quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

O dia em que vi Deus

"Eu nunca vi Deus, mas sinto a Sua presença em todos os momentos de minha vida."
 (Abraham Lincoln)
Após "Quem é o seu Deus?" e "Reflexões provocadas por 'Quem é o seu Deus?'", segue uma postagem intitulada O dia em que vi Deus. Quem é a pessoa que diz ter visto Deus? Frei Betto. Quando, onde e como ele o viu é algo que você poderá saber se ler o relato feito, em seu livro Típicos Tipos publicado em 2022, e reproduzido a seguir.
O dia em que vi Deus
O Natal é a despapainoelização do espírito. É quando o coração se torna manjedoura e, aberto ao outro, acolhe, abraça, acarinha. Violenta-se quem faz da festa do Menino Jesus uma troca insana de mercadorias. Quantas ausências há nesses presentes!
Em pleno verão, nos trópicos, o corpo empanturra-se de nozes e castanhas, vinhos e carnes gordas, sem que se faça presente para aqueles que, caídos à beira do caminho, aguardam um gesto samaritano.
Criança em Minas, aprendi com meus pais a depositar ao lado do presépio a lista de meus sonhos. Nada de pedidos a Papai Noel. No decorrer do Advento, eu engordava a lista: a cura de um parente enfermo; um emprego para o filho da lavadeira; a paz mundial.
Papai insistia para que eu registrasse meus sonhos mais íntimos. Aos oito anos, escrevi: "Quero ver Deus". Minha mãe ponderou: "Não basta Nossa Senhora, como as crianças de Fátima?". Não, eu queria ver Deus Pai. Nem imagens dele eu encontrava nas igrejas, que exibem, de sobejo, ícones de Jesus e pombas que evocam o Espírito Santo.
Na tarde daquele 25 de dezembro, meus pais levaram-me a um hospital pediátrico. Distribuímos alegria e balas às crianças, vítimas de traumas ou tomadas pelo câncer ou outras enfermidades. Fiquei muito impressionado com um menino de seis anos, careca.
Na saída, mamãe indagou-me: "Gostou de ver Deus?". Fiquei confuso: "Só vi crianças doentes", respondi. Então ela me ensinou que a fé cristã reconhece que todos os seres humanos são imagem e semelhança de Deus. Por isso é tão difícil ver Deus. Pois não é fácil encarar a radical sacralidade de todo homem e de toda mulher.
Aos poucos, entendi que o modo de comemorar o Natal forma filhos consumistas ou altruístas. E descobri que Deus é tanto mais invisível quanto mais esperamos que ele entre pela porta da frente. Sorrateiro, ele chega pelos fundos, por meio de um sem-terra chamado Abraão; um revolucionário de nome Moisés; um músico com fama de agitador, Davi; uma prostituta, Raab; um subversivo conhecido por Jeremias; um alucinado, Daniel; um casal de artesãos que, rejeitado em Belém, ocupa um pasto para trazer o Filho à vida: Maria e José.
No Evangelho de Mateus (25, 31-46), Jesus identifica-se com quem tem fome e sede, é doente ou prisioneiro, oprimido ou excluído. Aqueles que para os "sábios" são a escória da sociedade, para Deus são os convidados ao banquete do Reino.
Desde então, aprendi que o Natal é todo dia, basta abrir-se ao outro e à estrela que, acima das mazelas deste mundo, acende a esperança de um futuro melhor. Sonhar com um mundo em que o Pai Nosso transpareça na grande festa do pão nosso. Pois quem reparte o pão, partilha Deus.
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"O Natal é a despapainoelização do espírito. É quando o coração se torna manjedoura e, aberto ao outro, acolhe, abraça, acarinha. Violenta-se quem faz da festa do Menino Jesus uma troca insana de mercadorias. Quantas ausências há nesses presentes!"
Sim, "Violenta-se quem faz da festa do Menino Jesus uma troca insana de mercadorias." Quem faz da festa uma troca do festejado. Troca feita por uma escolha equivocada. Escolha equivocada, eis algo pelo qual Jesus passou em uma ocasião citada na Bíblia e até hoje continua passando no último mês de cada ano. Na ocasião citada na Bíblia, ao ser preterido em prol de um criminoso de nome Barrabás, em uma "votação" para escolher quem seria favorecido por um indulto de soltura. No último mês de cada ano, ao ser preterido em prol de alguém que o saudoso Millôr Fernandes descreve assim:
"Papai Noel, filho da exploração comercial, da ignorância infantil e da incapacidade de reação paternal, é um velho meio idiota, meio malandro, extremamente desonesto, que se presta a servir de intermediário para o enriquecimento da sociedade de consumo, em todo o mundo. Um canalha."
Ou seja, preterido uma vez em prol de um criminoso; em outra vez em prol de um canalha! Ô raça incompetente para fazer escolhas, hein!
"Mamãe indagou-me: "Gostou de ver Deus?". Fiquei confuso: "Só vi crianças doentes", respondi. Então ela me ensinou que a fé cristã reconhece que todos os seres humanos são imagem e semelhança de Deus. Por isso é tão difícil ver Deus. Pois não é fácil encarar a radical sacralidade de todo homem e de toda mulher."
"Reconhecer que todos os seres humanos são imagem e semelhança de Deus", eis o que "torna tão difícil ver Deus." Vê-lo, inclusive, em situações exploradas para tentar provar sua inexistência. Situações como a descrita a seguir.
Há uma célebre cena ocorrida em um campo de concentração em que, diante do enforcamento de uma criança judia pelos nazistas, alguém perguntou: Onde está Deus que não está vendo esta criança ser enforcada? Então, alguém que estava ao lado respondeu: Está nela. Deus está sendo enforcado nela.
Confundir incapacidade de identificar corretamente o que se tem diante dos olhos com inexistência, eis um dos estupendos equívocos da autodenominada espécie inteligente do universo. Incapacidade que leva a tornar algo invisível, simplesmente, por esperar sua chegada pelo lugar errado, como explica Frei Betto.
"Descobri que Deus é tanto mais invisível quanto mais esperamos que ele entre pela porta da frente. Sorrateiro, ele chega pelos fundos, por meio de um sem-terra chamado Abraão; um revolucionário de nome Moisés; um músico com fama de agitador, Davi; uma prostituta, Raab; um subversivo conhecido por Jeremias; um alucinado, Daniel; um casal de artesãos que, rejeitado em Belém, ocupa um pasto para trazer o Filho à vida: Maria e José. [...] Aqueles que para os "sábios" são a escória da sociedade, para Deus são os convidados ao banquete do Reino."
Sobre a incapacidade de reconhecer Deus, segue uma curta história intitulada A irmã mais velha pergunta publicada em uma antiga coluna jornalística do escritor Paulo Coelho que, no meu entender, ilustra bem tal questão.
A irmã mais velha pergunta
Quando seu irmão nasceu, Sa-chi Gabriel insistia com os pais para ficar sozinha com o bebê. Temendo que, como muitas crianças de 4 anos, estivesse enciumada e quisesse maltratá-lo, eles não deixaram.
Mas Sa-chi não dava mostra de ciúmes. E como sempre tratava o bebê com carinho, os pais resolveram fazer um teste. Deixaram Sa-chi com o recém-nascido, e ficaram observando seu comportamento através da porta semi-aberta.
Encantada por ter seu desejo satisfeito, a pequena Sa-chi aproximou-se do berço na ponta dos pés, curvou-se até o bebê e disse: "Me diz como Deus é! Eu já estou esquecendo!"
Esquecer coisas que traz ao nascer, eis um grave problema para a maioria dos integrantes da pretensa espécie inteligente do universo. Sim, como diz Vladimir Maiakovski, [1893-1930], poeta, dramaturgo e teórico russo:
"Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração."
Sim, fazendo-nos esquecer coisas que trazemos ao nascer, "Os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração.", e ressecando-o impede-nos de entender o que Frei Betto diz ter, aos poucos, entendido.
"Aos poucos, entendi que o modo de comemorar o Natal forma filhos consumistas ou altruístas. [...] Aprendi que o Natal é todo dia, basta abrir-se ao outro e à estrela que, acima das mazelas deste mundo, acende a esperança de um futuro melhor. Sonhar com um mundo em que o Pai Nosso transpareça na grande festa do pão nosso. Pois quem reparte o pão, partilha Deus."
"Entender o modo de comemorar o Natal", eis a grande questão. Questão cuja solução passa, inevitavelmente, pela identificação correta de quem deve ser o festejado nesta data e da finalidade de sua vinda a esta dimensão ocorrida há 2023 anos. Identificações facilmente realizáveis ouvindo uma canção de Roberto Carlos, lançada há meio século (faz tempo, hein!), que considero uma de suas mais belas canções. Canção que até o momento da publicação desta postagem podia ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=WbYHYKe6ApE. Segundo relatos, há quem ao escutar essa canção sinta necessidade de um lenço. Sobre a referida finalidade, não consigo segurar minha vontade de dar um spoiler: "exemplificar o caminho certo pra seguir".
"Acender a esperança de um futuro melhor. Sonhar com um mundo em que o Pai Nosso transpareça na grande festa do pão nosso. Pois quem reparte o pão, partilha Deus.", eis a afirmação final de Frei Betto. Será que concretizar tais coisas é algo que passa, inevitavelmente, pelo desenvolvimento, em cada um de nós, da capacidade de ver Deus (como conseguiu Frei Betto) ou de, pelo menos, "conseguir sentir sua presença em todos os momentos da vida, mesmo sem nunca tê-lo visto" (como conseguiu Abraham Lincoln)? – eis a minha penúltima indagação. A última? Qual é a sua resposta à penúltima?

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