quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Desaceleração (I)

Sob o título "Meu tempo é já", a postagem publicada no dia 13 de agosto chama atenção para "a aceleração intensa na vida contemporânea". Após a publicação de uma postagem contendo reflexões provocadas por ela, em conformidade com a prática de encadear postagens que tenham alguma relação, segue uma cuja intenção é chamar atenção para a imprescindibilidade de descobrirmos algo que nos possibilite enfrentar essa praga que assola esta civilização (sic). Algo que, felizmente, descobri em um excelente livro de Leila Ferreira intitulado A arte de ser leve em um capítulo intitulado Desaceleração.
Publicado no inverno de 2010, a quem passar pela cabeça a vontade de insinuar que após oito anos a ideia de desaceleração nele defendida pode estar obsoleta, digo que a edição de setembro de 2018 da revista Vida Simples traz em sua capa o seguinte destaque: - Desacelere – Entenda como reduzir o passo das coisas, descartar os excessos e assim ter uma rotina com mais satisfação e propósito naquilo que faz.
Ou seja, segundo a referida revista, o livro de Leila Ferreira continua atualíssimo. E, segundo o mantenedor deste blog, lê-lo do início ao fim é algo que vale a pena fazer. Como informação que considero interessante, digo-lhes que a minha vontade de espalhar a prática da desaceleração, usando uma compilação de trechos de textos do livro de Leila Ferreira, antecedeu a publicação da revista citada. Com a intenção de não desanimar leitores de pouco fôlego, mais uma vez recorro ao método Jack: vamos por partes. Sendo assim, segue a primeira de duas postagens nas quais dividi a compilação.
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Ilha de Páscoa, um dos lugares mais remotos do planeta: depois de um ano de trabalho estressante, minha amiga Juliana fez as malas e foi conhecer a terra misteriosa dos gigantes de pedra (os moai), que pertence ao Chile, mas fica a quase 4 mil quilômetros da costa chilena. Era a primeira grande parada de uma viagem de férias que duraria vinte dias e, assim que desembarcou, ela fez o check-in às pressas e, mais apressada ainda, saiu em direção à praia. Já estava entardecendo, e Juliana tinha decidido que seu primeiro programa na ilha seria ver o pôr do sol. No meio do caminho (e há sempre um meio do caminho), ela se deu conta de que estava correndo. Suada e com a respiração ofegante, parou e se perguntou: "Estou correndo para quê?". Foi nesse momento que a ficha caiu. No meio do oceano Pacífico, com quatro dias pela frente para conhecer a Ilha de Páscoa, e sem qualquer compromisso na agenda, ela estava se comportando como havia feito o ano todo: com pressa, ansiedade e estresse. "Fiquei com medo de perder o pôr do sol, como se fosse uma consulta médica ou uma reunião da empresa.".
Era assim que o canadense Carl Honoré vivia, com uma pressa crônica e um senso de urgência que mantinha inclusive nos momentos de lazer, até que decidiu mudar radicalmente seu estilo de vida e acabou escrevendo Devagar, espécie de livro de cabeceira para os que querem modificar sua relação com o tempo.
Desacelerar, para Carl, não equivale a voltar ao passado nem adotar o ritmo dos caracóis e das lesmas. É ter pressa quando faz sentido ter pressa e tirar o pé do acelerador em outras situações. "A velocidade vicia", diz o canadense, "e estamos viciados nela. Na nossa cultura fast forward, palavras como lento e devagar estão virando palavrões.
Carl sabe o quanto é difícil desacelerar: foi multado por excesso de velocidade quando estava a caminho de uma entrevista para seu livro Devagar. Havia ido à Itália pesquisar dois movimentos internacionais que nasceram no país: o slow food e o cittá slow. O primeiro defende a ecogastronomia: o comer bem associado ao respeito pelo meio ambiente. Estimula as refeições calmas com a família e os amigos, o uso de alimentos locais e sazonais, as receitas passadas de geração em geração – como o nome sugere (slow quer dizer lento ou devagar), é o contrário dos rituais de fast food, em que se engole um hambúrguer de procedência duvidosa no balcão da lanchonete, no carro ou na mesa de trabalho.
O outro movimento, cittá slow (cidade lenta), nasceu quando Bra (sede do slow food) e mais três cidades italianas assinaram uma declaração em que manifestavam sua intenção de transformar em cidades-refúgio para os que não aguentam o ritmo enlouquecido da vida moderna. Outras cidades aderiram e o movimento ultrapassou as fronteiras da Itália. Para receber o certificado de cittá slow é preciso ter menos de 50 mil habitantes e cumprir uma série de exigências, entre elas, diminuir o barulho e o trânsito, aumentar o número de áreas verdes e de ruas para pedestres, preservar as construções históricas, ajudar os produtores e os comerciantes locais a vender seus produtos, defender as tradições locais e estimular o clima de hospitalidade. Bra tem seguido à risca sua própria cartilha. Fechou o trânsito de algumas ruas de seu centro histórico, proibiu a instalação de grandes supermercados e de anúncios luminosos, e passou a privilegiar pequenos estabelecimentos familiares que vendem tecidos artesanais e comidas típicas. Nas cantinas das escolas e dos hospitais, os cardápios são à base de pratos tradicionais feitos com produtos orgânicos.
As cidades slow – e não há como pensar nelas sem sentir vontade de fazer as malas e ir "correndo" para lá – não são contra os avanços tecnológicos nem querem se transformar em museus. Carl Honoré diz que se algo for considerado bom para a qualidade de vida dos moradores será aceito. E dá um exemplo: em Orvieto, cidade medieval entre Roma e Florença e uma das fundadoras do cittá slow, os bondinhos quase centenários – uma de suas marcas registradas – foram substituídos por uma versão moderna, operada com a ajuda de computadores. E o fato de o movimento cittá slow usar um website para promover sua filosofia de bem viver também mostra, segundo Honoré, que a modernidade e a tradição podem conviver de forma equilibrada em "cidades lentas".
"Mas não é preciso morar numa cittá slow para desacelerar", afirma o canadense. Ele alega que muita gente que se sente atraída pela ideia de adotar uma vida mais calma acha que tem que abandonar a carreira, deixar a cidade e cultivar verduras no campo. O slow é basicamente um estado de espírito, diz Carl, e dá para viver de forma menos frenética em qualquer lugar. Concordo em parte. Já morei em Belo Horizonte, em São Paulo, em Brasília, na Cidade do México, em Londres e agora estou em Araxá, que tem menos de 100 mil habitantes. Mas acho que Carl Honoré toca num ponto importante: quando as pessoas são viciadas na pressa, não adianta trocar a cidade grande por um sítio ou por uma casinha naquela vila de pescadores. E o contrário também vale: há de fato quem consiga sentir calma na hora do rush em São Paulo ou Nova Delhi. Nosso ritmo interno é que precisa desacelerar.
Isso me faz lembrar algo curioso. Tive um programa de TV por onde passaram mais de 1.600 entrevistados, e talvez o mais apressado (e estressado) deles tenha sido um monge com quem conversei num mosteiro budista. No cenário deslumbrante de uma serra, em meio ao verde e ao silêncio, o monge quase acabou comigo e com a minha equipe porque estávamos "demorando muito" para montar a iluminação e ligar os microfones. Poucas vezes na vida vi alguém tão impaciente e tão ríspido. A pressa e a ansiedade daquele monge (que, aparentemente, não tinha qualquer compromisso urgente depois da entrevista) me convenceram de que tudo – absolutamente tudo - nesta vida é relativo. Pode-se viver num ambiente sereno, adotando todas as práticas que em tese proporcionam calma e equilíbrio, e ainda assim ser uma pessoa afobada, para não usar outros (e piores) adjetivos.
Continua na próxima terça-feira

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