É impressionante a facilidade com que a
pretensa espécie inteligente do universo absorve conceitos que lhe são nocivos.
Conceitos que, favorecidos por um estupendo desenvolvimento tecnológico
conjugado com uma estúpida aceitação irrefletida da maioria dos integrantes da
referida espécie, acabam encontrando as condições propícias para "parecem
ter virado algo inerente ao ser humano". Em conformidade com o que acabo
de dizer, segue um trecho da reportagem
de Bolívar Torres e Jan Niklas que provocou esta postagem.
"A urgência como modelo de gestão do tempo é um conceito que remonta ao fim do século XVIII. Mas, de tão absorvido no nosso cotidiano, parece ter virado algo inerente ao ser humano. E tudo piorou com computadores e smartphones, que facilitaram a invasão das esferas. Por emails, redes sociais, aplicativos, o trabalho chega à nossa casa, os amigos pipocam no escritório, a família nos encontra em qualquer lugar. (...) Um olho na reunião, outro no WhatsApp, o email que pisca na tela, a notificação que apita. E é tudo para hoje, para já, para ontem."
"É tudo para
hoje, para já, para ontem"! Ou seja, é tudo feito ao mesmo tempo; tudo
feito sem atenção; tudo feito sem a prática da iluminação, e eu explico. Narra
um ditado zen que, certa feita, um discípulo fez ao mestre o seguinte
questionamento:
- Mestre, como você pratica a iluminação?
- Comendo e dormindo.
Surpreso, o discípulo
redarguiu:
- Mas todos comem e dormem!
- Mas nem todos comem quando estão comendo, tampouco
dormem quando estão dormindo!
Comer quando estiver comendo;
dormir quando estiver dormindo; enfim estar sintonizado com o que estiver
fazendo. Vocês conhecem muitas pessoas que agem assim? Vocês agem assim? Nem todos agem assim, diz o mestre zen, em uma resposta na qual ouso substituir "nem todos" por "muito
poucos". O problema é que estar sintonizado com o que estiver fazendo, é condição
sine qua non para o equilíbrio mental
nestes tempos estonteantes em que ávida por conectar-se superficialmente a todos, a imensa maioria dos integrantes desta
civilização (sic) percorre essa coisa denominada vida sem perceber que, ao
conectar-se superficialmente a todos,
no fundo é a ninguém que está realmente conectada. Tempos em que, segundo
o antropólogo Orlando Calheiros, "conectados sem descanso, estamos
percorrendo a vida como se estivéssemos em um trem-bala; como se fôssemos uma
locomotiva em disparada sem pausas para pensar no que estamos fazendo".
Um antropólogo
que, ao estudar os aikewara, grupo indígena que habita a região sudeste do
Pará, percebeu um contraste evidente entre eles e nós:
"Quando novas tecnologias são incorporadas às rotinas dos índios e aceleram seu trabalho, eles não usam o tempo que ganham para produzir mais tarefas. - Eles o preenchem com ócio e com aquilo que faz a vida valer a pena. – Uma vez garantido o sustento da família, produzem música, pintura, festa, coisas que são características da sua mito-filosofia e que lhes permitem especular sobre o universo e o cosmos.", lembra Calheiros.
E ainda há quem se
refere a coisas estúpidas como sendo "programa de índio"! Há muita
gente sem noção, hein!
"Objetivo ou
subjetivo, o tempo é o que se faz dele. O importante, alertam estudiosos e
artistas, é que isso seja fruto de escolhas. O trem-bala pode até seguir a
toda, mas com consciência. Ou confirmamos a impressão que os aikewara têm de
nós.", dizem Bolívar Torres e Jan Niklas na reportagem que provocou esta postagem.
E ao dizerem que "o
tempo é o que se faz dele", eles me fazem recordar uma inesquecível frase
de J. R. R. Tolkien pronunciada pelo personagem Gandalf em O Senhor dos Anéis. Qual
é a frase? "A única coisa a fazer é decidir como
usar o tempo que nos foi dado.". "E o importante é que isso (o que se faz do
tempo) seja fruto de escolhas, alertam estudiosos e artistas. E que as escolhas
sejam feitas com consciência.", dizem Torres e Niklas em sua excelente reportagem.
E ao deparar-me com a
palavra consciência, o método das recordações sucessivas traz-me à mente a
frase final da postagem intitulada Reflexões provocadas por "Radicais livres" e por "Outras formas de compartilhar", publicada em 07 de agosto de 2018. "Se o ciberespaço
hoje aparenta ser um lugar ameaçador, a solução para voltarmos a habitar um
local seguro e livre pode ser resumida em uma única palavra: conscientização." (o grifo é meu)
Frase que traz-me à
mente o seguinte questionamento: Será que conscientização é algo possível sem
reflexão? No meu entender, não. Conscientização! Eis a palavra em que pode ser
resumida a solução para qualquer problema com o qual a tal da espécie
inteligente tenha que se defrontar. Reflexão! Eis a palavra em que pode ser
resumido o processo que possibilite chegar à conscientização.
Dito isto, que tal
refletir sobre as palavras do antropólogo Orlando Calheiros quando diz que
"A aceleração intensa na vida contemporânea já seria, assim, uma ameaça
concreta à reflexão, pois é como se fôssemos uma locomotiva em disparada sem
pausas para pensar no que estamos fazendo", e, enquanto ainda há tempo, abandonar
tal locomotiva?
Para quem quiser ler
mais sobre "a aceleração intensa na vida contemporânea", sugiro a
leitura de A viagem suicida pós-moderna.
E para iniciar "os procedimentos de pouso" destas reflexões, repito
aqui as palavras iniciais da reportagem que as provocaram.
"Conectados sem descanso, estamos percorrendo a vida num trem-bala. Por quê? É preciso correr tanto? Não pira, respira! Não, tempo não é dinheiro. Mas vale muito. E, na era dos smartphones sempre conectados, corremos o risco de ver a vida passar... pela tela. Apenas pare – e leia"
Leia e questione, pois como, sabiamente, disse o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 - 2017), "Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem." Questione e seja mais um (a) a cooperar para evitar a confirmação da impressão que os aikewara têm de nós. Impressão expressa na frase que encerra a reportagem de Torres e Niklas e atribuída ao antropólogo Orlando Calheiros: "- Para eles, somos zumbis que não saem do computador e só conseguem fazer a mesma coisa."
Questionamento, reflexão, conscientização. Eis três coisas que zumbis jamais farão. Eis três coisas imprescindíveis para encontrar respostas para os problemas que afligem qualquer sociedade. Eis três coisas imprescindíveis para a construção de algo que faça jus ao termo civilização.
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