quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A uberização de nossas vidas

Sob o título Ken Loach expõe a nova precarização do trabalho, a postagem publicada em 28 de maio de 2019 apresenta uma reportagem de Carlos Helí de Almeida, publicada na edição de 18 de maio de 2019 do jornal O Globo. Reportagem que focaliza o filme "Sorry we missed you" com o qual o diretor britânico Ken Loach, 83 anos, concorreu (sem êxito) a sua terceira Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Cinco meses depois, após "acabar de sair de um cinema de Paris, onde assistiu a 'Sorry we missed you'", a jornalista Ruth de Aquino redigiu um artigo posteriormente publicado na edição de 25 de outubro de 2019 do jornal O Globo, em sua coluna semanal. "O filme mostra uma realidade que, segundo Loach, todo mundo conhece, mas evita comentar.", diz Ruth. Esta postagem mostra um artigo que nem todo mundo conhece, mas que todos deveriam comentar, digo eu.
"Loach é neorrealista e seus filmes nada têm de ficção. 'Sorry we missed you' torna o cotidiano um suspense. Qualquer tragédia pode acontecer.", diz Ruth de Aquino. Aos 83 anos, Loach é imprescindível, segundo o "critério" expresso nas seguintes palavras de (Bertolt Brecht [1898 – 1956], dramaturgo, poeta e encenador alemão): "Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores; há os que lutam muitos anos e são muito bons, mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.", digo eu.
A uberização de nossas vidas
Uma vantagem de estar longe do Brasil, a um oceano de distância, é não precisar escrever sobre "a fábula da porca e do veado". Acabo de sair de um cinema em Paris, onde assisti "Sorry we missed you", o filme mais recente do diretor britânico Ken Loach, 83 anos. Um soco no estômago.
A história se passa em Newcastle, na Inglaterra. Mas poderia ser em qualquer lugar. É sobre a uberização de nossas vidas, a precariedade de nossas relações de trabalho, a ilusão da informalidade como panaceia para o desemprego. Ah, não quero patrão, eu mesmo serei meu patrão, serei colaborador. O patrão passa a ser um algoritmo, o controle passa a ser no celular. Dias de 14 horas de trabalho, sem folga. Com o sofrimento e a ausência de pai e mãe, a família se desagrega.
O filme mostra uma realidade que, segundo Loach, todo mundo conhece, mas evita comentar. Ricky Turner, ruivo, forte e tatuado, orgulha-se de jamais ter ficado desempregado. Mas não consegue economizar e quer o melhor para sua mulher, Abby, cuidadora de idosos, e para os filhos, Lisa, de 11 anos, e Seb, adolescente que falta às aulas para grafitar nas ruas. Ricky resolve então ser entregador para plataformas digitais. O filme não cita a Amazon. Mas Loach faz a associação em entrevistas.
Ricky cai na conversa de que será emancipado. Deixará de ser mero empregado numa empresa, dirigirá seu próprio caminhão e fará entregas para a companhia PDF (Parcels Delivered Fast). Não receberá salários, mas "fees" – uma remuneração semanal com base em sua produtividade. Ricky contrai dívidas para comprar uma van, faz a mulher vender seu carro e se torna escravo das entregas.
Fica abandonado a riscos e multas. Um aparelho de scanner não segue apenas os pacotes. Segue ele próprio e começa a apitar quando Ricky se afasta da van por dois minutos. Ele urina numa garrafa de plástico que fica na mala, para não perder tempo. Está livre para trabalhar até dormir ao volante, mas não para tirar folga por doença, estresse ou problema familiar.
Na garagem da PDF, ele não encontra colegas de trabalho. E sim competidores. Todos disputando a máxima produtividade, as metas, o maior número de pacotes entregues. A competição se torna doentia. Não há mais RH e sim, RD, Recursos Desumanos. Loach é neorrealista e seus filmes nada têm de ficção. "Sorry we missed you" torna o cotidiano um suspense. Qualquer tragédia pode acontecer.
Ninguém precisa ser de direita ou de esquerda para saber que o trabalho enobrece o ser humano. O Brasil tem mais de 13 milhões de desempregados. Vemos filas quilométricas em busca de trabalho. Todos suam para faturar algo. Quem ainda não encontrou, entre os motoristas de táxis de aplicativos, engenheiros, economistas, sociólogos, jornalistas formados? Não era assim. Aos 19 anos, na universidade e trabalhando meio expediente como repórter, meu salário era suficiente para alugar um conjugado na Zona Sul e viver sem o dinheiro de meus pais.
Vemos os deputados, os senadores, os juízes do Supremo aprovando aumentos e privilégios para si mesmos, os filhos do presidente acusados de maracutaias jamais investigadas a fundo, os cargos-fantasma no Congresso. Talvez por isso, hoje, nossos filhos no Brasil desconfiem do ultraliberalismo. Um sistema não pode beneficiar apenas quem é ultrarrico ou ultrapoderoso, não pode aprofundar a desigualdade. Ken Loach filma a derrota dos honestos e sonhadores. É um filme pessimista.
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"É um filme pessimista." diz Ruth de Aquino na frase final de seu excelente artigo. Um filme produzido por alguém sobre quem ela tem a seguinte opinião: "Loach é neorrealista e seus filmes nada têm de ficção.". "'Sorry we missed you' torna o cotidiano um suspense. Qualquer tragédia pode acontecer.", diz Ruth que também diz o seguinte: "O filme mostra uma realidade que, segundo Loach, todo mundo conhece, mas evita comentar.".
E após essas afirmações de Ruth de Aquino, termino esta postagem com uma indagação: Será que faz sentido evitar comentar tal realidade?

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