Continuação de segunda-feira
Últimos encontros
Na enfermaria do
HC, uma das tarefas dos estudantes era acompanhar visitas virtuais do paciente
com as famílias do lado de fora. Para evitar novas infecções, as visitas
presenciais foram proibidas. Por isso, em muitos casos, os alunos assistiram
aos últimos encontros entre familiares e pacientes que morreriam logo depois.
O Hospital das
Clínicas da USP tem um núcleo de cuidados paliativos desde 2010.
A estudante
Gabrielle Cordeiro Trofa diz que esses momentos marcaram sua experiência.
"Um dos casos era de um senhor idoso, já inconsciente. Todos os dias, a
gente levava o celular pra perto e a esposa dele cantava uma música religiosa
para ele. Foi um processo muito bonito, apesar da piora progressiva dele. Não
eram momentos de despedida, mas de amor, de agradecimento", conta.
O estudante João
Vitor Sampaio Rocha, 24, do 6º ano de Medicina, conta a história de uma das
pacientes graves que acompanhou:
"Todos os
dias, a filha dela mandava áudios e músicas, e a gente colocava no ouvido dela.
Até que um dia, a filha disse que gostaria de fazer um vídeo de despedida.
Parece que ela sentiu que era o último dia da mãe, a última oportunidade de se
despedir. Ela falou durante 40 minutos. Mas estava em paz com essa despedida,
só queria agradecer tudo o que a mãe tinha feito, dizer o quanto a mãe era
importante. Foi um momento muito marcante pra mim. É possível fazer do processo
de morte algo menos traumático, com menos sofrimento e até bonito", diz o
estudante.
Já Bianca Partezani
Megnis, 25, do 5º ano, relata um caso ainda mais triste. "Tentamos fazer
uma visita a um paciente, mas ele estava se alimentando quando a família ligou.
Depois, não conseguimos contatar os parentes por telefone. Acabou que ele ficou
por último naquele dia. Quando finalmente conseguimos completar a ligação com a
família, ele já havia morrido. Não acreditamos. Saímos muito abalados da
sala", diz.
Sofrimento dos médicos
A comunicação
entre equipe médica, pacientes e familiares é um dos pilares dos cuidados
paliativos. A ideia é que essa interação seja mais próxima e empática, um pouco
diferente da tradicional relação fria entre as partes.
O médico Douglas
Crispim conta que, no início da pandemia, muitos parentes reclamaram que
ficavam dias sem ter notícias de seus familiares internados no HC. "Nós
criamos uma meta de comunicação diária. Todos os dias nós tínhamos de informar
a família sobre o estado de saúde do paciente, explicar os procedimentos que
estavam sendo feitos e dar notícias ruins da maneira menos dolorosa
possível", explica.
Para ele, essa
tradicional "frieza médica" pode ser um indício de que os próprios
profissionais de saúde criam uma barreira para se proteger do sofrimento ao
lidar com a morte dos outros. "É difícil presenciar o sofrimento das
pessoas. Então, de certa forma, nós criamos uma barreira com o paciente e com a
família como uma forma de proteção", diz.
Crispim conta que,
para ele, trabalhar em uma enfermaria de cuidados paliativos foi uma
"chuva de emoções".
"Eu já tinha
dez anos de experiência como paliativista, mas atuar com a covid foi a
experiência mais desafiadora que já enfrentei. Nunca lidei com uma quantidade
tão grande de óbitos. Havia uma rotatividade enorme de pacientes, todos os
dias. Meus colegas sofreram muito também, choravam, ficavam desanimados. E isso
mexeu muito comigo. Mas a gente se apoiava muito, levantava a cabeça e
recomeçava o trabalho", relata o médico.
A estudante Alice
de Paula Baer, 23, do 5º ano de Medicina, conta que ficou nervosa ao aceitar o
trabalho voluntário na enfermaria. "Fiquei com medo de como essa
experiência diária com a morte poderia me afetar. Mas, com o tempo, a gente
percebeu que o trabalho da equipe era muito bem feito, o que passou muita
segurança para nós", explica.
Seu colega João
Vitor Sampaio Rocha relata que a rotatividade na ala o surpreendeu. "Um
dia fui embora do hospital e, quando voltei dois dias depois, metade dos
pacientes tinham morrido. Era bem assustador nesse sentido, mas consegui me
proteger para que não me afetasse quando eu voltava para casa".
Já Bianca
Partezani Megnis concorda que, apesar dos momentos difíceis, a experiência
contribuiu para sua formação. "Fiquei com medo inicialmente. Mas, para
mim, passar por cuidados paliativos foi muito construtivo. Você aprende que a
medicina também pode ser mais humana, com mais empatia no trato e na
comunicação com o paciente e com a família", diz.
Para o médico
Ricardo Tavares, coordenador da enfermaria do HC, os profissionais de saúde,
tanto médicos como enfermeiros, também precisam de apoio ao trabalhar tão
próximos da morte.
Segundo o HC,
cerca de 25% dos pacientes internados na enfermaria de cuidados paliativos
receberam alta.
"A gente
sofre também, e é impossível não sofrer. Sempre digo aos alunos que temos que
ser muito fortes para enfrentar esses momentos. Precisamos ter um compromisso
com nós mesmos, um compromisso de ser feliz e de ser pleno na vida, aproveitar
os momentos bons que vivemos. Para cuidar dos outros, nós precisamos estar
inteiros", diz.
'Papel do médico'
Com o fim do
período de voluntariado, o grupo de estudantes da USP decidiu divulgar os
cuidados paliativos entre colegas de faculdade. O objetivo, agora, é tentar
incluir a disciplina na grade curricular, embora esse seja um processo demorado.
Atualmente, os procedimentos paliativos não fazem parte do currículo da
graduação na universidade e só são abordados em aulas eventuais a depender do
professor.
Os alunos criaram
um grupo de estudos para debater a questão entre eles e outros colegas.
"Os
profissionais de saúde precisam saber quando podem usar os cuidados paliativos,
como se comunicar com os pacientes, como dar uma notícia ruim para a família.
Saber reconhecer quando o processo de morte é inevitável e que prolongar o
tratamento só vai gerar mais sofrimento. O papel do médico é evitar justamente
o sofrimento", diz a estudante Gabrielle Cordeiro Trofa.
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Um
inesperado desenvolvimento de humanidades propiciado a alguns estudantes de medicina
que, repentinamente, viram-se na linha de frente do combate a uma pandemia que
nada tinha de inesperada, como evidencia o que é dito no próximo parágrafo. Parágrafo
composto pelas palavras iniciais da apresentadora Vera Magalhães na edição do
programa Roda Viva que foi ao ar em 04
de janeiro de 2021 pela TV Cultura. Assisti ao programa no dia em
que foi apresentado e a quem não assistiu recomendo que o faça no endereço https://www.youtube.com/watch?v=xE5V-p6IMY0.
Considero-o imperdível.
"Oito anos antes da pandemia do novo coronavírus, o nosso entrevistado desta noite já cravava: A questão não era dizer se haveria uma nova pandemia, mas quando. Isso porque a maneira como nós seres humanos nos relacionamos com o meio ambiente propicia cada vez mais o transbordamento - fenômeno pelo qual o vírus passa de seu reservatório animal natural que pode ser um roedor, um morcego, um macaco e contamina a sua primeira vítima humana. O resto é o que nós temos visto ao redor do mundo há pouco mais de um ano. E como nos prevenir para enfrentar futuras pandemias que certamente virão e evitar que elas tenham o efeito de parar o mundo como esta teve? Esta é uma das questões que vamos debater nesta noite com um dos mais respeitados divulgadores científicos do mundo, autor do bestseller Contágio, David Quammen."
Duas inesperadas postagens provocadas por uma
inesperada reportagem que espero que sejam capazes de provocar inesperadas
reflexões em quem as ler.
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