quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Reflexões provocadas por "Um cineasta sempre engajado"

Para quem é chegado a reflexões sobre o que lê, a quantidade de trechos instigantes na excelente reportagem de Elaine Guerini torna-a um prato cheio em termos de reflexões. "Mestre em retratar nas telas as injustiças sofridas pela classe trabalhadora, sempre dignificada por suas lentes.", eis como Elaine refere-se ao extraordinário cineasta. Feito este preâmbulo, passemos a algumas reflexões provocadas pela reportagem oriunda da entrevista concedida por Ken Loach.
"Entendo que, no caso dos roteiristas, eles estão lutando por uma remuneração mais justa e por melhores condições de trabalho como em qualquer situação industrial. Mas há muitas perguntas importantes que ainda não foram feitas. O que os roteiristas estão escrevendo hoje em dia? Não seria melhor se eles interpretassem o que acontece no mundo, em vez de escreverem só o que mandam?", afirma Loach.
Sim, "há muitas perguntas importantes que ainda não foram feitas". O problema é que, nesta insana sociedade, fazer perguntas não é o ponto forte da maioria de seus integrantes. Até porque, desde a mais tenra idade, o ensinamento que se recebe é para responder perguntas, não para fazê-las.
Sim, "seria melhor se os roteiristas interpretassem o que acontece no mundo, em vez de escreverem só o que mandam". O problema (há sempre um problema!) é que nesta sinistra sociedade vigora a seguinte máxima: "Manda quem pode e obedece quem tem juízo". Ou seja, antes de desobedecer é imprescindível avaliar bem se vale a pena fazê-lo. Até porque, os que mandam geralmente são covardes e desprovidos de escrúpulos; e os que são mandados geralmente são desunidos, pois até hoje não conseguiram entender que a força dos mais fracos está na sua união. Já ouviu aquela história de "o povo unido jamais será vencido"? Pois é! Infelizmente, até hoje os mais fracos não conseguiram assimilar tal história. Indivíduos como Ken Loach pertencem ao conjunto das raridades.
"A queda no valor dos imóveis na região, o que deixa os moradores locais inconformados e ressentidos, não é um reflexo da entrada dos sírios. Mas ninguém parece querer entender que eles só foram enviados para lá em consequência da desvalorização, já que a vila quase vazia oferece habitações baratas. Nesse cenário, a tensão entre as comunidades é inevitável e crescente, com embates no único pub que sobrou, o Old Oak do título. O que surpreende no decorrer da história é o despertar da solidariedade, assim que as duas alas percebem ter mais em comum do que imaginavam. Até porque ambas foram abandonadas por seus governos."
"O que surpreende no decorrer da história é o despertar da solidariedade, assim que as duas alas percebem ter mais em comum do que imaginavam. Até porque ambas foram abandonadas por seus governos.", diz Elaine Guerini. Perceber ter mais em comum com alguns grupos que enxergamos como inimigos, e a partir de tal percepção ter despertada a solidariedade, para juntos enfrentar os verdadeiros inimigos. Perceber que, em uma sociedade constituída de classes tão desigualmente aquinhoadas, a verdadeira classe inimiga é a que está acima, não a que está abaixo, eis o único meio de, algum dia, conseguir construir algo que faça jus ao termo civilização.
Sim, em um mundo egoísta como este o despertar da solidariedade é sempre algo surpreendente.
"Thatcher nos levou até Tony Blair, que parecia ser de esquerda, mas era de direita. E com Boris Johnson e agora Rishi Sunak, continuamos na mesma. É sempre o projeto neoliberal onde o lucro é tudo. Eles perseguem o lucro com a desculpa de que é o mais progressivo a fazer."
"(...) parecia ser de esquerda, mas era de direita.", diz Ken Loach associando a tal percepção equivocada a encrenca em que até hoje está metido o Reino Unido. Unido em torno de quê? Unido contra o que ou contra quem? Perceber corretamente as coisas é algo simplesmente imprescindível à construção de algo que preste.
"Thatcher nos levou até Tony Blair, (...) É sempre o projeto neoliberal onde o lucro é tudo.", diz Ken Loach. Afinal, segundo Thatcher, "a sociedade não existe; existem apenas indivíduos competindo entre si". Buscando em https://www.significados.com.br/ o significado de sociedade encontrei o seguinte resultado: "Sociedade é um conjunto de seres que convivem de forma organizada. A palavra vem do Latim societas, que significa "associação amistosa com outros."

Para quem não sabe (e também para quem sabe), Margaret Thatcher foi alguém que exercendo o cargo de primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, recebeu a alcunha de Dama de Ferro, talvez por ter ferrado a vida de milhões de pessoas. Sim, segundo Thatcher, essa coisa de conjunto de seres que compõem uma associação amistosa com outros é algo que não existe. O que existe são apenas indivíduos competindo entre si, de forma nada amistosa, em busca de lucros particulares cada vez maiores em detrimento do bem coletivo.

"A esperança é fundamental na política. Se as pessoas não acreditarem que uma mudança coletiva é possível, tudo está perdido." E esse é o pior cenário, na visão de Loach. "Quando o mundo parece difícil demais e o inimigo forte demais, as pessoas se desesperam, achando que não têm poder algum. E é nesse momento que a extrema direita se instala, que o racismo ganha espaço e que os imigrantes são considerados culpados. Em busca de respostas fáceis, o povo começa a acreditar que precisa mesmo de um homem forte, capaz de resolver todos os problemas", diz o diretor.
"A esperança é fundamental na política. Se as pessoas não acreditarem que uma mudança coletiva é possível, tudo está perdido.", na visão de Loach. Sim, mas tem de ser esperança do verbo esperançar. O que é esperançar? Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo. Esperançar é a capacidade de olhar e reagir àquilo que parece não ter saída.
Ou seja, usando as palavras de Ken Loach, esperançar é as pessoas "não se desesperarem, achando que não têm poder algum"; esperançar é não ir "em busca de respostas fáceis"; esperançar é o povo não "acreditar que precisa mesmo de um homem forte, capaz de resolver todos os problemas".
"Por considerar a monarquia um 'emblema do status quo', o diretor recusou a Ordem do Império Britânico (OBE, em inglês), que deveria ter recebido em 1977. 'Eles são o símbolo da classe dominante e o pináculo da aristocracia. Preservar a monarquia significa endossar as coisas do jeito que elas são', diz. Ele faz companhia a David Bowie e Stephen Hawking no pequeno clube dos que disseram não ao título."
"Por considerar que 'Preservar a monarquia significa endossar as coisas do jeito que elas são', o diretor recusou a Ordem do Império Britânico (OBE, em inglês), que deveria ter recebido em 1977. Ele faz companhia a David Bowie e Stephen Hawking no pequeno clube dos que disseram não ao título." Sim, nesta mesquinha sociedade (sic) em que sobrevivemos, indivíduos que se recusam a endossar as coisas do jeito que são compõem um pequeno grupo.
Por considerar que as coisas não deveriam ser do jeito que elas são, o que faz o extraordinário cineasta? Usando palavras de Elaine Guerini, respondo assim: aos 87 anos, "ele prossegue retratando nas telas as injustiças sofridas pela classe trabalhadora, sempre dignificando-a por suas lentes.".
Encerrando estas reflexões, segue uma pequena relação de postagens que focalizam as ideias de Ken Loach e seus filmes.

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