"Há homens que lutam um dia e são bons,
há outros que lutam um ano e são
melhores;
há os que lutam muitos anos e são
muito bons,
mas há os que lutam toda a vida e
estes são imprescindíveis."
(Bertolt Brecht [1898 – 1956], dramaturgo, poeta e
encenador alemão)
Por que epigrafo esta postagem com essas palavras de
Brecht? Porque acredito que ele classificaria como imprescindível o cineasta
citado na reportagem reproduzida nesta postagem. Afinal, prosseguir lutando por
um mundo melhor após 87 anos é algo que só homens imprescindíveis fazem.
O texto
apresentado a seguir foi publicado na edição de 18 de agosto de 2023 do jornal Valor, em seu suplemento intitulado EU&, em uma seção dedicada ao
Cinema. Reportagem produzida por Elaine Guerini, em Locarno, Suíça, para o referido jornal.
"Cinema
também é cultura",
eis uma frase que se via na porta dos cinemas quando eu era adolescente. "Cinema é a melhor diversão", eis o slogan criado por uma grande empresa de
exibidoras cinematográficas deste país. "Cinema
também pode ser reflexão",
eis uma frase usada nesta postagem com a intenção de estimular a leitura da
reportagem nela reproduzida e posteriores reflexões.
Um cineasta sempre engajado
Ken
Loach volta a enfocar problemas sociais do Reino Unido em 'The
Old Oak'
Ken Loach recebe a reportagem
do Valor em um restaurante lotado, no pátio de uma
universidade de Locarno, na hora do almoço. O burburinho das mesas ao redor e o
vaivém dos garçons comprovam ser o lugar errado para uma entrevista, ainda mais
porque a mesa reservada fica perto da cozinha, barulhenta. "Eu preferia um
cantinho mais silencioso", afirma, baixinho, o cineasta inglês de 87 anos.
Mas Loach não quer reclamar
com o assessor do Festival de Cinema de Locarno, o organizador desse encontro
na Suíça italiana, ou com o gerente do restaurante, que corre de um lado para o
outro. "A cozinha já está agitada demais hoje", brinca Loach, mestre
em retratar nas telas as injustiças sofridas pela classe trabalhadora, sempre
dignificada por suas lentes.
Ao longo de 60 anos de
carreira, seu foco sempre foi a preocupação social, os regimes antidemocráticos
e os efeitos do "capitalismo implacável", como ele mesmo diz. Seu
inconformismo lhe valeu duas Palmas de Ouro de Cannes – com "Ventos da
Liberdade" (2006), em que repudiou o imperialismo inglês, e "Eu,
Daniel Blake" (2016), uma critica à ineficiência do serviço social no
Reino Unido.
"Tudo gira em torno de
quem tem o dinheiro, o poder e o controle", afirma Loach, sempre disposto
a atacar o neoliberalismo. Sua declaração tanto vale para a promoção de seu
último trabalho, "The Old Oak", vencedor do Prêmio do Público na
recém-encerrada 76ª edição do Festival de Locarno, quanto para a atual greve
dos roteiristas e dos atores em Hollywood, que o cineasta acompanha atentamente
pelo noticiário.
"Sempre vou apoiar as
greves. E a regra número um é: nunca cruze uma linha de piquete", conta o
diretor, rindo. "Entendo que, no caso dos roteiristas, eles estão lutando
por uma remuneração mais justa e por melhores condições de trabalho como em
qualquer situação industrial. Mas há muitas perguntas importantes que ainda não
foram feitas. O que os roteiristas estão escrevendo hoje em dia? Não seria
melhor se eles interpretassem o que acontece no mundo, em vez de escreverem só
o que mandam?".
São realmente poucos os
cineastas tão engajados quanto Loach, formado em direito no St. Peter's College, de Oxford. Em "The Old Oak", que o Festival do Rio
negocia para trazer ao Brasil em outubro, ele alfineta, mais uma vez, a faceta
mais impiedosa da sociedade britânica. O foco cai nas falhas do sistema e no
racismo, que nasce na hora de procurar culpados.
Assinada pelo roteirista
escocês Paul Laverty, a trama é ambientada no noroeste da Inglaterra, onde o
fechamento de uma mina de carvão nos anos 80 deixou a população, que já foi
muito próspera, totalmente sem perspectivas. Os jovens foram embora, e a
situação piora ainda com a chegada dos refugiados sírios acolhidos no Reino
Unido em 2016, ano em que a história é contada aqui.
A queda no valor dos imóveis
na região, o que deixa os moradores locais inconformados e ressentidos, não é
um reflexo da entrada dos sírios. Mas ninguém parece querer entender que eles
só foram enviados para lá em consequência da desvalorização, já que a vila
quase vazia oferece habitações baratas. Nesse cenário, a tensão entre as
comunidades é inevitável e crescente, com embates no único pub que sobrou, o
Old Oak do título.
O que surpreende no decorrer da
história é o despertar da solidariedade, assim que as duas alas percebem ter
mais em comum do que imaginavam. Até porque ambas foram abandonadas por seus
governos. "A esperança é fundamental na política. Se as pessoas não
acreditarem que uma mudança coletiva é possível, tudo está perdido."
"A
esperança é fundamental na política", diz Ken Loach
E esse é o pior cenário, na
visão de Loach. "Quando o mundo parece difícil demais e o inimigo forte
demais, as pessoas se desesperam, achando que não têm poder algum. E é nesse
momento que a extrema direita se instala, que o racismo ganha espaço e que os
imigrantes são considerados culpados. Em busca de respostas fáceis, o povo
começa a acreditar que precisa mesmo de um homem forte, capaz de resolver todos
os problemas", diz o diretor.
Por defender os ideais
socialistas, Loach lamenta a Inglaterra não conseguir sair do que ele chama de "período
negro", desde Margaret Thatcher. "Thatcher nos levou até Tony Blair,
que parecia ser de esquerda, mas era de direita. E com Boris Johnson e agora
Rishi Sunak, continuamos na mesma. É sempre o projeto neoliberal onde o lucro é
tudo. Eles perseguem o lucro com a desculpa de que é o mais progressivo a
fazer."
E como sair desse ciclo? "Eu
não sei. Só sei que o Brasil, com Lula na liderança, está muito mais avançado
do que nós, na Inglaterra", diz o diretor.
Por considerar a monarquia um "emblema
do status quo", o diretor recusou a Ordem do Império Britânico (OBE, em
inglês), que deveria ter recebido em 1977. "Eles são o símbolo da classe
dominante e o pináculo da aristocracia. Preservar a monarquia significa
endossar as coisas do jeito que elas são", diz. Ele faz companhia a David
Bowie e Stephen Hawking no pequeno clube dos que disseram não ao título.
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Será que a leitura da
reportagem reproduzida acima conseguirá provocar algumas reflexões sobre o que
é dito por esse "sempre engajado cineasta"; por esse homem imprescindível? Espero que sim.
Afinal, essa é a intenção declarada no início da postagem.
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