Após algumas postagens trazendo antigos – e provocativos
– textos, segue uma que traz um texto cuja publicação é muito recente.
Publicado na edição de outubro de 2019 da revista Cult na coluna de Marcia Tiburi, ele focaliza "algo cuja falta
é um mal em nossa época", como diz a autora na primeira frase de seu
excelente texto. Quem é Marcia Tiburi? Segundo a qualificação apresentada na
revista, ela "É escritora, professora e doutora em filosofia pela UFRGS,
autora de Delírio do Poder (Record)." Segundo pesquisa feita na internet, ela
também é autora de mais de 20 livros. Feito este preâmbulo, segue o texto
intitulado Discernimento.
Discernimento
Sobre a importância de um aprendizado orgânico
A falta de discernimento é um
mal em nossa época. Ela resulta do apego ao que parece prático e da
desvalorização do pensamento reflexivo – considerado, de modo geral, como perda
de tempo. Discernir, ou seja, perceber diferenças, torna-se cada vez mais
difícil em um mundo a cada dia mais bruto e inconsciente de sua brutalidade.
Perceber diferenças sutis é
ainda mais difícil porque a própria percepção foi invadida e colonizada pelas
novas tecnologias em um processo histórico cada vez mais acelerado e tendo a
própria idéia de rapidez como um valor.
A Revolução Industrial implica
uma revolução na percepção. A história das tecnologias é a história da mudança
de percepção. As pessoas, que antes eram obrigadas a esforçar-se em nível
físico para perceber algo, são auxiliadas agora por aparatos técnicos. Há
hábitos comportamentais e mentais que derivam dessa relação com tais aparatos.
Lembremos do problemático uso da máquina de calcular nas escolas. Todos que
estudaram matemática na infância sem usar esses mecanismos devem ter
introjetado uma metodologia de pensamento e, mesmo que não lembrem mais da
aritmética, provavelmente ficaram marcados pela experiência do esforço de
encontrar soluções. Aprender a fazer cálculos sem máquina implica um alto nível
de desenvolvimento da capacidade de discernimento. Do mesmo modo que aprender a
escrever à mão.
Podemos chamar de aprendizado
orgânico aquele que surge sem o intercurso de máquinas. Ler, escrever e
desenhar são seus exemplos mais simples. Todo aprendizado voltado a uma
experiência do corpo.
O aprendizado orgânico, a
relação com o conhecimento em um nível de experiência vivida, tende a formar
naquele que faz a experiência um senso de valor da própria coisa conhecida.
Esse valor tem o sentido de uma estima, já que a valorização do saber nasce do
próprio encontro com o saber. Ele tem o mesmo sentido de um valor moral que se
adquire por experiência direta ou indireta, por meio de estudos, pesquisas e
orientações escolares ou culturais. Nem sempre esse encontro é possível, e
então vemos interrompida a experiência básica que torna um ser humano um ser
cultural.
Ora, vivemos em uma cultura em
que nos despreocupamos de pensar porque alguém – ou algo – pensa por nós. Não
precisamos mais escolher, porque o "algoritmo" escolhe por nós. Nas
redes sociais, bots fazem todo um
trabalho relacionado ao ódio. No limite, não precisaríamos sequer odiar alguém
(para falar de um afeto da moda), porque um "robô" odeia por nós.
Neste momento histórico e
social, é como se as pessoas abandonassem o exercício e o uso da própria
inteligência em função do avanço da inteligência artificial. A oferta infinita
de próteses de percepção produz efeitos sobre o pensamento, os sentimentos e as
ações. A função das próteses é facilitar aquilo que seria difícil sem elas.
Aquela dificuldade, muitas vezes associada à idéia de que o conhecimento
implica sofrimento, era, no entanto, produtora de novos tipos de conhecimento.
Hoje vivemos um tipo de
alienação sem solução porque não podemos mais retornar à experiência
"orgânica" da aprendizagem, já que estamos entregues a esse mundo
tecnologicamente pronto. É certo que há muita criatividade a partir das novas
tecnologias. Mas essa criatividade é totalmente diferente da que existia antes,
quando era mediada por outros tipos de instrumentos. O discernimento sobre
essas diferenças é o que a tecnologia não nos permite mais.
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Embora estejamos vivendo em uma época em que cultua-se a "desvalorização do pensamento
reflexivo – considerado, de modo geral, como perda de tempo", que tal refletirmos sobre o que diz Marcia Tiburi?
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