terça-feira, 28 de maio de 2019

Ken Loach expõe a nova precarização do trabalho

Neste momento em que o tipo de filme que lota salas de cinema e proporciona quebra de recordes de bilheteria expõe a nova fascinação do entretenimento - a vida dos super-heróis -, este blog espalha uma reportagem que focaliza um filme que, segundo o autor da reportagem, "expõe a nova precarização do trabalho", algo que afeta, tremendamente, a vida das pessoas comuns. Considerando que a maioria de nós não pertence à categoria dos super-heróis, creio que interessar-se pela leitura da reportagem de Carlos Helí de Almeida, publicada na edição de 18 de maio de 2019 do jornal O Globo, seja uma boa ideia.
Ken Loach expõe a nova precarização do trabalho
Palma de Ouro em 2016 com 'Eu, Daniel Blake', cineasta inglês mergulha na vida de um entregador autônomo com 'Sorry we missed you': 'Hoje o trabalhador assume todos os riscos e se autoexplora', diz ele
Até então assombrada por distopias sobre zumbis ("Os mortos não morrem", de Jim Jarmusch), jagunços futuristas ("Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) e almas penadas de operários africanos ("Atlantique", de Mati Diop), a competição do 72º Festival de Cannes saiu do modo cinema fantástico para encarar o drama sem artifícios alegóricos de "Sorry we missed you", de Ken Loach. Exibido em sessão de gala no final da noite de quinta-feira, o filme é um exemplar genuíno de realismo social do cineasta britânico, conhecido por seu histórico de tramas que tentam dar conta de questões urgentes de seu tempo.
Desta vez, o autor de "Meu nome é Joe" (1996), que disputa sua terceira Palma de Ouro, foi atrás dos estragos da chamada "gig economy", ou seja, a do trabalho temporário sem vínculos empregatícios, na harmonia e na saúde da família britânica.
Escrito por Paul Laverty, antigo colaborador de Loach, "Sorry we missed you" descreve as consequências da entrada de Ricky (Kris Hitchen), um trabalhador de Newcastle que perdeu casa e emprego após a crise econômica de 2008, numa empresa de entrega de encomendas que não assina contrato com seus "sócios".
METAS QUASE IMPOSSÍVEIS
Pela nova ordem do empreendedorismo liberal, Ricky tem que comprar a própria van, trabalhar 12 horas por dia e seis dias por semana em troca de um cachê e um pacote de metas quase impossíveis de serem alcançadas. Logo a pesada carga horária e estressante ritmo de trabalho na companhia começam a pesar sobre a família: o filho adolescente rebela-se, a mais nova perde o sono, sobrecarregando também a mulher (Abbie Turner), enfermeira que cuida de idosos e inválidos no mesmo esquema de trabalho.
Loach retorna ao ambiente de "Eu, Daniel Blake", que trata de um operário que luta contra a burocracia do governo para receber o seguro-desemprego, desta vez investigando as novas formas de exploração do trabalho.
- O conceito de trabalho assalariado tem mudado muito desde a minha juventude – lembrou o veterano realizador de 82 anos, durante encontro com a imprensa no final da manhã de ontem. – Naquela época, nos diziam que se você tivesse uma habilidade e uma profissão, teria emprego para sempre e condição de sustentar uma família com o seu salário. Recentemente, houve mudanças sérias nas condições de trabalho, e as pessoas agora enfrentam a insegurança de empregos sem contratos formais, atuando por intermédio de agências. E há gente como Ricky, que trabalha por conta própria, em um sistema em que o trabalhador assume todos os riscos e se autoexplora.
O roteirista Paul Laverty construiu o roteiro de "Sorry we missed you" a partir de entrevistas com trabalhadores temporários de Newcastle, cidade ao Norte da Inglaterra onde o diretor rodou seu "Eu, Daniel Blake", vencedor da Palma de Ouro em Cannes. O título do filme é uma referência à mensagem dos cartões padronizados deixados pelos entregadores nos endereços dos clientes ausentes: "Desculpe por não tê-lo encontrado" (em tradução livre).
- Newcastle é um lugar com características próprias e fortes, tem uma história de luta. Tem um passado de mineração e construção naval, indústrias que morreram e não foram substituídas. É uma cidade com população vulnerável, mas que tem lutado para permanecer nela. Ela funciona como um microcosmo da Grã-Bretanha – observou Loach, que acompanhou de perto o desenvolvimento do roteiro. – Enquanto pesquisava e escrevia, Paul me disse que filtraria os relatos a partir do modo como a relação com o trabalho afetava o cotidiano de uma família típica do lugar. A partir daí, ele esboçou os personagens centrais.
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"Sorry we missed you" ("Desculpe por não tê-lo encontrado" [em tradução livre]) descreve as consequências da entrada de Ricky, um trabalhador de Newcastle que perdeu casa e emprego após a crise econômica de 2008, numa empresa de entrega de encomendas que não assina contrato com seus "sócios". (...) E há gente como Ricky, que trabalha por conta própria, em um sistema em que o trabalhador assume todos os riscos e se autoexplora.
Uma empresa de entrega de encomendas que não assina contrato com seus "sócios". (...) Gente que trabalha por conta própria, em um sistema em assume todos os riscos e se autoexplora.
Será que faz algum sentido chamar essa coisa em que sobrevivemos de sociedade? Será que faz algum sentido esperar que algum super-herói nos tire da encrenca em que estamos metidos? Ou será que, por mais que não queiramos acreditar em tal coisa, livrar-se de qualquer encrenca em que se esteja metido é algo que jamais será possível sem a participação dos que nela estejam metidos?
Não, ao contrário dos filmes de super-heróis o filme que "expõe a nova precarização do trabalho", ou seja, o filme dos super-ferrados, será exibido em uma reduzida quantidade de salas de cinema, durante um curto período e sem a estrondosa divulgação daqueles. Portanto, aos que desejarem assisti-lo, sugiro que fiquem atentos à programação cinematográfica de sua região.

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