terça-feira, 28 de agosto de 2018

Reflexões provocadas por "Meu tempo é já"

É impressionante a facilidade com que a pretensa espécie inteligente do universo absorve conceitos que lhe são nocivos. Conceitos que, favorecidos por um estupendo desenvolvimento tecnológico conjugado com uma estúpida aceitação irrefletida da maioria dos integrantes da referida espécie, acabam encontrando as condições propícias para "parecem ter virado algo inerente ao ser humano". Em conformidade com o que acabo de dizer, segue um trecho da reportagem de Bolívar Torres e Jan Niklas que provocou esta postagem.
"A urgência como modelo de gestão do tempo é um conceito que remonta ao fim do século XVIII. Mas, de tão absorvido no nosso cotidiano, parece ter virado algo inerente ao ser humano. E tudo piorou com computadores e smartphones, que facilitaram a invasão das esferas. Por emails, redes sociais, aplicativos, o trabalho chega à nossa casa, os amigos pipocam no escritório, a família nos encontra em qualquer lugar. (...) Um olho na reunião, outro no WhatsApp, o email que pisca na tela, a notificação que apita. E é tudo para hoje, para já, para ontem."
"É tudo para hoje, para já, para ontem"! Ou seja, é tudo feito ao mesmo tempo; tudo feito sem atenção; tudo feito sem a prática da iluminação, e eu explico. Narra um ditado zen que, certa feita, um discípulo fez ao mestre o seguinte questionamento:
- Mestre, como você pratica a iluminação?
- Comendo e dormindo.
Surpreso, o discípulo redarguiu:
- Mas todos comem e dormem!
- Mas nem todos comem quando estão comendo, tampouco dormem quando estão dormindo!
Comer quando estiver comendo; dormir quando estiver dormindo; enfim estar sintonizado com o que estiver fazendo. Vocês conhecem muitas pessoas que agem assim? Vocês agem assim? Nem todos agem assim, diz o mestre zen, em uma resposta na qual ouso substituir "nem todos" por "muito poucos". O problema é que estar sintonizado com o que estiver fazendo, é condição sine qua non para o equilíbrio mental nestes tempos estonteantes em que ávida por conectar-se superficialmente a todos, a imensa maioria dos integrantes desta civilização (sic) percorre essa coisa denominada vida sem perceber que, ao conectar-se superficialmente a todos, no fundo é a ninguém que está realmente conectada. Tempos em que, segundo o antropólogo Orlando Calheiros, "conectados sem descanso, estamos percorrendo a vida como se estivéssemos em um trem-bala; como se fôssemos uma locomotiva em disparada sem pausas para pensar no que estamos fazendo".
Um antropólogo que, ao estudar os aikewara, grupo indígena que habita a região sudeste do Pará, percebeu um contraste evidente entre eles e nós:
"Quando novas tecnologias são incorporadas às rotinas dos índios e aceleram seu trabalho, eles não usam o tempo que ganham para produzir mais tarefas. - Eles o preenchem com ócio e com aquilo que faz a vida valer a pena. – Uma vez garantido o sustento da família, produzem música, pintura, festa, coisas que são características da sua mito-filosofia e que lhes permitem especular sobre o universo e o cosmos.", lembra Calheiros.
E ainda há quem se refere a coisas estúpidas como sendo "programa de índio"! Há muita gente sem noção, hein!
"Objetivo ou subjetivo, o tempo é o que se faz dele. O importante, alertam estudiosos e artistas, é que isso seja fruto de escolhas. O trem-bala pode até seguir a toda, mas com consciência. Ou confirmamos a impressão que os aikewara têm de nós.", dizem Bolívar Torres e Jan Niklas na reportagem que provocou esta postagem.
E ao dizerem que "o tempo é o que se faz dele", eles me fazem recordar uma inesquecível frase de J. R. R. Tolkien pronunciada pelo personagem Gandalf em O Senhor dos Anéis. Qual é a frase? "A única coisa a fazer é decidir como usar o tempo que nos foi dado.". "E o importante é que isso (o que se faz do tempo) seja fruto de escolhas, alertam estudiosos e artistas. E que as escolhas sejam feitas com consciência.", dizem Torres e Niklas em sua excelente reportagem.
E ao deparar-me com a palavra consciência, o método das recordações sucessivas traz-me à mente a frase final da postagem intitulada Reflexões provocadas por "Radicais livres" e por "Outras formas de compartilhar", publicada em 07 de agosto de 2018. "Se o ciberespaço hoje aparenta ser um lugar ameaçador, a solução para voltarmos a habitar um local seguro e livre pode ser resumida em uma única palavra: conscientização." (o grifo é meu)
Frase que traz-me à mente o seguinte questionamento: Será que conscientização é algo possível sem reflexão? No meu entender, não. Conscientização! Eis a palavra em que pode ser resumida a solução para qualquer problema com o qual a tal da espécie inteligente tenha que se defrontar. Reflexão! Eis a palavra em que pode ser resumido o processo que possibilite chegar à conscientização.
Dito isto, que tal refletir sobre as palavras do antropólogo Orlando Calheiros quando diz que "A aceleração intensa na vida contemporânea já seria, assim, uma ameaça concreta à reflexão, pois é como se fôssemos uma locomotiva em disparada sem pausas para pensar no que estamos fazendo", e, enquanto ainda há tempo, abandonar tal locomotiva?
Para quem quiser ler mais sobre "a aceleração intensa na vida contemporânea", sugiro a leitura de A viagem suicida pós-moderna. E para iniciar "os procedimentos de pouso" destas reflexões, repito aqui as palavras iniciais da reportagem que as provocaram.
"Conectados sem descanso, estamos percorrendo a vida num trem-bala. Por quê? É preciso correr tanto? Não pira, respira! Não, tempo não é dinheiro. Mas vale muito. E, na era dos smartphones sempre conectados, corremos o risco de ver a vida passar... pela tela. Apenas pare – e leia"
Leia e questione, pois como, sabiamente, disse o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 - 2017), "Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem." Questione e seja mais um (a) a cooperar para evitar a confirmação da impressão que os aikewara têm de nós. Impressão expressa na frase que encerra a reportagem de Torres e Niklas e atribuída ao antropólogo Orlando Calheiros: "- Para eles, somos zumbis que não saem do computador e só conseguem fazer a mesma coisa."
Questionamento, reflexão, conscientização. Eis três coisas que zumbis jamais farão. Eis três coisas imprescindíveis para encontrar respostas para os problemas que afligem qualquer sociedade. Eis três coisas imprescindíveis para a construção de algo que faça jus ao termo civilização.

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