segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Um cineasta sempre engajado

  "Há homens que lutam um dia e são bons,
há outros que lutam um ano e são melhores;
 há os que lutam muitos anos e são muito bons,
 mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis."
(Bertolt Brecht [1898 – 1956], dramaturgo, poeta e encenador alemão)
Por que epigrafo esta postagem com essas palavras de Brecht? Porque acredito que ele classificaria como imprescindível o cineasta citado na reportagem reproduzida nesta postagem. Afinal, prosseguir lutando por um mundo melhor após 87 anos é algo que só homens imprescindíveis fazem.
O texto apresentado a seguir foi publicado na edição de 18 de agosto de 2023 do jornal Valor, em seu suplemento intitulado EU&, em uma seção dedicada ao Cinema. Reportagem produzida por Elaine Guerini, em Locarno, Suíça, para o referido jornal.
"Cinema também é cultura", eis uma frase que se via na porta dos cinemas quando eu era adolescente. "Cinema é a melhor diversão", eis o slogan criado por uma grande empresa de exibidoras cinematográficas deste país. "Cinema também pode ser reflexão", eis uma frase usada nesta postagem com a intenção de estimular a leitura da reportagem nela reproduzida e posteriores reflexões.
Um cineasta sempre engajado
Ken Loach volta a enfocar problemas sociais do Reino Unido em 'The Old Oak'
Ken Loach recebe a reportagem do Valor em um restaurante lotado, no pátio de uma universidade de Locarno, na hora do almoço. O burburinho das mesas ao redor e o vaivém dos garçons comprovam ser o lugar errado para uma entrevista, ainda mais porque a mesa reservada fica perto da cozinha, barulhenta. "Eu preferia um cantinho mais silencioso", afirma, baixinho, o cineasta inglês de 87 anos.
Mas Loach não quer reclamar com o assessor do Festival de Cinema de Locarno, o organizador desse encontro na Suíça italiana, ou com o gerente do restaurante, que corre de um lado para o outro. "A cozinha já está agitada demais hoje", brinca Loach, mestre em retratar nas telas as injustiças sofridas pela classe trabalhadora, sempre dignificada por suas lentes.
Ao longo de 60 anos de carreira, seu foco sempre foi a preocupação social, os regimes antidemocráticos e os efeitos do "capitalismo implacável", como ele mesmo diz. Seu inconformismo lhe valeu duas Palmas de Ouro de Cannes – com "Ventos da Liberdade" (2006), em que repudiou o imperialismo inglês, e "Eu, Daniel Blake" (2016), uma critica à ineficiência do serviço social no Reino Unido.
"Tudo gira em torno de quem tem o dinheiro, o poder e o controle", afirma Loach, sempre disposto a atacar o neoliberalismo. Sua declaração tanto vale para a promoção de seu último trabalho, "The Old Oak", vencedor do Prêmio do Público na recém-encerrada 76ª edição do Festival de Locarno, quanto para a atual greve dos roteiristas e dos atores em Hollywood, que o cineasta acompanha atentamente pelo noticiário.
"Sempre vou apoiar as greves. E a regra número um é: nunca cruze uma linha de piquete", conta o diretor, rindo. "Entendo que, no caso dos roteiristas, eles estão lutando por uma remuneração mais justa e por melhores condições de trabalho como em qualquer situação industrial. Mas há muitas perguntas importantes que ainda não foram feitas. O que os roteiristas estão escrevendo hoje em dia? Não seria melhor se eles interpretassem o que acontece no mundo, em vez de escreverem só o que mandam?".
São realmente poucos os cineastas tão engajados quanto Loach, formado em direito no St. Peter's College, de Oxford. Em "The Old Oak", que o Festival do Rio negocia para trazer ao Brasil em outubro, ele alfineta, mais uma vez, a faceta mais impiedosa da sociedade britânica. O foco cai nas falhas do sistema e no racismo, que nasce na hora de procurar culpados.
Assinada pelo roteirista escocês Paul Laverty, a trama é ambientada no noroeste da Inglaterra, onde o fechamento de uma mina de carvão nos anos 80 deixou a população, que já foi muito próspera, totalmente sem perspectivas. Os jovens foram embora, e a situação piora ainda com a chegada dos refugiados sírios acolhidos no Reino Unido em 2016, ano em que a história é contada aqui.
A queda no valor dos imóveis na região, o que deixa os moradores locais inconformados e ressentidos, não é um reflexo da entrada dos sírios. Mas ninguém parece querer entender que eles só foram enviados para lá em consequência da desvalorização, já que a vila quase vazia oferece habitações baratas. Nesse cenário, a tensão entre as comunidades é inevitável e crescente, com embates no único pub que sobrou, o Old Oak do título.
O que surpreende no decorrer da história é o despertar da solidariedade, assim que as duas alas percebem ter mais em comum do que imaginavam. Até porque ambas foram abandonadas por seus governos. "A esperança é fundamental na política. Se as pessoas não acreditarem que uma mudança coletiva é possível, tudo está perdido."
"A esperança é fundamental na política", diz Ken Loach
E esse é o pior cenário, na visão de Loach. "Quando o mundo parece difícil demais e o inimigo forte demais, as pessoas se desesperam, achando que não têm poder algum. E é nesse momento que a extrema direita se instala, que o racismo ganha espaço e que os imigrantes são considerados culpados. Em busca de respostas fáceis, o povo começa a acreditar que precisa mesmo de um homem forte, capaz de resolver todos os problemas", diz o diretor.
Por defender os ideais socialistas, Loach lamenta a Inglaterra não conseguir sair do que ele chama de "período negro", desde Margaret Thatcher. "Thatcher nos levou até Tony Blair, que parecia ser de esquerda, mas era de direita. E com Boris Johnson e agora Rishi Sunak, continuamos na mesma. É sempre o projeto neoliberal onde o lucro é tudo. Eles perseguem o lucro com a desculpa de que é o mais progressivo a fazer."
E como sair desse ciclo? "Eu não sei. Só sei que o Brasil, com Lula na liderança, está muito mais avançado do que nós, na Inglaterra", diz o diretor.
Por considerar a monarquia um "emblema do status quo", o diretor recusou a Ordem do Império Britânico (OBE, em inglês), que deveria ter recebido em 1977. "Eles são o símbolo da classe dominante e o pináculo da aristocracia. Preservar a monarquia significa endossar as coisas do jeito que elas são", diz. Ele faz companhia a David Bowie e Stephen Hawking no pequeno clube dos que disseram não ao título.
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Será que a leitura da reportagem reproduzida acima conseguirá provocar algumas reflexões sobre o que é dito por esse "sempre engajado cineasta"; por esse homem imprescindível? Espero que sim. Afinal, essa é a intenção declarada no início da postagem.

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