"A falta de discernimento é um mal em nossa época. Ela resulta do apego ao que parece prático e da desvalorização do pensamento reflexivo – considerado, de modo geral, como perda de tempo. Discernir, ou seja, perceber diferenças, torna-se cada vez mais difícil em um mundo a cada dia mais bruto e inconsciente de sua brutalidade.""Perceber diferenças sutis é ainda mais difícil porque a própria percepção foi invadida e colonizada pelas novas tecnologias em um processo histórico cada vez mais acelerado e tendo a própria idéia de rapidez como um valor."
Após a reprodução do primeiro e do segundo parágrafos do
excelente texto de Marcia Tiburi espalhado pela postagem
anterior, inicio estas
reflexões buscando em https://www.significados.com.br/ o
significado de "prático" e de lá trazendo o seguinte resultado:
"cômodo, de aplicação ou de uso fácil". Resultado com o qual elaboro a
seguinte paráfrase: "A falta de discernimento é um mal em nossa época. Ela
resulta do apego ao que parece 'de aplicação ou de uso fácil' (...)."
Paráfrase que leva-me a lembrar aqui as seguintes palavras de Dumbledore, o
mago barbudo do filme Harry Potter e o
Cálice de Fogo: "Tempos difíceis estão por vir. Em breve, teremos que escolher
entre o que é certo e o que é fácil.".
"Escolher entre o que é certo e o
que é fácil.", eis a questão! Até
porque, vejo no fascínio pelo que é fácil um dos principais propiciadores não
só dos "tempos difíceis que estão por vir",
mas também dos deploráveis tempos que aqui estão.
"A
falta de discernimento (...) resulta da desvalorização do pensamento reflexivo
– considerado, de modo geral, como perda de tempo.", diz Marcia Tiburi fazendo-me lembrar de um livro
de Ciro Marcondes Filho (1948 - ....) publicado em 2005 com o instigante título
Perca tempo – É no lento que a vida
acontece. Um livro que vale a pena ler.
"Discernir,
ou seja, perceber diferenças, torna-se cada vez mais difícil (...). Perceber
diferenças sutis é ainda mais difícil porque a própria percepção foi invadida e
colonizada pelas novas tecnologias em um processo histórico cada vez mais
acelerado e tendo a própria ideia de rapidez como um valor." diz Marcia Tiburi. E ao dizer que a própria ideia
de rapidez tornou-se um valor faz-me lembrar uma imagem criada por Thich Nhat Hanh (1926 - ....),
um monge budista, pacifista, escritor e poeta vietnamita indicado por Martin
Luther King ao prêmio Nobel da Paz, que serve como descrição de nossa condição
mundial. Qual é a imagem? "A humanidade se assemelha a um
homem montado num cavalo em disparada, e que ao ser perguntado: 'Para onde você está indo?' responde: 'Não sei, pergunte
ao cavalo!'". Sinistro, não?!
Com a intenção de ajudá-los a refletir sobre "ter a
própria ideia de rapidez como um valor", cito aqui o seguinte "conselho"
de Clarice Lispector. "Mude, mas comece devagar, por que a direção é mais
importante que a velocidade". Será que é apenas no momento de mudar que a
direção é mais importante que a velocidade ou será que o conselho de Clarice é
válido para qualquer coisa que se decida fazer na vida?
"A
Revolução Industrial implica uma revolução na percepção. A história das
tecnologias é a história da mudança de percepção. As pessoas, que antes eram
obrigadas a esforçar-se em nível físico para perceber algo, são auxiliadas
agora por aparatos técnicos. (...) A função das próteses é facilitar aquilo que
seria difícil sem elas. (...)", diz Marcia
Tiburi. Aparatos técnicos e próteses, eis duas coisas que,
considerando o que sobre elas é dito no texto de Marcia Tiburi, vejo como uma
mesma coisa, como facilitadores produzidos pela tecnologia.
"A
Revolução Industrial implica uma revolução na percepção. A história das
tecnologias é a história da mudança de percepção. (...) A oferta infinita de
próteses de percepção produz efeitos sobre o pensamento, os sentimentos e as
ações.", afirma Marcia Tiburi. E usando apenas
essas afirmações, deixo-lhes algumas indagações. Será que faz sentido
considerar neutra uma coisa que "oferecendo uma infinidade de próteses de
percepção produz efeitos sobre o pensamento, os sentimentos e as ações"?
Será que algo que produz efeitos sobre o pensamento, os sentimentos e as ações pode
ser considerado transformador de pessoas? Será que algo capaz de transformar
pessoas deve ser considerado neutro? Será que algum dia cairá por terra a propalada,
e enganosa, neutralidade atribuída à tecnologia?
"Ora, vivemos em uma
cultura em que nos despreocupamos de pensar porque alguém – ou algo – pensa por
nós. Não precisamos mais escolher, porque o "algoritmo" escolhe por
nós.", diz Marcia Tiburi. O problema é que, no estágio
evolutivo moral em se encontra a autodenominada espécie inteligente do
universo, quando alguém – ou algo – escolhe por nós a escolha não é feita em
conformidade com as nossas necessidades, e sim com os interesses daquele – ou
daquilo – que faz a escolha. E ao falar em algoritmo, vem-me à lembrança a postagem publicada em 26 de março de 2018 sob o título Algoritmos e desigualdade. Postagem que,
na minha insuspeita (!) opinião, vale a pena ler.
Sim, "Discernir, ou seja, perceber diferenças, torna-se
cada vez mais difícil em um mundo a cada dia mais bruto e inconsciente de sua
brutalidade.". Por neles ver afinidade com o que
seja discernir, eu não consegui deixar de reproduzir nesta postagem os dois
parágrafos extraídos do livro Ficando longe do fato de já
estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace, apresentados a seguir. Contendo
o Discurso de Paraninfo proferido em 21 de maio de 2005 no Kenyon College eles
são apresentados no referido livro em um ensaio intitulado Isto é água.
"Saudações, obrigado e parabéns à turma de formandos de 2005 do Kenyon. Dois peixinhos estão nadando e cruzam com um peixe mais velho que vem nadando no sentido contrário, que os cumprimenta dizendo: 'Bom dia, meninos. Como está a água?' Os dois peixinhos continuam nadando por mais algum tempo, até que um deles olha para o outro e pergunta: 'Água? Que diabo é isso?'."
"O emprego de historinhas didáticas com ar de parábola é um requisito padrão dos discursos de paraninfo nos Estados Unidos. (...) Minha intenção com a historinha dos peixes é simplesmente mostrar que as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeito."
Sim, "as
realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais
difíceis de ver e conversar a respeito." Por quê? Porque "vivemos em uma cultura em que
nos despreocupamos de perceber diferenças porque alguém – ou algo – percebe por
nós".
Iniciada com a reprodução dos
dois primeiros parágrafos do excelente texto de Marcia Tiburi, creio que a
melhor maneira de terminar esta postagem seja reproduzindo também seu parágrafo
final. Para ajudar no entendimento do que seja experiência "orgânica" da aprendizagem, segue a seguinte explicação
dada por Marcia: "Podemos chamar de aprendizado orgânico aquele que
surge sem o intercurso de máquinas."
"Hoje vivemos um tipo de alienação sem solução porque não podemos mais retornar à experiência 'orgânica' da aprendizagem, já que estamos entregues a esse mundo tecnologicamente pronto. É certo que há muita criatividade a partir das novas tecnologias. Mas essa criatividade é totalmente diferente da que existia antes, quando era mediada por outros tipos de instrumentos. O discernimento sobre essas diferenças é o que a tecnologia não nos permite mais."
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