Uma
recente ida a uma banca de jornais e revistas localizada em uma praça que fica
próxima a minha residência possibilitou-me comprovar, mais uma vez, que além de
uma caixinha de surpresas (agradáveis e desagradáveis) a vida é também uma
caixinha de coincidências. Após mais de dois anos sem comprar a revista Vida Simples, diante de algumas edições
lá expostas, comprei uma cuja capa faz chamadas para os seguintes temas: Saiba dizer não / Mundo analógico / Hora de
dormir / Chegada do outono. Temas
que considero muito interessantes, principalmente, Mundo analógico. Mundo do qual a própria banca de jornais
e revistas pode ser considerada uma autêntica remanescente.
Vendida em embalagem plástica que impede de folheá-la, e
assim ver todos os temas por ela explorados, mais do que uma surpresa, a
abertura da embalagem traria uma agradável coincidência: a descoberta de um
texto contendo ideias cujo espalhamento cairia muito bem em sequência às postagens
da "série" Transcendendo as
ilusões.
Dito
isto, cumprindo o que foi prometido no último parágrafo da postagem anterior,
segue um texto de Raphaela de Campos Mello publicado na edição número 241 da
revista Vida Simples sob o título Existe amor pelo coletivo. Texto em que ela apresenta uma
entrevista na qual Renato Noguera, doutor em filosofia,
docente no Departamento de Educação e Sociedade da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, se apoia
em saberes ancestrais para acordar em nós o sentido de comunidade e
pertencimento.
Existe amor pelo
coletivo
Somos muito mais amorosos do que o individualismo quer
nos fazer crer. Em tempos críticos, o filósofo Renato Noguera se apoia em
saberes ancestrais para acordar em nós o sentido de comunidade e pertencimento
Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Mãe Stella de Oxóssi, Nêgo
Bispo, Sobonfu Somé e Sandra Benites são alguns dos mestres e mestras que
fertilizam a mente e o coração de Renato Noguera, doutor em filosofia, docente no
Departamento de Educação e Sociedade da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas.
Com gratidão e reverência, ele traz ao centro do debate ideias e saberes sobre
como podemos viver melhor juntos. Com os povos tradicionais, aprendemos que é
possível perpetuar um espaço ancorado na escuta, na discordância, no respeito
e, principalmente, na preservação da vida. Em Por que Amamos: O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor
(Harper Collins), Noguera nos inspira a pensar o amor por nós, por nossos
pares, familiares, pela sociedade e pela natureza como um exercício elementar,
tal qual respirar, comer e beber. Nestes tempos áridos, ele rememora nossa
capacidade de criar o bem maior.
A pandemia revelou a
crise da coletividade. Como nos tornamos tão individualistas?
O individualismo é muito antigo. Tem uma ideia de self-made man, daquela pessoa que se faz
por si só, como se ela não tivesse alguém, um grupo, uma história, uma
ancestralidade, um meio social. Reside aí certa ilusão de uma narrativa
heroica, de uma pessoa que sozinha consegue atingir um alvo. Então, quando a
gente faz campanha disso, acaba que a valorização do coletivo, do comunitário,
fica muito menor. Eu sou fruto de uma história familiar que me possibilitou que
eu fizesse alguns esforços individuais, mas dentro de um contexto. Meu avô me
contava histórias do avô dele. Eu não teria esse background se eu não fosse da
minha família, que é de origem gueroual africana. Por isso, tenho sempre que
saudar minha história. Sem essa compreensão, perde-se a consciência do lugar de
cada um no contexto geral e louva-se a meritocracia.
Daí explode uma crise
sanitária global e os valores individualistas prevalecem...
Gosto de sistemas biocêntricos, em que a vida está no
centro. A vida é mais importante. A gente não come dinheiro, a gente não se
alimenta de ideologia somente. Hoje há uma inversão, a vida passa a ficar menor
do que alguns valores, ela se torna satélite. As pessoas querem defender certos
princípios independentemente se eles servem ou não à vida. Para ser saudável é
preciso ter saúde afetiva e em todos os sentidos. Precisamos valorizar
fundamentalmente a vida.
O que precisa
acontecer para deixarmos de ser muros e nos tornarmos pontes?
É preciso haver um tipo de sentimento infantil. Se a
gente entra numa "adultidade", enquanto um processo
de alteração do nosso caráter inventivo da vida se fecha e passa a acreditar
que existem poucos recursos, então achamos que a Terra só pode ser habitada por
poucos. Por isso, tem de haver muros para proteger os poucos que são os puros e
têm direitos porque nasceram com eles ou porque, sendo muito bem armados,
lutaram por eles. A lógica do muro se baseia no pressuposto de que eu só posso
amar o meu grupo, com o resto eu entro em conflito. Mas não se trata disso. A
gente não precisa amar todos os grupos humanos e ter concordâncias com eles,
mas tem de compartilhar o espaço porque o ecossistema é um só.
Como esse modo de
viver em sociedade se dá na prática?
As pontes são possíveis nesse sistema porque todos
escutam todos. Já no muro não há interesse em escutar o que o outro tem a
dizer, nem que seja para discordar. Quando fazemos pontes, vamos negociar
incansavelmente como a gente preserva e conserva todas as potências da vida.
Esse é o parâmetro fundamental. Existem muitos grupos humanos com várias
tecnologias para isso. Então precisamos trocar esses saberes e usá-los de modo
colaborativo.
Na atual crise
brasileira, como não se deprimir nem se anestesiar frente ao sofrimento humano?
Precisamos fazer projetos políticos. Os modelos do
quilombo e da aldeia, por exemplo, não são paraísos, mas são ecossistemas
equilibrados. Na cidade existem pessoas desabrigadas. Numa aldeia não faz
sentido haver uma pessoa que não tenha uma rede onde ela possa se deitar. No
quilombo havia negros, indígenas e pessoas brancas que coabitavam de modo
colaborativo, com produção coletiva. Então, nós precisamos utilizar essas duas
estruturas para implementá-las na cidade. Uma mudança simples: onde há espaços
públicos coletivos, é preciso ter hortas para que a população possa colher
vegetais conforme sua necessidade. Também é preciso haver espaço de ocupação
para todas as pessoas, bem como atividades laborativas das quais eles extraiam
seu sustento.
Os desafios
enfrentados coletivamente nos últimos anos apontam para qual direção?
Temos desafios que vão exigir cooperação em relação a
novas doenças, à mudança climática, à insegurança alimentar, à circulação de
bens de consumo, à empregabilidade. Isso tem que ser resolvido de modo
colaborativo, coletivo, mundial, porque vivemos numa aldeia global. O que
acontece num lugar gera impactos no mundo inteiro, não há como negar. Atentos a
isso, vamos ter que colaborar mais. Reconhecendo as diferenças e sem idealizar
o outro nem como anjo, nem como demônio, e sim como pessoas que têm facilidades
e dificuldades. Algumas estão numa chave sistemática de exploração de outras.
Vamos ter que discutir isso. Alguns grupos e países têm mais privilégios no
cenário internacional. Também vamos ter que debater isso e escutar outros
repertórios.
O que seu coração mais
anseia para a nossa sociedade?
Confiança e amor. Existe uma palavra em yorubá que é ifé e que significa amor.
Coincidentemente, esse radical "fé" remete à noção de confiança.
Confiança é uma senha importantíssima para se estabelecer contrato e acordo, e
ela se faz com base na possibilidade de nos conectarmos. Desejo que as pessoas
tenham conexão com a sua vida emocional, com seus sentimentos verdadeiros, para
que vivam sem desfaçatez. Também precisamos evitar as fantasias salvacionistas
no âmbito de vida pública. Em 2022, precisaremos de consciência e debate
qualificado. Enfim, do amor no seu sentido mais filosófico, aquele que nos
permite projetar um futuro e catalisar o bem-estar.
"Confiança é uma
senha importantíssima para se estabelecer contrato e acordo, e ela se faz com
base na possibilidade de nos conectarmos uns com os outros"
Baseado em saberes
ancestrais, Renato Noguera deseja que, em 2022, possamos desenvolver a
confiança, o amor e a consciência para um bem-estar coletivo
*************
Segundo Raphaela de Campos Mello (em afirmação feita no topo de seu texto), o
filósofo Renato Noguera se apoia em saberes ancestrais para acordar em nós o
sentido de comunidade e pertencimento.
Segundo Severino Antônio, Ph.D., educador e
escritor, (em afirmação feita em uma passagem do documentário O Começo da Vida), "Uma das grandes solidões do mundo contemporâneo é a perda de
comunidade. Perdemos esse sentido comunitário."
Segundo
Jean Vanier (1928 – 2019), filósofo e teólogo
canadense, "As pessoas querem
redescobrir a sensação de viver numa comunidade verdadeira. Estamos fartos de
solidão, independência e competição."
Segundo eu (apoiado no que dizem Renato Noguera, Severino
Antônio e Jean Vanier), deveríamos enxergar como conveniente refletir sobre tudo
o que é dito no excelente texto de Raphaela de Campos Mello.
Segundo cada um de vocês, .............
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