Continuação de quinta-feira
João Vitor Sampaio Rocha, 24, aluno do 6º ano de Medicina.
"Todos os dias, a filha dela mandava áudios e músicas, e a gente colocava no ouvido dela. Até que um dia, a filha disse que gostaria de fazer um vídeo de despedida. Parece que ela sentiu que era o último dia da mãe, a última oportunidade de se despedir. Ela falou durante 40 minutos. Mas estava em paz com essa despedida, só queria agradecer tudo o que a mãe tinha feito, dizer o quanto a mãe era importante. Foi um momento muito marcante pra mim. É possível fazer do processo de morte algo menos traumático, com menos sofrimento e até bonito".
Entender que "é
possível fazer do processo de morte algo menos traumático, com menos sofrimento
e até bonito", deve ser realmente "um momento muito marcante"
para todos que conseguirem alcançar tal entendimento.
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Bianca Partezani Megnis, 25, aluna do 5º ano de Medicina.
Alice de Paula Baer, 23, aluna do 5º ano de Medicina.
"Tentamos fazer uma visita a um paciente, mas ele estava se alimentando quando a família ligou. Depois, não conseguimos contatar os parentes por telefone. Acabou que ele ficou por último naquele dia. Quando finalmente conseguimos completar a ligação com a família, ele já havia morrido. Não acreditamos. Saímos muito abalados da sala".
Saber identificar o
que se pode e o que não se deve deixar para depois, eis uma
capacidade ausente na imensa maioria da dita espécie inteligente do universo.
Será que, para quem esteja na iminência de partir, alimentar o corpo é mais
importante que alimentar o espírito? Será que o estado emocional em que os
estudantes saíram da sala responde esta indagação?
"Apesar dos momentos difíceis, a experiência contribuiu para minha formação. Fiquei com medo inicialmente. Mas, para mim, passar por cuidados paliativos foi muito construtivo. Você aprende que a medicina também pode ser mais humana, com mais empatia no trato e na comunicação com o paciente e com a família".
"Aprender que
a medicina também pode ser mais humana, com mais empatia no trato e na
comunicação com o paciente e com a família", eis um aprendizado que, pelo relato
de Bianca Partezani, deduzo que não seja obtido na faculdade.
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"Fiquei nervosa ao aceitar o trabalho voluntário na enfermaria. Fiquei com medo de como essa experiência diária com a morte poderia me afetar. Mas, com o tempo, a gente percebeu que o trabalho da equipe era muito bem feito, o que passou muita segurança para nós".
Sim, "perceber
que o trabalho da equipe é muito bem feito, sempre passará muita segurança para
os integrantes da equipe". Perceber que a maior parte dos trabalhos que se
faz na vida requer a participação de uma equipe, eis um aprendizado
imprescindível. Até porque a própria vida é um trabalho em equipe.
Douglas Crispim, presidente da Academia Nacional de Cuidados
Paliativos (ANCP) e médico-assistente na enfermaria do HC durante a pandemia.
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"É difícil presenciar o sofrimento das pessoas. Então, de certa forma, nós criamos uma barreira com o paciente e com a família como uma forma de proteção".
Será que faz sentido criar barreiras para proteger-se de dificuldades em vez de aprender a lidar com elas? Será que a tradicional "frieza médica" pode ser considerada uma fuga de tal aprendizado?
"Trabalhar em uma enfermaria de cuidados paliativos foi uma "chuva de emoções". "Eu já tinha dez anos de experiência como paliativista, mas atuar com a covid foi a experiência mais desafiadora que já enfrentei. (...) Meus colegas sofreram muito também, choravam, ficavam desanimados. E isso mexeu muito comigo. Mas a gente se apoiava muito, levantava a cabeça e recomeçava o trabalho".
"Mas a gente
se apoiava muito, levantava a cabeça e recomeçava o trabalho", diz Douglas
Crispim.
"Thomas Merton estava certo: somos consolados e
fortalecidos quando estamos desesperançosos, mas juntos. Não precisamos de
resultados; precisamos uns dos outros.", diz
Margaret Wheatley em um texto publicado na edição de MAI / JUN 2020 da revista Sophia, sob o título Esperança na desesperança.
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Ricardo Tavares, professor de Medicina da USP e responsável pelo
Núcleo de Cuidados Paliativos do HC, que existe desde 2010, mas que teve
enfermaria própria apenas com o início da pandemia.
"Os cuidados paliativos avaliam o ser humano como um indivíduo e não como uma doença ou um conjunto de órgãos".
Ou seja, embora já
existisse há dez anos, foi necessário o surgimento de uma pandemia para que o
Núcleo responsável por "avaliar o ser humano como um indivíduo e não como
uma doença ou um conjunto de órgãos" recebesse a devida importância. A impressão
que tenho é que a dita espécie inteligente do universo só se move para ativar
algo de bom criado por ela própria a partir do surgimento de uma desgraça.
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Uma excelente reportagem de Leandro Machado
revelando o louvável aproveitamento, por parte de alguns estudantes de
Medicina, da oportunidade propiciada por uma pandemia para um inesperado
desenvolvimento de humanidades. Mas, diferentemente do que muitos queiram acreditar,
a pandemia por si só não mudará todos para melhor e nem todos os estudantes
de medicina conseguirão ter o aproveitamento daqueles citados na reportagem,
como demonstra uma notícia publicada pelo jornal Extra em sua edição de 26 de janeiro de 2021 (https://br.yahoo.com/noticias/m%C3%A9dica-posta-que-intubou-dois-231931394.html) e cujo início é reproduzido a
seguir.
"Uma postagem da médica Leanara Amaro Rocha, da cidade de Guajará-Mirim (RO), revoltou internautas e chegou até o vereador Rivan Eguez (PV), que informou ter levado o caso às autoridades.Nos Stories do Instagram, a médica, cuja formatura foi antecipada em maio de 2020 devido à necessidade por profissionais diante da pandemia, postou que no mesmo plantão havia intubado dois pacientes. Na sequência, contudo, escreveu: 'kakakakka Mais um eu peço música no fantástico', junto com um emoji de risada. Diante das críticas, Leanara Rocha divulgou uma carta aberta pedindo desculpas à população."
Mais um texto realista, mas
muito triste.
Embora caiba
perfeitamente na notícia reproduzida acima não foi a ela que tal afirmação foi
dirigida. Recebi-a em um comentário, feito por e-mail por uma ex-colega de
trabalho e eterna amiga, sobre a postagem que antecedeu a esta. Comentário que
respondi assim:
Entendo a realidade como algo composto de alegrias e de tristezas.Alegrias que propiciam momentos que devem ser curtidos.Tristezas que propiciam lições que devem ser aprendidas, pois, infelizmente, pouco ou nada se aprende com as alegrias.Sim, mais um texto realista, que chama atenção para coisas tristes que propiciam lições que devem ser aprendidas.
Aprendizado que além de tornar-nos pessoas
melhores poderá livrar-nos de novas tristezas.
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