quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Peripatético

"Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou."

  (Jacques Lacan)
Iniciada no dia 06 com uma postagem intitulada "O dia em que vi Deus", a série de postagens referentes ao mês de dezembro prosseguiu com uma intitulada "O desempregado", publicada no dia 12. Fértil, em termos de provocação de reflexões, esta originou a próxima, publicada no dia 20 sob o título "Reflexões provocadas por 'O desempregado'".
Algo em comum entre as três postagens? Sim, todas focalizam aquele que é a figura central de inúmeras instituições autodenominadas cristãs: Jesus. Percebendo que em duas delas Jesus aparece na condição de desempregado, e lembrando de uma antiga prática existente em muitas empresas - a escolha do funcionário (em outras palavras, do empregado) do mês-, veio-me à mente uma estranha ideia: encerrar a série de postagens referentes ao mês de dezembro com mais uma focalizando Jesus e dessa  forma sugerir, nestes tempos de desemprego desenfreado, uma nova prática: a escolha do desempregado do mês. Dito isto segue um antigo texto de autoria de Max Gehringer publicado na edição número 57 da revista Você S/A.
Peripatético
Numa das empresas em que trabalhei, eu fazia parte de um grupo de treinadores voluntários. Éramos coordenados pelo chefe de treinamento, o professor Lima, e tínhamos até um lema: "Para poder ensinar, antes é preciso aprender" (copiado, se bem me recordo, de uma literatura do Senai).
Um dia, nos reunimos para discutir a melhor forma de ministrar um curso para cerca de 200 funcionários. Estava claro que o método convencional - botar todo mundo numa sala - não iria funcionar, já que o professor insistia na necessidade da interação, impraticável com um público daquele tamanho.
Como sempre acontece nessas reuniões, a imaginação voou longe do objetivo, até que, lá pelas tantas, uma colega propôs usarmos um trecho do Sermão da Montanha como tema do evento. E o professor, que até ali estava meio quieto, respondeu de primeira. Aliás, pensou alto: - Jesus era peripatético.
Seguiu-se uma constrangida troca de olhares, mas, antes que o hiato pudesse ser quebrado por alguém com coragem para retrucar a afronta, dona Dirce, a secretária, interrompeu a reunião para dizer que o gerente de RH precisava falar urgentemente com o professor. E lá se foi ele, deixando a sala à vontade para conspirar.
- Não sei vocês, mas eu achei esse comentário de extremo mau gosto - disse a Laura.
- Eu nem diria de mau gosto, Laura. Eu diria ofensivo mesmo - emendou o Jorge, para acrescentar que estava chocado, no que foi amparado por um silêncio geral.
- Talvez o professor não queira misturar religião com treinamento. Mas eu até vejo uma razão para isso - ponderou o Sales, que era o mais ponderado de todos.
- Que é isso, Sales? Que razão?
- Bom, para mim, é óbvio que ele é ateu.
- Não diga!
- Digo. Quer dizer, é um direito dele. Mas daí a desrespeitar a religiosidade alheia...
Cheios de fúria, malhamos o professor durante uns dez minutos e, quando já o estávamos sentenciando à fogueira eterna, ele retornou. Mas nem percebeu a hostilidade. Já entrou falando:
- Então, como ia dizendo, podíamos montar várias salas separadas e colocar umas 20 pessoas em cada uma. É verdade que cada treinador teria de repetir a mesma apresentação várias vezes, mas... Por que vocês estão me olhando desse jeito?
- Bom, falando em nome do grupo, professor, essa coisa aí de peripatético, veja bem...
- Certo! Foi daí que me veio a idéia. Jesus Se locomovia para fazer pregações, como os filósofos também faziam, ao orientar Seus discípulos. Mas Jesus foi o Mestre dos Mestres; portanto, a sugestão de usar o Sermão da Montanha foi muito feliz. Teríamos uma bela mensagem moral e o deslocamento físico... Mas que cara é essa? Peripatético quer dizer "o que ensina caminhando".
E nós ali, encolhidos de vergonha. Bastaria um de nós ter tido a humildade de confessar que desconhecia a palavra, que o resto concordaria e tudo se resolveria com uma simples ida ao dicionário.
Isto é, para poder ensinar, antes era preciso aprender.
Finalmente, aprendemos. Duas coisas.
A primeira é: o fato de todos estarem de acordo não transforma o falso em verdadeiro.
E a segunda é que a sabedoria tende a provocar discórdia, mas a ignorância é quase sempre unânime.
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Lido esse instigante texto de Max Gehringer, pensando alto, indaguei a mim mesmo: - se em vez de o pensamento alto do professor ter sido - Jesus era peripatético -,  ele tivesse sido - Jesus era comunista -, qual teria sido a reação da turma? Será que assim como ela não sabia o significado de peripatético, ela não saberia também o significado de comunista? E prosseguindo na prática das indagações sucessivas, a próxima foi: será que a imensa maioria dos que se intitulam cristãos sabe o significado de cristão?
"- Bom, para mim, é óbvio que ele é ateu.", disse aquele que era considerado o mais ponderado da turma. Os grifos são meus. E se o mais ponderado está nesse nível, creio que o melhor seja nem tentar imaginar em qual estão os demais. Não ter a humildade de confessar o desconhecimento de uma palavra, eis algo criticado por Max Gehringer em seu texto, porém, infelizmente, muito praticado pela imensa maioria dos integrantes da autodenominada espécie inteligente do universo. 
Não, como conclui Max Gehringer, "o fato de todos estarem de acordo não transforma o falso em verdadeiro". Sim, como conclui Max Gehringer, "a sabedoria tende a provocar discórdia, mas a ignorância é quase sempre unânime".
E ao falar em ignorância, esse antigo texto de Max Gehringer faz-me lembrar de uma afirmação que li em um recente artigo publicado na edição de 28 de novembro de 2023 do jornal O Globo, cuja cópia me foi enviada pelo sogro da minha filha. O autor? João Alegria, Professor e atual Secretário Geral da Fundação Roberto Marinho. A afirmação? "A ignorância nos tranquiliza, mas aprender tira o sono e obriga a mudanças."
E pensando alto mais uma vez, compartilho com você a seguinte conclusão: uma das coisas que uma imensa quantidade dos integrantes da espécie citada no terceiro parágrafo acima demonstra apreciar bastante é a tranquilidade. A tranquilidade, advinda da ignorância, que possibilita-lhe não só não ter o seu sono tirado, mas também manter a desobrigação de atuar em prol de mudanças que favoreçam o coletivo. Será que tal conclusão faz sentido pra você?

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