sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Inesperado desenvolvimento de humanidades (final)

Continuação de segunda-feira
Últimos encontros
Na enfermaria do HC, uma das tarefas dos estudantes era acompanhar visitas virtuais do paciente com as famílias do lado de fora. Para evitar novas infecções, as visitas presenciais foram proibidas. Por isso, em muitos casos, os alunos assistiram aos últimos encontros entre familiares e pacientes que morreriam logo depois.
O Hospital das Clínicas da USP tem um núcleo de cuidados paliativos desde 2010.
A estudante Gabrielle Cordeiro Trofa diz que esses momentos marcaram sua experiência. "Um dos casos era de um senhor idoso, já inconsciente. Todos os dias, a gente levava o celular pra perto e a esposa dele cantava uma música religiosa para ele. Foi um processo muito bonito, apesar da piora progressiva dele. Não eram momentos de despedida, mas de amor, de agradecimento", conta.
O estudante João Vitor Sampaio Rocha, 24, do 6º ano de Medicina, conta a história de uma das pacientes graves que acompanhou:
"Todos os dias, a filha dela mandava áudios e músicas, e a gente colocava no ouvido dela. Até que um dia, a filha disse que gostaria de fazer um vídeo de despedida. Parece que ela sentiu que era o último dia da mãe, a última oportunidade de se despedir. Ela falou durante 40 minutos. Mas estava em paz com essa despedida, só queria agradecer tudo o que a mãe tinha feito, dizer o quanto a mãe era importante. Foi um momento muito marcante pra mim. É possível fazer do processo de morte algo menos traumático, com menos sofrimento e até bonito", diz o estudante.
Já Bianca Partezani Megnis, 25, do 5º ano, relata um caso ainda mais triste. "Tentamos fazer uma visita a um paciente, mas ele estava se alimentando quando a família ligou. Depois, não conseguimos contatar os parentes por telefone. Acabou que ele ficou por último naquele dia. Quando finalmente conseguimos completar a ligação com a família, ele já havia morrido. Não acreditamos. Saímos muito abalados da sala", diz.
Sofrimento dos médicos
A comunicação entre equipe médica, pacientes e familiares é um dos pilares dos cuidados paliativos. A ideia é que essa interação seja mais próxima e empática, um pouco diferente da tradicional relação fria entre as partes.
O médico Douglas Crispim conta que, no início da pandemia, muitos parentes reclamaram que ficavam dias sem ter notícias de seus familiares internados no HC. "Nós criamos uma meta de comunicação diária. Todos os dias nós tínhamos de informar a família sobre o estado de saúde do paciente, explicar os procedimentos que estavam sendo feitos e dar notícias ruins da maneira menos dolorosa possível", explica.
Para ele, essa tradicional "frieza médica" pode ser um indício de que os próprios profissionais de saúde criam uma barreira para se proteger do sofrimento ao lidar com a morte dos outros. "É difícil presenciar o sofrimento das pessoas. Então, de certa forma, nós criamos uma barreira com o paciente e com a família como uma forma de proteção", diz.
Crispim conta que, para ele, trabalhar em uma enfermaria de cuidados paliativos foi uma "chuva de emoções".
"Eu já tinha dez anos de experiência como paliativista, mas atuar com a covid foi a experiência mais desafiadora que já enfrentei. Nunca lidei com uma quantidade tão grande de óbitos. Havia uma rotatividade enorme de pacientes, todos os dias. Meus colegas sofreram muito também, choravam, ficavam desanimados. E isso mexeu muito comigo. Mas a gente se apoiava muito, levantava a cabeça e recomeçava o trabalho", relata o médico.
A estudante Alice de Paula Baer, 23, do 5º ano de Medicina, conta que ficou nervosa ao aceitar o trabalho voluntário na enfermaria. "Fiquei com medo de como essa experiência diária com a morte poderia me afetar. Mas, com o tempo, a gente percebeu que o trabalho da equipe era muito bem feito, o que passou muita segurança para nós", explica.
Seu colega João Vitor Sampaio Rocha relata que a rotatividade na ala o surpreendeu. "Um dia fui embora do hospital e, quando voltei dois dias depois, metade dos pacientes tinham morrido. Era bem assustador nesse sentido, mas consegui me proteger para que não me afetasse quando eu voltava para casa".
Já Bianca Partezani Megnis concorda que, apesar dos momentos difíceis, a experiência contribuiu para sua formação. "Fiquei com medo inicialmente. Mas, para mim, passar por cuidados paliativos foi muito construtivo. Você aprende que a medicina também pode ser mais humana, com mais empatia no trato e na comunicação com o paciente e com a família", diz.
Para o médico Ricardo Tavares, coordenador da enfermaria do HC, os profissionais de saúde, tanto médicos como enfermeiros, também precisam de apoio ao trabalhar tão próximos da morte.
Segundo o HC, cerca de 25% dos pacientes internados na enfermaria de cuidados paliativos receberam alta.
"A gente sofre também, e é impossível não sofrer. Sempre digo aos alunos que temos que ser muito fortes para enfrentar esses momentos. Precisamos ter um compromisso com nós mesmos, um compromisso de ser feliz e de ser pleno na vida, aproveitar os momentos bons que vivemos. Para cuidar dos outros, nós precisamos estar inteiros", diz.
'Papel do médico'
Com o fim do período de voluntariado, o grupo de estudantes da USP decidiu divulgar os cuidados paliativos entre colegas de faculdade. O objetivo, agora, é tentar incluir a disciplina na grade curricular, embora esse seja um processo demorado. Atualmente, os procedimentos paliativos não fazem parte do currículo da graduação na universidade e só são abordados em aulas eventuais a depender do professor.
Os alunos criaram um grupo de estudos para debater a questão entre eles e outros colegas.
"Os profissionais de saúde precisam saber quando podem usar os cuidados paliativos, como se comunicar com os pacientes, como dar uma notícia ruim para a família. Saber reconhecer quando o processo de morte é inevitável e que prolongar o tratamento só vai gerar mais sofrimento. O papel do médico é evitar justamente o sofrimento", diz a estudante Gabrielle Cordeiro Trofa.
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Um inesperado desenvolvimento de humanidades propiciado a alguns estudantes de medicina que, repentinamente, viram-se na linha de frente do combate a uma pandemia que nada tinha de inesperada, como evidencia o que é dito no próximo parágrafo. Parágrafo composto pelas palavras iniciais da apresentadora Vera Magalhães na edição do programa Roda Viva que foi ao ar em 04 de janeiro de 2021 pela TV Cultura. Assisti ao programa no dia em que foi apresentado e a quem não assistiu recomendo que o faça no endereço https://www.youtube.com/watch?v=xE5V-p6IMY0. Considero-o imperdível.
"Oito anos antes da pandemia do novo coronavírus, o nosso entrevistado desta noite já cravava: A questão não era dizer se haveria uma nova pandemia, mas quando. Isso porque a maneira como nós seres humanos nos relacionamos com o meio ambiente propicia cada vez mais o transbordamento - fenômeno pelo qual o vírus passa de seu reservatório animal natural que pode ser um roedor, um morcego, um macaco e contamina a sua primeira vítima humana. O resto é o que nós temos visto ao redor do mundo há pouco mais de um ano. E como nos prevenir para enfrentar futuras pandemias que certamente virão e evitar que elas tenham o efeito de parar o mundo como esta teve? Esta é uma das questões que vamos debater nesta noite com um dos mais respeitados divulgadores científicos do mundo, autor do bestseller Contágio, David Quammen."
Duas inesperadas postagens provocadas por uma inesperada reportagem que espero que sejam capazes de provocar inesperadas reflexões em quem as ler.

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