sábado, 3 de junho de 2023

Reflexões provocadas por "A produtividade do descanso e da recreação" (I)

"Uma das boas coisas sobre o corpo humano é que ele se desgasta. Ele se cansa."
Com as duas frases reproduzidas acima, Joan Chittister inicia seu extraordinário texto intitulado A produtividade do descanso e da recreação. Sim, o corpo humano se cansa. Cansaço que ele usa para alertar-nos sobre a imprescindibilidade de receber um período de descanso que o possibilite recuperar-se como preparação para o dia seguinte. Descanso que ele recebia de forma, digamos, inevitável até o surgimento de uma invenção que ofereceu ao ser humano a possibilidade de escolher entre lhe dar ou não o imprescindível período de descanso. O trecho do texto de Joan Chittister reproduzido no próximo parágrafo revela qual é a referida invenção.
"Naquela época (antes do surgimento das lâmpadas, antes que a humanidade pudesse fazer pouco ou nada para estender o dia à noite e realmente eliminar a diferença entre os dois), quando o sol se punha, as pessoas iam para a cama. "Produza feno enquanto o sol brilha", diziam os fazendeiros – e por boas razões – já que certamente não havia como fazer de outra forma. Os dias eram medidos do nascer ao pôr do sol. Não eram divididos em turnos. A escuridão cobria a terra e, com ela, vinha o silêncio, o descanso e o tempo de recuperação como preparação para o dia seguinte. (...) Era absolutamente diferente de um mundo em que a Internet conecta os confins da Terra 24 horas por dia."
Ou seja, enquanto a humanidade não tinha como escolher entre descansar o corpo ou não ela o descansava, porém, a partir do momento em que passou a ter como escolher o resultado é esse que aí está: a cada nova invenção oferecida pela tecnologia ela descansa o corpo cada vez menos. Fazer escolhas adequadas, eis uma enorme dificuldade para a maioria dos integrantes da pretensa espécie inteligente do universo. E ao falar em fazer escolhas vem-me à mente o seguinte trecho de uma bela música de James Blunt intitulada Same Mistake.
Give me reason, but don't give me choice
Me dê razão, mas não me dê escolha
Cause I'll just make the same mistake, again
Porque eu apenas cometerei o mesmo erro, de novo
Cometer o mesmo erro, de novo, eis uma prática da qual a pretensa espécie inteligente do universo tem uma dificuldade enorme de se livrar!
"A escuridão cobria a terra e, com ela, vinha o silêncio, o descanso e o tempo de recuperação como preparação para o dia seguinte. (...) Naquela época, quando o sol se punha, as pessoas iam para a cama.", diz Joan Chittister.
As épocas passam, as coisas mudam, e em um livro intitulado 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono, publicado há dez anos, Jonathan Crary faz sinistras revelações sobre coisas relacionadas ao descanso e ao sono que já ocorriam naquela época, e de lá para cá só pioraram. Os quatro próximos parágrafos foram extraídos do referido livro.
"Por iniciativa da Darpa (Defense Advanced Research Projects Agency) – divisão de pesquisas avançadas do Pentágono -, diversos laboratórios estão conduzindo testes experimentais de técnicas de privação de sono, recorrendo a substâncias neuroquímicas, terapia genética e estimulação magnética transcraniana. O objetivo de curto prazo consiste em desenvolver métodos que permitam a um combatente ficar pelo menos sete dias sem dormir, e, no longo prazo, a ideia é duplicar esse período, preservando níveis altos de desempenho mental e físico."
"(...) A história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente assimiladas na esfera social mais ampla, e o soldado sem sono seria o precursor do trabalhador ou do consumidor sem sono. Produtos contra o sono, após agressiva campanha de marketing das empresas farmacêuticas, iriam se tornar uma opção de estilo de vida – e depois, para muitos, uma necessidade."
"Mercados atuando em regime de 24/7 – 24 horas por sete dias na semana – e infraestrutura global para o trabalho e o consumo contínuos existem há algum tempo, mas agora é o homem que está sendo usado como cobaia para o perfeito funcionamento da engrenagem."
"A privação de sono como forma de tortura é aplicada há muitos séculos, mas seu uso sistemático coincide historicamente com a disponibilidade de luz elétrica e a facilidade para amplificar o som de modo contínuo. (...) Em experimentos, ratos morrem depois de três semanas de insônia. Em humanos, basta um período relativamente curto para tal prática induzir à psicose; após algumas semanas, surgem danos neurológicos. A falta de sono acarreta um estado de extremo desamparo e submissão - é impossível extrair informações relevantes da vítima, que confessará ou inventará qualquer coisa. A negação do sono é uma desapropriação violenta do eu por forças externas, é o aniquilamento calculado de um indivíduo."
Ao dizer que "A privação de sono como forma de tortura é aplicada há muitos séculos, mas seu uso sistemático coincide historicamente com a disponibilidade de luz elétrica.", no meu entender, Jonathan Crary aponta mais um uso maléfico da luz elétrica. O primeiro uso citado nestas reflexões foi apontado por Joan Chittister quando ela associa a negligência em relação ao imprescindível descanso requerido pelo corpo ao surgimento das lâmpadas. Usar apenas para o bem as invenções colocadas ao seu dispor, eis uma coisa que a pretensa espécie inteligente do universo ainda não conseguiu aprender a fazer.
Aplicada há muitos séculos como forma de tortura a prisioneiros, a privação de sono é agora estendida a quase todas as pessoas. Até porque, se pararmos para pensar, imersos em um estonteante desenvolvimento tecnológico que assola este planeta, quase todos os seus integrantes são, de alguma forma, prisioneiros de alguma bugiganga tecnológica. E o pior: eles não se reconhecem como tal. E ao falar em não se reconhecerem como sendo prisioneiros, vem-me à mente a seguinte história contada por Roberto Crema (antropólogo, psicólogo do Colégio Internacional de Terapeutas e reitor da UNIPAZ – Universidade Internacional da Paz) em um extraordinário livro intitulado Eu Maior – Uma reflexão sobre o autoconhecimento e a busca da felicidade, organizado e editado por Fernando Schultz, reproduzida a seguir.
"A minha história é a história de alguém que sempre se sentiu um prisioneiro. Quando eu tinha 11 anos, meus pais me colocaram num reformatório por engano. Oficialmente, o local era um colégio interno, mas alguns adolescentes estavam lá presos, por terem cometido crimes. Lá fiquei durante um ano e pude me aprofundar nessa vivência de ser um prisioneiro. A experiência me fascinou de tal forma que, anos mais tarde, já adulto, eu quis fazer serviços voluntários na Papuda, que é um presídio em Brasília. Foi lá que me dei conta de que a grande diferença entre os presos da Papuda e o resto de nós é que lá eles sabem que são prisioneiros, enquanto aqui nos iludimos achando que somos livres. Em última instância, como bem dizem os orientais, a prisão é maya, a ilusão."
Feita a reprodução dessa história contada por Roberto Crema, comparemo-la com a seguinte afirmação de Jonathan Crary já citada nestas reflexões, reproduzida a seguir.
"Produtos contra o sono, após agressiva campanha de marketing das empresas farmacêuticas, iriam se tornar uma opção de estilo de vida – e depois, para muitos, uma necessidade."
"Agressivas campanhas de marketing para tornar toda e qualquer invenção uma opção de estilo de vida – e depois, para muitos, uma necessidade! Será que essa frase descreve o modus operandi não só das empresas farmacêuticas, mas também de todas as gigantescas corporações que se apossaram deste planeta? Será que ter necessidade de toda e qualquer bugiganga produzida por tais corporações, sob o pretexto de ser impossível viver sem ela, é algo que pode ser considerado como tornar-se prisioneiro de tais corporações? Será que Roberto Crema está certo quando diz que a grande diferença entre os presos da Papuda e o resto de nós é que lá eles sabem que são prisioneiros, enquanto aqui nos iludimos achando que somos livres? Será que vale a pena ler a postagem publicada em 29 de março de 2023 cujo título é constituído pela seguinte indagação: "Existem homens livres?"
Após a série de indagações apresentada acima, encerro estas reflexões provocadas pelo instigante texto de Joan Chittister com a pretensão de continuá-las ou terminá-las em uma postagem a ser publicada na próxima sexta-feira.
Continua ou termina na próxima sexta-feira

Nenhum comentário: