"A
história se passa em Newcastle, na Inglaterra. Mas poderia ser em qualquer
lugar. É sobre a uberização de nossas vidas, a precariedade de nossas relações
de trabalho, a ilusão da informalidade como panaceia para o desemprego. (...) O
filme mostra uma realidade que, segundo Loach, todo mundo conhece, mas evita
comentar. Ricky cai na conversa de que será emancipado. Ricky contrai dívidas
para comprar uma van, faz a mulher vender seu carro e se torna escravo das
entregas."
Iludir-se com pseudosoluções;
cair em falsas conversas; evitar a realidade e contrair dívidas que tornam o
indivíduo escravo. Será que essa sinistra combinação serve para explicar as deploráveis
condições em que a imensa maioria da humanidade (sic) sobrevive em um mundo
comandado por um diminuto grupo de gigantescas corporações? No meu entender,
sim.
"Dona do Google tem lucro de R$ 7 bilhões", eis o título de uma notícia publicada na edição de 29 de outubro de 2019 do jornal O Estado de S. Paulo. Notícia da qual selecionei os seguintes trechos. "A Alphabet, controladora do Google, registrou lucro líquido de US$ 7 bilhões no terceiro trimestre (...). O resultado ficou aquém das expectativas de analistas (...) que apontavam lucro líquido acima de US$ 8 bilhões. A decepção dos investidores pressionou as ações da empresa, que caíram mais de 1% após o fechamento do mercado."
Sete bilhões de lucro em apenas
um trimestre! É tanto dinheiro que Eduardo Gayer, o autor da notícia, até se
confundiu. Enquanto no título a quantia é expressa em R$, no texto ela é
expressa em US$. Considerando que o revisor deve ter sido demitido, devido à
contenção de custos, o resultado esta aí: a expansão da quantidade de erros. "A
decepção dos investidores pressionou as ações da empresa (...), pois o
resultado ficou aquém das expectativas de analistas", diz a notícia. Ou
seja, quando as expectativas não são concretizadas, o que fazem os
investidores? Pressionam as ações da empresa. Neste ponto, o método das
recordações sucessivas leva-me a trazer para esta postagem a passagem de um
livro de Zygmunt Bauman intitulado Globalização:
As consequências humanas (publicado pela Jorge Zahar Editor, em 1999)
apresentada no próximo parágrafo.
"A companhia pertence às pessoas que nela investem – não aos seus empregados, fornecedores ou à localidade em que se situa.". Foi assim que Albert J. Dunlap, o célebre "racionalizador" da empresa moderna (um dépeceur – um "açougueiro", um "esquartejador" – na maliciosa, mas precisa definição do sociólogo Denis Duclos, do Centro Nacional de Pesquisas Sociais da França resumiu seu credo no autocongratulante relato de suas atividades que a Times Books publicou para esclarecimento e edificação de todos os que buscam o progresso econômico.
"Busca do progresso
econômico", eis ao que é reduzido o valor da vida em um mundo comandado
por corporações cada vez maiores. Busca que me faz lembrar algo dito por Nuccio
Ordine, professor de literatura italiana da Universidade da Calábria, em artigo
intitulado Democracia líquida,
publicado na edição de 16.02.2014 do jornal O Estado de S. Paulo. "Reduzir
o valor da vida ao dinheiro mata toda possibilidade de idealizar um mundo
melhor.".
Corporações! Eis um dos maiores
males desta insana civilização que cultua o lucro material como valor supremo,
pois é em função desse culto que as empresas abrem mão de qualquer escrúpulo em
busca de seu aumento de tamanho. "O filme não cita a Amazon. Mas Loach faz
a associação em entrevistas.", diz Ruth da Aquino em seu texto sobre o
filme. Google, Amazon, Uber, eis algumas das corporações com lucros
estratosféricos em uma sociedade (sic) com relações de trabalho cada vez mais
precárias; com remunerações cada vez mais aviltantes.
"Pagando bem que mal tem?",
eis um ditado popular que foi moda há uma década. Um ditado que pode ser
interpretado assim: se a quantia recebida for alta torna-se válido fazer
qualquer coisa. O tempo passou, e hoje o que se vê são pessoas fazendo qualquer
coisa em troca de qualquer remuneração. O próximo parágrafo contém parte de uma
charge publicada no jornal Folha de
S.Paulo que pode ser vista no final desta postagem.
"Pedalo 15 km da quebrada onde moro até aqui e faço em média 30 entregas por dia com zero cobertura contra acidentes. Se morrer, morri. O importante é trabalhar né, mano!??"
"A história se passa em
Newcastle, na Inglaterra. Mas poderia ser em qualquer lugar.", eis as frases
iniciais do texto de Ruth de Aquino. Sendo assim, o primeiro dos dois próximos parágrafos
(extraídos do texto de Ruth) apresenta o trecho que associo ao extraído da
referida charge. Afinal, como se poderá constatar após a comparação do que diz
a charge com o que diz o texto de Ruth, "Se morrer, morreu. O importante é
trabalhar né, mano!??".
"Dias de 14 horas de trabalho, sem folga. (...) Ricky fica abandonado a riscos e multas. Um aparelho de scanner não segue apenas os pacotes. Segue ele próprio e começa a apitar quando Ricky se afasta da van por dois minutos. Ele urina numa garrafa de plástico que fica na mala, para não perder tempo. Está livre para trabalhar até dormir ao volante, mas não para tirar folga por doença, estresse ou problema familiar. O patrão passa a ser um algoritmo, o controle passa a ser no celular."
"Na garagem da PDF, Ricky não encontra colegas de trabalho. E sim competidores. Todos disputando a máxima produtividade, as metas, o maior número de pacotes entregues. A competição se torna doentia. Não há mais RH e sim, RD, Recursos Desumanos."
E tome método das recordações
sucessivas! "Se quisermos sobreviver a nós mesmos, precisamos abandonar os
hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de
distribuir.", eis uma afirmação da qual lembrei ao ler o parágrafo acima.
Onde a encontrei? Em um artigo de Sidarta Ribeiro, intitulado Em busca do sonho perdido – Voltemos a narrar as consequências de
nossos atos, publicado na edição de 17 de novembro de 2019 do jornal Folha de S.Paulo. Quem é Sidarta
Ribeiro? Segundo a qualificação apresentada abaixo do artigo, ele é professor
titular e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, doutor pela
Universidade Rockefeller (EUA), pós-doutor pela Universidade Duke (EUA) e
autor, entre outros, de 'O Oráculo da Noite: A História e a Ciência dos Sonhos'
(Companhia das Letras).
"Se
quisermos sobreviver a nós mesmos, precisamos" nos conscientizar da
seguinte afirmação de (James Baldwin
[1924-1987], escritor e ativista americano): "Nem tudo que se
enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja
enfrentado." James Baldwin era muito bom em afirmações. "Somos responsáveis pelo mundo no qual nos
encontramos, pelo simples fato de que somos a única força consciente capaz de
transformá-lo.", é outra da qual precisamos nos conscientizar. Era James
Baldwin um utopista? E o método das recordações sucessivas ataca outra vez. A utopia ou a morte, eis o livro de René
Dumont que me veio à mente ao indagar se James Baldwin era um utopista. E ao
citar a necessidade de escolha entre a utopia ou a morte, me vem à mente outra escolha:
a citada por Dumbledore, o mago barbudo do filme Harry Potter e o Cálice de Fogo: "Tempos difíceis estão por vir. Em breve, teremos que
escolher entre o que é certo e o que é fácil.".
"Um sistema não pode beneficiar apenas quem é ultrarrico ou ultrapoderoso, não pode aprofundar a desigualdade. Ken Loach filma a derrota dos honestos e sonhadores. É um filme pessimista.", eis as palavras finais do texto de Ruth de Aquino que provocou estas reflexões.
E ao falar em pessimismo, Ruth faz-me
lembrar o lema que Frei Betto diz dirigir sua vida: "Guardemos o
pessimismo para dias melhores.". Ou seja, quanto piores sejam os tempos
menos pessimistas devemos ser. Por quê? Porque em tempos difíceis o pessimismo
nos levaria a afundar de vez. Dito isto, façamos o seguinte: deixemos de lado o
pessimismo; reconheçamos a veracidade da primeira das duas afirmações de James Baldwin
citadas acima; e aceitemos a responsabilidade que nos é atribuída na segunda. Afinal,
"Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser
modificado até que seja enfrentado."
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