"Façamos nossa obrigação o melhor possível, convencidos de que o menor de nossos atos tem uma repercussão sobre toda a humanidade."
Paul Doumer [1857 – 1932], 14º presidente da França)
Quatro dias após a publicação de uma postagem provocada por uma
reportagem intitulada "Literatura
aprimora formação de médicos", a busca de notícias na internet
trouxe-me uma reportagem com um extenso e instigante título: "'Li a carta de despedida
do filho para a mãe': os relatos dos alunos de Medicina que cuidaram de
pacientes terminais de covid-19".
Trazida do
endereço https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/01/24/li-a-carta-de-despedida-do-filho-para-a-mae-os-relatos-dos-alunos-de-medicina-que-cuidaram-de-pacientes-terminais-de-covid-19.ghtml, a reportagem foi publicada originalmente pela BBC News
Brasil, é assinada por Leandro Machado e fala sobre "um grupo de estudantes de Medicina da USP que trabalhou
por três meses na enfermaria de cuidados paliativos para pacientes terminais de
covid-19, acompanhando seus últimos encontros com a família".
Ou seja, além de "ser uma caixinha de
surpresas", como diz Joseph Climber, a vida é também uma caixinha de
coincidências, pois, no meu entender, o que é dito no parágrafo anterior pode
ser visto como mais uma ocorrência que salta da segunda caixinha citada. Ao
referir-se a "relatos dos alunos de Medicina que cuidaram de
pacientes terminais de covid-19", o título da
reportagem fez-me imaginar que nela encontraria outra coisa que "aprimora
formação de médicos". Li a reportagem, constatei que não me enganei e
decidi espalhá-la por meio deste blog.
Sendo assim, imaginando que para aqueles
alunos de Medicina a experiência por eles vivenciada deve ter sido algo
inesperado que lhes propiciou uma oportunidade de desenvolver humanidades,
resolvi dar a esta postagem o título Inesperado
desenvolvimento de humanidades (I). A aplicação do velho método Jack – ir por
partes – deve-se à velha prática de tentar adequar o tamanho da postagem ao
fôlego dos leitores de menor fôlego para leituras.
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'Li a carta de despedida do
filho para a mãe': os relatos dos alunos de Medicina que cuidaram de pacientes
terminais de covid-19
Um grupo de estudantes de
Medicina da USP trabalhou por três meses na enfermaria de cuidados paliativos
para pacientes terminais de covid-19, acompanhando seus últimos encontros com
as famílias. 'Às vezes, continuar o tratamento médico só aumenta o sofrimento',
disse uma estudante.
Uma paciente com
graves sintomas de covid-19, uma mulher de 50 anos, não podia receber visitas
do filho adolescente na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital das
Clínicas (HC), em São Paulo. Havia reuniões virtuais, quando o jovem poderia
ver a mãe, mas ele temia esse encontro. Quando o estado dela piorou, o rapaz
enviou uma carta de despedida.
"Eu li a
carta para ela, e foi bastante difícil para mim também. Foi muito triste. Ele
se despedia da mãe, dizia o quanto ela era importante e pedia desculpas por
coisas que ele tinha feito. Ela estava de olhos fechados, mas, quando terminei
de ler, ela abriu os olhos. Foi um daqueles momentos que a gente não consegue
explicar", conta Gabrielle Cordeiro Trofa, de 24 anos, aluna do 5º ano de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Histórias como
essa foram vivenciadas por um grupo de estudantes de Medicina da USP em uma
experiência inédita: eles trabalharam por alguns meses em uma enfermaria de
cuidados paliativos para pacientes terminais de covid-19 no Hospital das
Clínicas (HC), um dos maiores complexos hospitalares da América Latina.
A ala, que tinha 20
leitos, foi criada em abril do ano passado para receber pessoas com sintomas
graves de coronavírus somados a outras doenças, como câncer terminal. Ou seja,
na enfermaria havia apenas pacientes cuja morte era considerada iminente e
irreversível, embora esse destino anunciado não tenha se concretizado em todos
os casos.
"Convivemos
com a morte diariamente. Foi uma experiência muito intensa e impactante.
Vivemos momentos que vamos nos lembrar para o resto da vida. Também foi um
período muito importante para nossa formação como profissionais de saúde",
explica Gabrielle.
A estudante
Gabrielle Cordeiro Trofa se juntou com colegas para discutir a inclusão dos
cuidados paliativos na grade curricular do curso de Medicina da USP.
Inicialmente, os
estudantes iriam participar de um projeto de comunicação com os pacientes de
covid-19 por meio de robôs. Com um tablet embutido, máquinas caminhavam pelas
salas de leitos e permitiam que médicos e familiares conversassem com os
internados — se desse certo, essa comunicação economizaria equipamentos de
proteção individual utilizados pelos profissionais.
Porém, a rede de
wi-fi não funcionou bem em todos os pontos e os robôs ficaram em segundo plano.
Foi então que o
grupo de estudantes precisou participar mais ativamente da rotina da
enfermaria. "Começamos a aprender práticas de cuidados paliativos. Muitos
de nós descobriram esses procedimentos ali mesmo, pois esse assunto não é
tratado na faculdade", diz Gabrielle.
O que são cuidados paliativos?
"Costumo
resumir os cuidados paliativos da seguinte forma: são os cuidados que damos ao
sofrimento das pessoas que convivem com doenças graves ou ameaçadoras da
vida", explica Douglas Crispim, presidente da Academia Nacional de
Cuidados Paliativos (ANCP) e médico-assistente na enfermaria do HC durante a
pandemia.
Na prática, esse
ramo da Medicina não busca curar o paciente nem fazer com que ele se recupere
da doença, como ocorre em tratamentos médicos tradicionais. A ideia é garantir
que a pessoa sofra cada vez menos com os sintomas — com acesso a analgésicos e
opiáceos para aliviar a dor, limite a procedimentos invasivos e
disponibilização de assistência psicológica.
Ou seja, em caso
de morte iminente, o objetivo é tornar esse processo o menos doloroso possível,
tanto para o paciente quanto para seus familiares.
"Os cuidados
paliativos avaliam o ser humano como um indivíduo e não como uma doença ou um
conjunto de órgãos", diz Ricardo Tavares, professor de Medicina da USP e
responsável pelo Núcleo de Cuidados Paliativos do HC, que existe desde 2010,
mas que teve enfermaria própria apenas com o início da pandemia.
"Esse ser
humano tem particularidades. O que fazemos é avaliar a melhor forma de tratar
esses sintomas e diminuir o sofrimento da pessoa, pois muitas vezes a
continuidade do tratamento médico intensifica esse sofrimento, mesmo em casos
em que o processo de morte é irreversível."
Não significa que
todos os encaminhados para cuidados paliativos vão morrer. Segundo o hospital,
cerca de 25% dos 200 pacientes que passaram pela ala entre abril e setembro
receberam alta — um índice ligeiramente menor que o da Unidade de Terapia
Intensiva (UTI).
A enfermaria
recebeu principalmente pessoas que acumularam sintomas graves de covid-19, como
extrema dificuldade para respirar, e problemas relacionados a outras doenças —
na maioria das vezes, terminais. Elas foram selecionadas em outras áreas do
hospital e encaminhadas aos cuidados paliativos depois de conversas entre os
médicos e as famílias.
Recentemente, um
estudo publicado no Journal of Palliative Medicine apontou que 22% das pessoas
que morreram de covid-19 no Reino Unido já enfrentavam outra doença grave — ou
seja, é possível que procedimentos médicos tradicionais não oferecessem chance
de recuperação ou prolongamento de sua vida.
"Esses dados mostram
que boa parte dos pacientes que faleceram de covid-19 viveram seus últimos
momentos em meio a um grande sofrimento desnecessário", opina Crispim.
Termina na próxima sexta-feira
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