Aceitando
um convite feito pela minha filha no sábado mais recente, no dia seguinte lá
estávamos eu, ela e o marido no Rio Centro para participarmos da Bienal do
Livro Rio, evento do qual eu não participava há muitos anos. Avistando um
estande do Grupo editorial Universo dos
Livros para ele me encaminhei na esperança de lá encontrar um antigo livro
que folheara em uma livraria, não o comprara e no qual encontrara um texto do
qual gostei demais e que gostaria de reler. Confirmando o que seria mais
provável ocorrer, minha esperança não se concretizou, porém, outra confirmação
ocorreu: a do bordão usado pelo narrador da saga de Joseph Climber – "Mas a
vida é uma caixinha de surpresas!".
Sim, a vida é caixinha de surpresas. Uma caixinha de
surpresas da qual naquele domingo saiu a que descrevo a seguir. Em um estande
em que havia uma grande quantidade de livros, com uma grande variedade de títulos,
cada título apresentando vários exemplares, eis que diante de mim aparece um
livro cujo título apresentava um único exemplar naquele estande. Um livro que
na condição de ser o único exemplar de um título acabara sendo misturado com
outros. Mistura que, felizmente, em vez de colocá-lo no meio dos outros,
colocou-o em cima deles, de modo que eu pudesse facilmente enxergá-lo quando passasse
pela área do estande em que ele estava. E enxergando-o, imediatamente, o pegasse
para levá-lo. Afinal, ele é um de um autor que admiro demais e do qual já li
vários livros cada um melhor do que o outro. O título do livro? Típicos Tipos. O autor? Frei Betto. A surpresa? Eu nunca ouvira falar desse livro, fora ao
estande procurar outro (que não encontrei), não ia à Bienal há vários anos, sei
lá quantas pessoas viram esse livro antes de mim, no entanto, lá estava ele
esperando por mim. Sim, a vida é caixinha de surpresas!
Sendo um
livro composto de uma coletânea de ensaios, em uma rápida passagem de olhos
pelo índice, imediatamente, tive a atenção chamada pelo título de um ensaio
cujo espalhamento por este blog, no meu entender, deveria ser imediato.
Intitulado "O Espírito Capitalista",
ele é o sexto ensaio de um total de sessenta e oito.
O Espírito Capitalista
O
sistema capitalista, que deita raízes no colapso da sociedade feudal e no
advento da manufatura, alavancou-se com o desenrolar da Revolução Industrial,
no século XIX. Expandiu-se, acelerou a pesquisa científica e o progresso
técnico. Aumentou a produção de bens e agravou a desigualdade de sua
distribuição. De seu ventre contraditório surgiu o socialismo, que aprimorou a
distribuição sem conseguir desenvolver a produção. A onda neoliberal derrubou o
socialismo europeu qual um castelo de areia.
Hoje, o
capitalismo é vitorioso em nações da Ásia (China, Japão e Coreia do Sul), da
União Europeia e da América do Norte (excluindo o México). No resto do mundo,
deixa um lastro de miséria e pobreza, conflitos e mortes. Salvam-se as elites
que, em seus respectivos países, gerenciam os negócios segundo o velho
receituário colonial, agora prescrito pelo FMI: tudo para o benefício da
metrópole.
Em plena
globocolonização, o capitalismo é também vitorioso em corações e mentes. Mas
não em todos. Há ricos, remediados e pobres que não possuem o espírito
capitalista. São pessoas generosas, altruístas, capazes de se debruçar perante
o sofrimento alheio e de estender a mão em solidariedade a causas coletivas.
A
tendência do espírito capitalista, porém, é aguçar o nosso egoísmo; dilatar
nossas ambições de consumo; ativar nossas energias narcísicas; tornar-nos
competitivos e sedentos de lucro. Criar pessoas menos solidárias, mais
insensíveis às questões sociais e ambientais, indiferentes à miséria, alheias
ao drama de indígenas e de negros, distantes de iniciativas que visam defender
os direitos dos pobres. Moldar esse estranho ser que aceita, sem dor, a
desigualdade social e o desequilíbrio ambiental; assume a cultura da
glamorização do fútil; diverte-se com entretenimentos que ridicularizam as
pessoas humildes e a mulher, como fazem certos programas de humor na tevê.
O capitalismo
promove, em nossa consciência, tamanha inversão de valores que defeitos
qualificados pelo cristianismo de "pecados capitais" são tidos como
virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria, a inveja e a cobiça.
O
capitalismo é irmão gêmeo do individualismo. Ao exaltar como valores a
competição, a riqueza pessoal, o acúmulo de posses, esse sistema interioriza em
muitas pessoas ambições que as afastam do esforço coletivo de conquista de
direitos, para mergulhá-las na ilusão egoísta de que, um dia, também elas, como
alpinistas sociais, galgarão o pico da fortuna e do sucesso.
A magia
capitalista dissolve, pelo calor de sua sedução, todo conceito gregário, como
nação ou povo. O que há são indivíduos fragmentados, premiados pela loteria
biológica e por não terem nascido entre a pobreza ou pela roda da fortuna, que os
fez ascender miraculosamente ao universo em que os sofrimentos morais são
camuflados sob o brilho da opulência.
O
espírito capitalista não faz distinção de classe: inocula-se no favelado e na
empregada doméstica, no camponês e no motorista de táxi. E em ricos, remediados
e pobres induz à apropriação privada não apenas de bens materiais, mas também
de bens simbólicos: oro para alívio dos meus
problemas e para acura de minhas
doenças; voto no candidato que melhor corresponder às minhas ambições; adoto um comportamento que realça a minha figura e o meu prestígio.
Esse
espectro de ser humano não conhece a cooperação e a gratuidade; considera a
generosidade uma humilhação; encara a pobreza insubmissa como caso de polícia;
faz da função de mando uma segunda pele; trata os subalternos com desdém. O
mundo se centra em seu umbigo. Ainda que não tape as orelhas ao ouvir falar em "amor
ao próximo", se faz próximo do outro quando seus interesses e ambições
estão em jogo, mas prefere manter distância se este sofre, decai socialmente ou
mergulha em fracasso. Seu espelho é o da bruxa que indaga: "Há alguém tão
bem-sucedido como eu?". Se a resposta é afirmativa, então quer conhecê-lo,
adulá-lo, idolatrá-lo, tocá-lo, como a um ícone religioso do qual se espera graças
e proveitos.
Capitalista
não é apenas o banqueiro, o tio Patinhas. É também o Donald, que o inveja e se
submete a seus caprichos. O mundo é, para ele, um jogo de espelhos, no qual se
vê projetado nas mais variadas dimensões. Ele inveja os que estão acima dele e
nutre ódio pelos concorrentes que o ameaçam. Quando se faz religioso é para
ganhar o Céu, já que a Terra lhe pertence. Dá esmolas, jamais direitos; acende
velas, nunca esperanças; prega a mudança de coração, não da sociedade; é capaz
de reconhecer Cristo na eucaristia, nunca no rosto de quem padece de fome, não
tem terra ou teto.
Horroriza-nos
pensar que outrora a sociedade praticou o canibalismo. Quem sabe alimentar-se
com carne do semelhante em vez de entregá-la ao repasto dos vermes, seja mais saudável
e ético do que, hoje, excluí-lo do direito de simplesmente ser humano.
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Será
que esse ensaio de Frei Betto estava esperando para ser encontrado por aqueles
que visitarem este blog? Será que vale a pena refletir sobre tudo o que nele é
dito? Será que alguns trechos são tão diretos que será quase impossível deles nos
esquivarmos?
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