"Uma sociedade que abandona os fracos e só valoriza os fortes não é uma sociedade de verdade."
(Tamaki Saito,
psiquiatra japonês)
Retornando para casa no
sábado mais recente, na companhia da minha esposa e de carona com meu filho e minha
nora, quando já estávamos próximos de casa deparamo-nos com um daqueles
espalhafatosos aparatos policiais montados em torno de um acidente de trânsito.
Ordenados por um dos policiais para que passássemos rapidamente, com aquela
delicadeza que caracteriza a maioria deles, consegui ver apenas que o acidente
envolvia um táxi e uma motocicleta de um entregador de refeições. Diante
daquela trágica cena, infelizmente corriqueira nas grandes cidades deste país,
eu disse algo mais ou menos assim:
"Há muita desgraça neste mundo. Recentemente, em uma edição do programa Estúdio i, apresentado no Globo News, o jornalista Octávio Guedes contou que ao atender um entregador em sua casa ele o viu ensanguentado. Chocado com o estado do entregador, Octávio ouviu dele apenas o seguinte: 'Pelo amor de Deus não me avalie mal.'"
Ao ouvir o que eu dissera,
minha nora disse que seu pai já presenciara situação semelhante à presenciada por
Octávio Guedes. Mas o pior é o que ela diria a seguir. Uma amiga e colega de
trabalho contara-lhe que ao ligar para uma pizzaria para comunicar o atraso na
entrega do seu pedido, ouviu da atendente, em prantos, que sua entrega estava
atrasada porque o entregador que a estava levando morrera em um acidente de
trânsito quando estava a caminho de sua casa.
Segundo minha nora, o
fato do entregador ter morrido quando estava levando o seu pedido deixara sua
amiga muito abalada. Diferentemente de Ricardo Barros, deputado federal há seis
mandatos e ministro da Saúde no governo Temer, a doutora Fernanda, que assim como minha
nora é médica, abala-se diante de acidentes de trânsitos. Segue a "pérola"
dita pelo deputado e reproduzida a partir
do final do 18º minuto do episódio do programa GREG NEWS
intitulado Desvio na Saúde (https://www.youtube.com/watch?v=B2XqF3aWobA&t=1s), exibido em 29 de maio de 2020.
"Os hospitais estão quase quebrando porque eles perderam no seu movimento normal as cirurgias eletivas, aquelas que não são emergenciais, os acidentes de trânsito caíram muito, também eram um motivo de faturamento dos hospitais..."
Um
ex-ministro da Saúde que lamenta a queda na quantidade de acidentes de
trânsito, pois o que, realmente, importa é o faturamento do hospital e não a
saúde das pessoas. Será que para indivíduos como ele a denominação mais adequada
seria Ministério da Doença?
Embora,
como já dito no primeiro parágrafo desta postagem, acidentes de trânsito
envolvendo entregadores sejam algo corriqueiro nas grandes cidades
deste país, ter passado em frente a mais um, poucos dias após ter tomado conhecimento
do episódio relatado por Octávio Guedes, despertou minha vontade de elaborar
uma postagem com a intenção de levar-nos a refletir sobre essa trágica realidade.
Como título, o primeiro
que me veio à cabeça foi: "Sua pizza não vai chegar". Pensei um pouco
e mudei-o para "Sua pizza poderá não chegar". Pensei mais um pouco e cheguei
à seguinte conclusão: chegar a pizza sempre chegará, pois, nesta coisa que
Tamaki Saito diz "não ser uma sociedade de verdade", mesmo que um ou até
mais entregadores morram durante o trajeto, haverá sempre "um dos fracos"
disposto a arriscar a própria vida para entregar o pedido "de um dos
fortes", em troca de uma remuneração aviltada. Portanto, se chegar ela
sempre chegará, e o que poderá ocorrer é um atraso na chegada, creio que
"Sua pizza poderá demorar a chegar", seja um título adequado para
esta postagem.
E
ao lhe entregar este texto "ensanguentado", faço-lhe o mesmo
pedido que o entregador fez ao outro Guedes, o Octávio: "Pelo amor de Deus não me avalie mal.'" E com a intenção de
ajudá-la (o) em sua avaliação segue a descrição de um episódio envolvendo o famoso
pintor e escultor espanhol Pablo Picasso.
Tendo pintado um quadro alusivo ao bombardeio da cidade de Guernica, realizado pelos fascistas, em 28 de abril de 1937, em que retratara todo o horror de homens, mulheres e crianças, mutilados, de forma magistralmente trágica, ao qual deu o nome Guernica, conta-se que Abetz, embaixador de Hitler em Paris, ficou tão impressionado com a obra, que teria perguntado a Picasso, aparentando desinteresse:- É obra sua?- Não. Sua. – Replicou o artista com frieza.
O
que o relato do episódio envolvendo Pablo Picasso tem a ver com esta postagem?
A possibilidade de, embora eu não tenha a menor intenção de comparar-me com o extraordinário
pintor espanhol, impressionada (o) com o trágico teor desta postagem ensanguentada pela
lembrança dos mutilados e dos mortos nessa autêntica guerra urbana, alguém perguntar:
- "É obra sua?". E eu ter que responder: - "Não. Nossa. De todos
os integrantes deste planeta. Ou seja, de cada um deles; mais de uns do que de
outros, porém de todos, e eu explico."
E
para explicar, recorro a um trecho do extraordinário livro de Gibran Khalil
Gibran intitulado O Profeta. Um dos
melhores livros que li, reli inúmeras vezes, e até hoje não consegui compreender
totalmente. O trecho é de um capítulo intitulado "Então um dos juízes da cidade acercou-se e disse: 'Fala-nos do crime e
do castigo.'". A postagem publicada em 23 de novembro de2012 é homônima do capítulo e, no meu entender, de leitura imperdível.
"E da mesma forma que nenhuma folha amarelece senão com o silencioso assentimento da árvore inteira,Assim o malfeitor não pode praticar seus delitos sem a secreta concordância de todos vós."
Mutatis mutandis,
"Assim o que de pior ocorre em uma pseudo
sociedade não pode ser praticado sem a secreta concordância de todos nós." A
mensagem de Gibran tem cem anos, pois o livro é de 1923. A mensagem reproduzida
a seguir é mais recente, pois foi publicada na
edição de 22.02.2012 do jornal O Estado de S. Paulo em um
artigo de David Autor,
economista do Massachusetts Institute of Technology.
"Quando as pessoas leem nos jornais a respeito das péssimas condições de trabalho nas fábricas chinesas, talvez fiquem momentaneamente revoltadas. Mas depois entram na Amazon e não têm a menor piedade na hora de pagar os preços mais baixos pelos produtos."
Será que o que é descrito no
parágrafo acima tem alguma coisa a ver com o tema desta postagem: "a possibilidade de sua pizza
demorar a chegar devido a um acidente com o entregador que a transportava?" Será que tem alguma coisa a
ver com "a secreta
concordância de todos nós"
com a cada vez maior precarização do trabalho? Será que tem algo a ver com o
que diz Gibran Khalil Gibran? O que você acha?
Ser mal avaliado pelo
recebedor do pedido, eis a única preocupação do entregador ensanguentado!
Ser avaliado por serviços prestados "aos
fortes", eis a única
preocupação "dos fracos" neste aglomerado confuso que Tamaki
Saito diz "não ser uma
verdadeira sociedade".
Avaliações, eis algo do qual gosto demais! Gosto tanto que a postagem publicada
em 18 de dezembro de 2014 é intitulada Avaliações.
Avaliações, eis algo em
relação ao qual enxergo dois equívocos: quanto ao que se deve avaliar e quanto
à finalidade com que se realiza a avaliação. Será que, em uma sociedade
de verdade, em vez do serviço prestado pelo entregador o que seria avaliado
é a própria existência desse impróprio serviço? Ou seja, avaliar não os fracos,
e sim essa coisa deplorável na qual os fracos são explorados? Essa coisa que,
segundo Tamaki Saito, "não é uma sociedade de verdade".
Sim, sua pizza poderá
demorar a chegar, mas uma coisa que já demora demais a chegar é a
conscientização de que a qualidade de uma sociedade é resultado das ações de todos os seus componentes.
Coincidentemente, a ideia
de elaborar esta postagem surgiu poucos dias antes da celebração do Dia de Finados. Sendo assim, diante da
absurda quantidade de entregadores que, em busca de ganhar a vida (acho estranhíssima essa expressão!) acabam perdendo-a
estupidamente em acidentes de trânsito, no meu entender, esta postagem pode ser
considerada também uma postagem alusiva ao Dia
de Finados.
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