"Eu nunca vi Deus, mas sinto a Sua presença em todos os
momentos de minha vida."
(Abraham Lincoln)
Após "Quem é o seu Deus?" e "Reflexões provocadas por 'Quem é o seu Deus?'", segue uma postagem
intitulada O dia em que vi Deus. Quem
é a pessoa que diz ter visto Deus? Frei Betto. Quando, onde e como ele o viu é
algo que você poderá saber se ler o relato feito, em seu livro Típicos Tipos publicado em 2022, e
reproduzido a seguir.
O dia em que vi Deus
O Natal é a
despapainoelização do espírito. É quando o coração se torna manjedoura e,
aberto ao outro, acolhe, abraça, acarinha. Violenta-se quem faz da festa do
Menino Jesus uma troca insana de mercadorias. Quantas ausências há nesses
presentes!
Em pleno verão, nos
trópicos, o corpo empanturra-se de nozes e castanhas, vinhos e carnes gordas,
sem que se faça presente para aqueles que, caídos à beira do caminho, aguardam
um gesto samaritano.
Criança em Minas,
aprendi com meus pais a depositar ao lado do presépio a lista de meus sonhos. Nada
de pedidos a Papai Noel. No decorrer do Advento, eu engordava a lista: a cura
de um parente enfermo; um emprego para o filho da lavadeira; a paz mundial.
Papai insistia para que
eu registrasse meus sonhos mais íntimos. Aos oito anos, escrevi: "Quero ver Deus". Minha mãe ponderou: "Não
basta Nossa Senhora, como as crianças de Fátima?". Não, eu queria ver Deus
Pai. Nem imagens dele eu encontrava nas igrejas, que exibem, de sobejo, ícones
de Jesus e pombas que evocam o Espírito Santo.
Na tarde daquele 25 de dezembro, meus pais levaram-me a
um hospital pediátrico. Distribuímos alegria e balas às crianças, vítimas de
traumas ou tomadas pelo câncer ou outras enfermidades. Fiquei muito
impressionado com um menino de seis anos, careca.
Na saída, mamãe indagou-me: "Gostou de ver
Deus?". Fiquei confuso: "Só vi crianças doentes", respondi.
Então ela me ensinou que a fé cristã reconhece que todos os seres humanos são
imagem e semelhança de Deus. Por isso é tão difícil ver Deus. Pois não é fácil
encarar a radical sacralidade de todo homem e de toda mulher.
Aos poucos, entendi que o modo de comemorar o Natal forma
filhos consumistas ou altruístas. E descobri que Deus é tanto mais invisível
quanto mais esperamos que ele entre pela porta da frente. Sorrateiro, ele chega
pelos fundos, por meio de um sem-terra chamado Abraão; um revolucionário de
nome Moisés; um músico com fama de agitador, Davi; uma prostituta, Raab; um
subversivo conhecido por Jeremias; um alucinado, Daniel; um casal de artesãos
que, rejeitado em Belém, ocupa um pasto para trazer o Filho à vida: Maria e
José.
No Evangelho de Mateus (25, 31-46), Jesus identifica-se
com quem tem fome e sede, é doente ou prisioneiro, oprimido ou excluído.
Aqueles que para os "sábios" são a escória da sociedade, para Deus
são os convidados ao banquete do Reino.
Desde então, aprendi que o Natal é todo dia, basta
abrir-se ao outro e à estrela que, acima das mazelas deste mundo, acende a
esperança de um futuro melhor. Sonhar com um mundo em que o Pai Nosso
transpareça na grande festa do pão nosso. Pois quem reparte o pão, partilha
Deus.
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"O Natal é a despapainoelização do espírito. É quando o coração se torna manjedoura e, aberto ao outro, acolhe, abraça, acarinha. Violenta-se quem faz da festa do Menino Jesus uma troca insana de mercadorias. Quantas ausências há nesses presentes!"
Sim, "Violenta-se quem faz da festa do
Menino Jesus uma troca insana de mercadorias." Quem faz da festa uma troca do festejado. Troca
feita por uma escolha equivocada. Escolha equivocada, eis algo pelo qual Jesus
passou em uma ocasião citada na Bíblia e até hoje continua passando no último mês
de cada ano. Na ocasião citada na Bíblia, ao ser preterido em prol de um
criminoso de nome Barrabás, em uma "votação" para escolher quem seria
favorecido por um indulto de soltura. No último mês de cada ano, ao ser preterido
em prol de alguém que o saudoso Millôr Fernandes descreve assim:
"Papai Noel, filho da exploração comercial, da ignorância infantil e da incapacidade de reação paternal, é um velho meio idiota, meio malandro, extremamente desonesto, que se presta a servir de intermediário para o enriquecimento da sociedade de consumo, em todo o mundo. Um canalha."
Ou seja, preterido uma vez em prol de um criminoso; em
outra vez em prol de um canalha! Ô raça incompetente para fazer escolhas, hein!
"Mamãe indagou-me: "Gostou de ver Deus?". Fiquei confuso: "Só vi crianças doentes", respondi. Então ela me ensinou que a fé cristã reconhece que todos os seres humanos são imagem e semelhança de Deus. Por isso é tão difícil ver Deus. Pois não é fácil encarar a radical sacralidade de todo homem e de toda mulher."
"Reconhecer que todos os seres humanos são imagem e
semelhança de Deus", eis o que "torna tão difícil ver Deus." Vê-lo,
inclusive, em situações exploradas para tentar provar sua inexistência. Situações
como a descrita a seguir.
Há uma célebre cena ocorrida em um campo de concentração em que, diante do enforcamento de uma criança judia pelos nazistas, alguém perguntou: Onde está Deus que não está vendo esta criança ser enforcada? Então, alguém que estava ao lado respondeu: Está nela. Deus está sendo enforcado nela.
Confundir incapacidade de identificar corretamente o que se
tem diante dos olhos com inexistência, eis um dos estupendos equívocos da autodenominada
espécie inteligente do universo. Incapacidade que leva a tornar algo invisível,
simplesmente, por esperar sua chegada pelo lugar errado, como explica Frei
Betto.
"Descobri que Deus é tanto mais invisível quanto mais esperamos que ele entre pela porta da frente. Sorrateiro, ele chega pelos fundos, por meio de um sem-terra chamado Abraão; um revolucionário de nome Moisés; um músico com fama de agitador, Davi; uma prostituta, Raab; um subversivo conhecido por Jeremias; um alucinado, Daniel; um casal de artesãos que, rejeitado em Belém, ocupa um pasto para trazer o Filho à vida: Maria e José. [...] Aqueles que para os "sábios" são a escória da sociedade, para Deus são os convidados ao banquete do Reino."
Sobre a incapacidade de reconhecer Deus, segue uma curta
história intitulada A irmã mais velha
pergunta publicada em uma antiga coluna jornalística do escritor Paulo
Coelho que, no meu entender, ilustra bem tal questão.
A irmã mais velha perguntaQuando seu irmão nasceu, Sa-chi Gabriel insistia com os pais para ficar sozinha com o bebê. Temendo que, como muitas crianças de 4 anos, estivesse enciumada e quisesse maltratá-lo, eles não deixaram.Mas Sa-chi não dava mostra de ciúmes. E como sempre tratava o bebê com carinho, os pais resolveram fazer um teste. Deixaram Sa-chi com o recém-nascido, e ficaram observando seu comportamento através da porta semi-aberta.Encantada por ter seu desejo satisfeito, a pequena Sa-chi aproximou-se do berço na ponta dos pés, curvou-se até o bebê e disse: "Me diz como Deus é! Eu já estou esquecendo!"
Esquecer coisas que traz ao nascer, eis um grave problema
para a maioria dos integrantes da pretensa espécie inteligente do universo.
Sim, como diz Vladimir Maiakovski, [1893-1930], poeta, dramaturgo e teórico
russo:
"Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração."
Sim, fazendo-nos esquecer coisas que trazemos ao nascer, "Os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do
coração.", e ressecando-o
impede-nos de entender o que Frei Betto diz ter, aos poucos, entendido.
"Aos poucos, entendi que o modo de comemorar o Natal forma filhos consumistas ou altruístas. [...] Aprendi que o Natal é todo dia, basta abrir-se ao outro e à estrela que, acima das mazelas deste mundo, acende a esperança de um futuro melhor. Sonhar com um mundo em que o Pai Nosso transpareça na grande festa do pão nosso. Pois quem reparte o pão, partilha Deus."
"Entender
o modo de comemorar o Natal", eis a grande questão. Questão cuja solução passa,
inevitavelmente, pela identificação correta de quem deve ser o festejado nesta data
e da finalidade de sua vinda a esta dimensão ocorrida há 2023 anos. Identificações
facilmente realizáveis ouvindo uma canção de Roberto Carlos, lançada há meio
século (faz tempo, hein!), que considero uma de suas mais belas canções. Canção
que até o momento da publicação desta postagem podia ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=WbYHYKe6ApE. Segundo relatos, há quem ao escutar essa canção sinta necessidade
de um lenço. Sobre a referida finalidade, não consigo segurar minha vontade de
dar um spoiler: "exemplificar
o caminho certo pra seguir".
"Acender a esperança de um futuro melhor. Sonhar com
um mundo em que o Pai Nosso transpareça na grande festa do pão nosso. Pois quem
reparte o pão, partilha Deus.", eis a afirmação final de Frei Betto. Será
que concretizar tais coisas é algo que passa, inevitavelmente, pelo
desenvolvimento, em cada um de nós, da capacidade de ver Deus (como conseguiu
Frei Betto) ou de, pelo menos, "conseguir sentir sua presença em todos os
momentos da vida, mesmo sem nunca tê-lo visto" (como conseguiu Abraham
Lincoln)? – eis a minha penúltima indagação. A última? Qual é a sua resposta à
penúltima?
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