a
restaurantes sofisticados, mas não sabemos de onde tiram dinheiro para
isso"
E o que dizer do Brexit?
O acordo com a União Europeia
era especialmente econômico. Com a separação, os trabalhadores do Reino Unido
serão mais explorados dentro do próprio Reino Unido, com a ajuda do
primeiro-ministro (Boris Johnson).
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E o que dizer da Realidade
sombria?
As
postagens Ken
Loach expõe a nova precarização do trabalho (28 de maio de 2019), A uberização de nossas vidas (20 de
novembro de 2019) e Reflexões provocadas por "A uberização de nossas vidas" (27 de novembro de 2019) também
foram provocadas por esse filme de Ken Loach.
Um comentário:
Cineasta Ken Loach, 83, e seu instigante svripter Paul Laverty são exímios analistas das mazelas do chamado neoliberalismo que está lebvando o neocapitalismo semisselvagem à autodegradação e à decadência progressiva. Depois de Ingmar Bergman, Loah e Laverty assumiram proativamente análises da condição humana na economia respaldada pela exploração de homens que exploram economicamente outros homens, tudo em nome da lógica subumana e desumana do LUCRO a qualquier preço. Wilson Moreira, agora morador de Curitiba, Brazil.
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