quarta-feira, 13 de setembro de 2023

O Espírito Capitalista

Aceitando um convite feito pela minha filha no sábado mais recente, no dia seguinte lá estávamos eu, ela e o marido no Rio Centro para participarmos da Bienal do Livro Rio, evento do qual eu não participava há muitos anos. Avistando um estande do Grupo editorial Universo dos Livros para ele me encaminhei na esperança de lá encontrar um antigo livro que folheara em uma livraria, não o comprara e no qual encontrara um texto do qual gostei demais e que gostaria de reler. Confirmando o que seria mais provável ocorrer, minha esperança não se concretizou, porém, outra confirmação ocorreu: a do bordão usado pelo narrador da saga de Joseph Climber – "Mas a vida é uma caixinha de surpresas!".
Sim, a vida é caixinha de surpresas. Uma caixinha de surpresas da qual naquele domingo saiu a que descrevo a seguir. Em um estande em que havia uma grande quantidade de livros, com uma grande variedade de títulos, cada título apresentando vários exemplares, eis que diante de mim aparece um livro cujo título apresentava um único exemplar naquele estande. Um livro que na condição de ser o único exemplar de um título acabara sendo misturado com outros. Mistura que, felizmente, em vez de colocá-lo no meio dos outros, colocou-o em cima deles, de modo que eu pudesse facilmente enxergá-lo quando passasse pela área do estande em que ele estava. E enxergando-o, imediatamente, o pegasse para levá-lo. Afinal, ele é um de um autor que admiro demais e do qual já li vários livros cada um melhor do que o outro. O título do livro? Típicos Tipos. O autor? Frei Betto. A surpresa? Eu nunca ouvira falar desse livro, fora ao estande procurar outro (que não encontrei), não ia à Bienal há vários anos, sei lá quantas pessoas viram esse livro antes de mim, no entanto, lá estava ele esperando por mim. Sim, a vida é caixinha de surpresas!
Sendo um livro composto de uma coletânea de ensaios, em uma rápida passagem de olhos pelo índice, imediatamente, tive a atenção chamada pelo título de um ensaio cujo espalhamento por este blog, no meu entender, deveria ser imediato. Intitulado "O Espírito Capitalista", ele é o sexto ensaio de um total de sessenta e oito.
O Espírito Capitalista
O sistema capitalista, que deita raízes no colapso da sociedade feudal e no advento da manufatura, alavancou-se com o desenrolar da Revolução Industrial, no século XIX. Expandiu-se, acelerou a pesquisa científica e o progresso técnico. Aumentou a produção de bens e agravou a desigualdade de sua distribuição. De seu ventre contraditório surgiu o socialismo, que aprimorou a distribuição sem conseguir desenvolver a produção. A onda neoliberal derrubou o socialismo europeu qual um castelo de areia.
Hoje, o capitalismo é vitorioso em nações da Ásia (China, Japão e Coreia do Sul), da União Europeia e da América do Norte (excluindo o México). No resto do mundo, deixa um lastro de miséria e pobreza, conflitos e mortes. Salvam-se as elites que, em seus respectivos países, gerenciam os negócios segundo o velho receituário colonial, agora prescrito pelo FMI: tudo para o benefício da metrópole.
Em plena globocolonização, o capitalismo é também vitorioso em corações e mentes. Mas não em todos. Há ricos, remediados e pobres que não possuem o espírito capitalista. São pessoas generosas, altruístas, capazes de se debruçar perante o sofrimento alheio e de estender a mão em solidariedade a causas coletivas.
A tendência do espírito capitalista, porém, é aguçar o nosso egoísmo; dilatar nossas ambições de consumo; ativar nossas energias narcísicas; tornar-nos competitivos e sedentos de lucro. Criar pessoas menos solidárias, mais insensíveis às questões sociais e ambientais, indiferentes à miséria, alheias ao drama de indígenas e de negros, distantes de iniciativas que visam defender os direitos dos pobres. Moldar esse estranho ser que aceita, sem dor, a desigualdade social e o desequilíbrio ambiental; assume a cultura da glamorização do fútil; diverte-se com entretenimentos que ridicularizam as pessoas humildes e a mulher, como fazem certos programas de humor na tevê.
O capitalismo promove, em nossa consciência, tamanha inversão de valores que defeitos qualificados pelo cristianismo de "pecados capitais" são tidos como virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria, a inveja e a cobiça.
O capitalismo é irmão gêmeo do individualismo. Ao exaltar como valores a competição, a riqueza pessoal, o acúmulo de posses, esse sistema interioriza em muitas pessoas ambições que as afastam do esforço coletivo de conquista de direitos, para mergulhá-las na ilusão egoísta de que, um dia, também elas, como alpinistas sociais, galgarão o pico da fortuna e do sucesso.
A magia capitalista dissolve, pelo calor de sua sedução, todo conceito gregário, como nação ou povo. O que há são indivíduos fragmentados, premiados pela loteria biológica e por não terem nascido entre a pobreza ou pela roda da fortuna, que os fez ascender miraculosamente ao universo em que os sofrimentos morais são camuflados sob o brilho da opulência.
O espírito capitalista não faz distinção de classe: inocula-se no favelado e na empregada doméstica, no camponês e no motorista de táxi. E em ricos, remediados e pobres induz à apropriação privada não apenas de bens materiais, mas também de bens simbólicos: oro para alívio dos meus problemas e para acura de minhas doenças; voto no candidato que melhor corresponder às minhas ambições; adoto um comportamento que realça a minha figura e o meu prestígio.
Esse espectro de ser humano não conhece a cooperação e a gratuidade; considera a generosidade uma humilhação; encara a pobreza insubmissa como caso de polícia; faz da função de mando uma segunda pele; trata os subalternos com desdém. O mundo se centra em seu umbigo. Ainda que não tape as orelhas ao ouvir falar em "amor ao próximo", se faz próximo do outro quando seus interesses e ambições estão em jogo, mas prefere manter distância se este sofre, decai socialmente ou mergulha em fracasso. Seu espelho é o da bruxa que indaga: "Há alguém tão bem-sucedido como eu?". Se a resposta é afirmativa, então quer conhecê-lo, adulá-lo, idolatrá-lo, tocá-lo, como a um ícone religioso do qual se espera graças e proveitos.
Capitalista não é apenas o banqueiro, o tio Patinhas. É também o Donald, que o inveja e se submete a seus caprichos. O mundo é, para ele, um jogo de espelhos, no qual se vê projetado nas mais variadas dimensões. Ele inveja os que estão acima dele e nutre ódio pelos concorrentes que o ameaçam. Quando se faz religioso é para ganhar o Céu, já que a Terra lhe pertence. Dá esmolas, jamais direitos; acende velas, nunca esperanças; prega a mudança de coração, não da sociedade; é capaz de reconhecer Cristo na eucaristia, nunca no rosto de quem padece de fome, não tem terra ou teto.
Horroriza-nos pensar que outrora a sociedade praticou o canibalismo. Quem sabe alimentar-se com carne do semelhante em vez de entregá-la ao repasto dos vermes, seja mais saudável e ético do que, hoje, excluí-lo do direito de simplesmente ser humano.
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Será que esse ensaio de Frei Betto estava esperando para ser encontrado por aqueles que visitarem este blog? Será que vale a pena refletir sobre tudo o que nele é dito? Será que alguns trechos são tão diretos que será quase impossível deles nos esquivarmos?

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