terça-feira, 12 de julho de 2022

Existe amor pelo coletivo

Uma recente ida a uma banca de jornais e revistas localizada em uma praça que fica próxima a minha residência possibilitou-me comprovar, mais uma vez, que além de uma caixinha de surpresas (agradáveis e desagradáveis) a vida é também uma caixinha de coincidências. Após mais de dois anos sem comprar a revista Vida Simples, diante de algumas edições lá expostas, comprei uma cuja capa faz chamadas para os seguintes temas: Saiba dizer não / Mundo analógico / Hora de dormir / Chegada do outono. Temas que considero muito interessantes, principalmente, Mundo analógico. Mundo do qual a própria banca de jornais e revistas pode ser considerada uma autêntica remanescente.
Vendida em embalagem plástica que impede de folheá-la, e assim ver todos os temas por ela explorados, mais do que uma surpresa, a abertura da embalagem traria uma agradável coincidência: a descoberta de um texto contendo ideias cujo espalhamento cairia muito bem em sequência às postagens da "série" Transcendendo as ilusões.
Dito isto, cumprindo o que foi prometido no último parágrafo da postagem anterior, segue um texto de Raphaela de Campos Mello publicado na edição número 241 da revista Vida Simples sob o título Existe amor pelo coletivo. Texto em que ela apresenta uma entrevista na qual Renato Noguera, doutor em filosofia, docente no Departamento de Educação e Sociedade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, se apoia em saberes ancestrais para acordar em nós o sentido de comunidade e pertencimento.
Existe amor pelo coletivo
Somos muito mais amorosos do que o individualismo quer nos fazer crer. Em tempos críticos, o filósofo Renato Noguera se apoia em saberes ancestrais para acordar em nós o sentido de comunidade e pertencimento
Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Mãe Stella de Oxóssi, Nêgo Bispo, Sobonfu Somé e Sandra Benites são alguns dos mestres e mestras que fertilizam a mente e o coração de Renato Noguera, doutor em filosofia, docente no Departamento de Educação e Sociedade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas. Com gratidão e reverência, ele traz ao centro do debate ideias e saberes sobre como podemos viver melhor juntos. Com os povos tradicionais, aprendemos que é possível perpetuar um espaço ancorado na escuta, na discordância, no respeito e, principalmente, na preservação da vida. Em Por que Amamos: O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor (Harper Collins), Noguera nos inspira a pensar o amor por nós, por nossos pares, familiares, pela sociedade e pela natureza como um exercício elementar, tal qual respirar, comer e beber. Nestes tempos áridos, ele rememora nossa capacidade de criar o bem maior.
A pandemia revelou a crise da coletividade. Como nos tornamos tão individualistas?
O individualismo é muito antigo. Tem uma ideia de self-made man, daquela pessoa que se faz por si só, como se ela não tivesse alguém, um grupo, uma história, uma ancestralidade, um meio social. Reside aí certa ilusão de uma narrativa heroica, de uma pessoa que sozinha consegue atingir um alvo. Então, quando a gente faz campanha disso, acaba que a valorização do coletivo, do comunitário, fica muito menor. Eu sou fruto de uma história familiar que me possibilitou que eu fizesse alguns esforços individuais, mas dentro de um contexto. Meu avô me contava histórias do avô dele. Eu não teria esse background se eu não fosse da minha família, que é de origem gueroual africana. Por isso, tenho sempre que saudar minha história. Sem essa compreensão, perde-se a consciência do lugar de cada um no contexto geral e louva-se a meritocracia.
Daí explode uma crise sanitária global e os valores individualistas prevalecem...
Gosto de sistemas biocêntricos, em que a vida está no centro. A vida é mais importante. A gente não come dinheiro, a gente não se alimenta de ideologia somente. Hoje há uma inversão, a vida passa a ficar menor do que alguns valores, ela se torna satélite. As pessoas querem defender certos princípios independentemente se eles servem ou não à vida. Para ser saudável é preciso ter saúde afetiva e em todos os sentidos. Precisamos valorizar fundamentalmente a vida.
O que precisa acontecer para deixarmos de ser muros e nos tornarmos pontes?
É preciso haver um tipo de sentimento infantil. Se a gente entra numa "adultidade", enquanto um processo de alteração do nosso caráter inventivo da vida se fecha e passa a acreditar que existem poucos recursos, então achamos que a Terra só pode ser habitada por poucos. Por isso, tem de haver muros para proteger os poucos que são os puros e têm direitos porque nasceram com eles ou porque, sendo muito bem armados, lutaram por eles. A lógica do muro se baseia no pressuposto de que eu só posso amar o meu grupo, com o resto eu entro em conflito. Mas não se trata disso. A gente não precisa amar todos os grupos humanos e ter concordâncias com eles, mas tem de compartilhar o espaço porque o ecossistema é um só.
Como esse modo de viver em sociedade se dá na prática?
As pontes são possíveis nesse sistema porque todos escutam todos. Já no muro não há interesse em escutar o que o outro tem a dizer, nem que seja para discordar. Quando fazemos pontes, vamos negociar incansavelmente como a gente preserva e conserva todas as potências da vida. Esse é o parâmetro fundamental. Existem muitos grupos humanos com várias tecnologias para isso. Então precisamos trocar esses saberes e usá-los de modo colaborativo.
Na atual crise brasileira, como não se deprimir nem se anestesiar frente ao sofrimento humano?
Precisamos fazer projetos políticos. Os modelos do quilombo e da aldeia, por exemplo, não são paraísos, mas são ecossistemas equilibrados. Na cidade existem pessoas desabrigadas. Numa aldeia não faz sentido haver uma pessoa que não tenha uma rede onde ela possa se deitar. No quilombo havia negros, indígenas e pessoas brancas que coabitavam de modo colaborativo, com produção coletiva. Então, nós precisamos utilizar essas duas estruturas para implementá-las na cidade. Uma mudança simples: onde há espaços públicos coletivos, é preciso ter hortas para que a população possa colher vegetais conforme sua necessidade. Também é preciso haver espaço de ocupação para todas as pessoas, bem como atividades laborativas das quais eles extraiam seu sustento.
Os desafios enfrentados coletivamente nos últimos anos apontam para qual direção?
Temos desafios que vão exigir cooperação em relação a novas doenças, à mudança climática, à insegurança alimentar, à circulação de bens de consumo, à empregabilidade. Isso tem que ser resolvido de modo colaborativo, coletivo, mundial, porque vivemos numa aldeia global. O que acontece num lugar gera impactos no mundo inteiro, não há como negar. Atentos a isso, vamos ter que colaborar mais. Reconhecendo as diferenças e sem idealizar o outro nem como anjo, nem como demônio, e sim como pessoas que têm facilidades e dificuldades. Algumas estão numa chave sistemática de exploração de outras. Vamos ter que discutir isso. Alguns grupos e países têm mais privilégios no cenário internacional. Também vamos ter que debater isso e escutar outros repertórios.
O que seu coração mais anseia para a nossa sociedade?
Confiança e amor. Existe uma palavra em yorubá que é ifé e que significa amor. Coincidentemente, esse radical "fé" remete à noção de confiança. Confiança é uma senha importantíssima para se estabelecer contrato e acordo, e ela se faz com base na possibilidade de nos conectarmos. Desejo que as pessoas tenham conexão com a sua vida emocional, com seus sentimentos verdadeiros, para que vivam sem desfaçatez. Também precisamos evitar as fantasias salvacionistas no âmbito de vida pública. Em 2022, precisaremos de consciência e debate qualificado. Enfim, do amor no seu sentido mais filosófico, aquele que nos permite projetar um futuro e catalisar o bem-estar.
"Confiança é uma senha importantíssima para se estabelecer contrato e acordo, e ela se faz com base na possibilidade de nos conectarmos uns com os outros"
Baseado em saberes ancestrais, Renato Noguera deseja que, em 2022, possamos desenvolver a confiança, o amor e a consciência para um bem-estar coletivo
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Segundo Raphaela de Campos Mello (em afirmação feita no topo de seu texto), o filósofo Renato Noguera se apoia em saberes ancestrais para acordar em nós o sentido de comunidade e pertencimento.
Segundo Severino Antônio, Ph.D., educador e escritor, (em afirmação feita em uma passagem do documentário O Começo da Vida), "Uma das grandes solidões do mundo contemporâneo é a perda de comunidade. Perdemos esse sentido comunitário."
Segundo Jean Vanier (1928 – 2019), filósofo e teólogo canadense, "As pessoas querem redescobrir a sensação de viver numa comunidade verdadeira. Estamos fartos de solidão, independência e competição."
Segundo eu (apoiado no que dizem Renato Noguera, Severino Antônio e Jean Vanier), deveríamos enxergar como conveniente refletir sobre tudo o que é dito no excelente texto de Raphaela de Campos Mello.
Segundo cada um de vocês, .............

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