segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Reflexões provocadas por "O Espírito Capitalista"

"Sei que não haverei de participar da colheita. Mas faço questão de ficar ao lado dos que lançam, ainda que em terra árida, as sementes de um futuro melhor."

  (Frei Betto, jornal O Globo, 10.09.2005)
"O espírito capitalista não faz distinção de classe: inocula-se no favelado e na empregada doméstica, no camponês e no motorista de táxi.", diz Frei Betto em seu extraordinário ensaio.
"Procedimento que consiste em introduzir vírus num organismo com a finalidade de produzir imunidade contra ele.", eis o significado de inoculação exibido no link https://www.dicionarioinformal.com.br/inocula%C3%A7%C3%B5es/, até o momento da publicação desta postagem.
Ou seja, a nocividade do espírito capitalista é tão grande que ela chega a inverter o efeito de uma inoculação, eu explico. Enquanto a finalidade de uma inoculação é produzir no organismo a imunidade contra um determinado vírus, no caso da inoculação do vírus do espírito capitalista o que ocorre é exatamente o contrário, pois em vez levar o organismo a atuar contra o vírus nele introduzido, na verdade, ela leva-o a atuar em benefício do vírus. Inversões, eis mais um deplorável efeito da atuação do capitalismo em nossa consciência (ou seria na falta dela?), como diz Frei Betto:
"O capitalismo promove, em nossa consciência, tamanha inversão de valores que defeitos qualificados pelo cristianismo de 'pecados capitais' são tidos como virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria, a inveja e a cobiça."
Uma inversão de valores que, no limite, leva-nos a trocar o instinto gregário do qual resulta a busca do bem coletivo pela adesão a um pernicioso modo de vida fundamentado no individualismo.
"A magia capitalista dissolve, pelo calor de sua sedução, todo conceito gregário, como nação ou povo. (...) O capitalismo é irmão gêmeo do individualismo. Ao exaltar como valores a competição, a riqueza pessoal, o acúmulo de posses, esse sistema interioriza em muitas pessoas ambições que as afastam do esforço coletivo de conquista de direitos, para mergulhá-las na ilusão egoísta de que, um dia, também elas, como alpinistas sociais, galgarão o pico da fortuna e do sucesso.", diz Frei Betto.
"[...] mergulhar as pessoas na ilusão egoísta de que, um dia, também elas, como alpinistas sociais, galgarão o pico da fortuna e do sucesso." E mergulhada em tal ilusão uma imensa parcela da iludida espécie inteligente (sic) do universo acaba afogada em um mar de ilusões criado pela magia capitalista. É impressionante a facilidade com que uma ínfima minoria mal intencionada consegue enganar a imensa maioria dos integrantes de uma espécie autodenominada, digo, auto-enganada, como sendo a espécie inteligente do universo. Será que uma espécie realmente inteligente faria as coisas que esta espécie faz?
"O espírito capitalista não faz distinção de classe: inocula-se no favelado e na empregada doméstica, no camponês e no motorista de táxi. E em ricos, remediados e pobres induz à apropriação privada não apenas de bens materiais, mas também de bens simbólicos: oro para alívio dos meus problemas e para acura de minhas doenças; voto no candidato que melhor corresponder às minhas ambições; adoto um comportamento que realça a minha figura e o meu prestígio."
Em uma antiga conversa tida com um colega de trabalho, ao ouvi-lo reclamar de coisas que estavam acontecendo e cuja responsabilidade ele atribuía ao governo daquela época, ao argumentar que aquelas coisas já aconteciam desde o governo anterior ouvi as seguintes palavras: "Mas naquele tempo, pra mim, as coisas estavam boas." O grifo é para associar o pra mim usado pelo colega de trabalho ao meu, minha e minhas, destacados por Frei Betto no parágrafo anterior. Após ouvir aquelas palavras a opção que me restou foi recorrer à seguinte afirmação atribuída a Confúcio:
"Se encontrais uma pessoa a quem vale a pena falar e não lhe falais, perdeis a pessoa; se encontrais uma pessoa a quem não vale a pena falar, e lhe falais, perdeis, isto é, desperdiçais as vossas palavras. Sábio é o que não perde pessoas, nem palavras."
Embora não seja eu um sábio, desde o momento em que pela primeira vez a vi, jamais dessa afirmação esqueci e sempre a coloquei em prática.
"Criar pessoas menos solidárias, mais insensíveis às questões sociais e ambientais, indiferentes à miséria, alheias ao drama de indígenas e de negros, distantes de iniciativas que visam defender os direitos dos pobres. Moldar esse estranho ser que aceita, sem dor, a desigualdade social e o desequilíbrio ambiental."
Extraído do ensaio de Frei Betto, o parágrafo acima, apresenta, segundo ele, algumas tendências do espírito capitalista. E ao falar em "menos solidariedade, mais insensibilidade às questões sociais e indiferença à miséria", Frei Betto leva-me a associar tais palavras a uma conhecida afirmação de Elie Wiesel, feita em outubro de 1986:
"O oposto do amor não é nenhum ódio, é a indiferença. O oposto de arte não é a feiúra, é a indiferença. O oposto de fé não é nenhuma heresia, é a indiferença. E o oposto da vida não é a morte, é a indiferença."
"Afirmação complementada assim pelo próprio Wiesel: "Indiferença, para mim, é a personificação do mal." Afirmação que, usando o velho método mutatis mutandis, origina a seguinte paráfrase: "Capitalismo, para mim, é a personificação da indiferença."
"Capitalista não é apenas o banqueiro, o tio Patinhas. É também o Donald, que o inveja e se submete a seus caprichos. [...] Ele inveja os que estão acima dele e nutre ódio pelos concorrentes que o ameaçam. Quando se faz religioso é para ganhar o Céu, já que a Terra lhe pertence. Dá esmolas, jamais direitos; acende velas, nunca esperanças; prega a mudança de coração, não da sociedade; é capaz de reconhecer Cristo na eucaristia, nunca no rosto de quem padece de fome, não tem terra ou teto."
E ao falar em patos (Tio Patinhas e Sobrinho Donald), Frei Betto faz-me lembrar da estampa em uma camisa que comprei no site El Cabriton. Estampa que vista por uma vizinha no prédio em que moro levou-a a indagar-me: "Você acha que isso é verdade?" Na condição de fortemente infectada pelo vírus do espírito capitalista ela não gostara do que vira na minha camisa. Estampa cuja imagem é reproduzida a seguir.
Será que algum dia essa razão será extirpada? No meu entender, sim, pois, por mais que queiram nos fazer acreditar que determinadas coisas são impossíveis de mudar e que por acreditar que seja possível mudá-las sejamos chamados de utópicos, extirpar o capitalismo é algo que enxergo como possível, desde que, algum dia, consigamos deixar de ouvir o canto das sereias e passemos a ouvir os cantos dos seres corretos. Cantos entre os quais incluo os de Bertolt Brecht, Slavoj Zizek e Frei Betto expressos nos últimos parágrafos desta postagem.
"Nada deve parecer natural; nada deve parecer impossível de mudar."
(Bertolt Brecht [1898 – 1956], dramaturgo, poeta e encenador alemão)
Mudança que, obviamente, dependerá de haver homens que por ela lutem.
"Há homens que lutam um dia. E são bons.
Há homens que lutam muitos dias. E são melhores.
Há os que lutam anos. E são excelentes.
Mas há os que lutam toda a vida. E estes são os imprescindíveis."
(Bertolt Brecht)
Homens que lutem toda vida por terem uma visão diferente do que seja utopia.
"Quando me dizem 'você é um utópico', digo: 'a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual'.
(Slavoj Zizek, filósofo marxista, jornal O Globo, 28.05.2011)
Homens que, embora saibam que não participarão da colheita, se disponham a participar de uma semeadura da qual resultará um futuro melhor para aqueles que os sucederem. Uma semeadura difícil por ser em uma terra árida, inóspita para boas sementes, pois está infestada por uma praga denominada capitalismo.
"Sei que não haverei de participar da colheita. Mas faço questão de ficar ao lado dos que lançam, ainda que em terra árida, as sementes de um futuro melhor."
(Frei Betto, jornal O Globo, 10.09.2005)

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