terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Uma história sobre uma estranha (e eficaz) forma de conversa

"Agora, se pensarmos em conjunto, então, talvez possamos solucionar nossos problemas em comum."

(David Bohm [1917 - 1992], físico norte-americano)

Prosseguindo com o espalhamento de ideias por meio de histórias, segue uma história obtida no livro Diálogo - Redescobrindo o poder transformador da conversa, de Linda Ellinor e Glenna Gerard, em um capítulo intitulado "De onde vem o diálogo?". O título do texto foi dado por mim.
Uma história sobre uma estranha (e eficaz) forma de conversa
David Bohm frequentemente contava uma história sobre como seria para um ocidental sentar ao redor de uma fogueira à noite, em companhia de indígenas. Supondo que a linguagem não constituísse barreira, o ocidental poderia pensar se tratar de uma conversa à toa, sem qualquer objetivo especial, que abordasse muitos assuntos sem qualquer correlação. É possível que não notasse qualquer linha óbvia costurando a conversa. Se a tribo indígena fosse das planícies norte-americanas, na manhã seguinte todos poderiam se levantar e ir caçar bisões juntos. Nosso ocidental poderia ver como suas ações seriam bem coordenadas. Os que participassem da caçada saberiam exatamente o que fazer sem qualquer estrutura ou plano óbvios. Como isso é possível? Devido a uma conversa sem propósito? Onde estão as definições de seus papéis e quem está no comando? Quando elaboraram seus planos? Essa situação não faz qualquer sentido para nossa maneira ocidental de fazer as coisas.
Poderíamos especular que a gênese da forma do diálogo tem sua origem nesse tipo de conversa informal: nossos ancestrais, em pequenas tribos, criando significado compartilhado através da palavra falada. Sentados em círculo à noite, quando não havia luz suficiente para caçar ou trabalhar, compartilhando histórias de seu trabalho e atividades diários. Processando quaisquer tensões que possam ter se desenvolvido e contando histórias que lhes foram transmitidas, por sua vez, pelos seus ancestrais. Todas espalhando as sementes de sua forma de vida e trabalho em conjunto, em comunidade. Agindo como a linha que une os integrantes de um todo sem costuras.
Um importante artefato herdado dos indígenas norte-americanos pelo diálogo moderno é a ideia do bastão de falar. Nas reuniões de conselho dos nativos norte-americanos, um bastão é frequentemente passado adiante para indicar quem tem a palavra. Evita a ocorrência de conversas cruzadas, honra as palavras e demonstra respeito pela pessoa que o detém.
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"Essa situação não faz qualquer sentido para nossa maneira ocidental de fazer as coisas.", diz David Bohm referindo-se à forma de conversa indígena e aos resultados por ela alcançados. Será que faz sentido classificar tal forma de conversa como estranha para ocidentais, e eficaz para indígenas? O título da postagem foi dado considerando que faz.
Abaixo de seu longo título (Diálogo – Redescobrindo o poder transformador da conversa), a capa do referido livro traz as seguintes palavras: "Criando e mantendo a colaboração no trabalho". Palavras que tocam-me bastante, pois descrevem o que tentei fazer durante as 3,7 décadas em que trabalhei no mundo corporativo. E é com base no que vivenciei durante todo esse tempo que classifico como estranha a forma de conversa descrita na história contada por David Bohm, por ser inteiramente diferente da imensa maioria das inúmeras conversas que vivenciei em reuniões no mundo corporativo, como evidencia a comparação que faço a seguir.
Segundo a história contada por David Bohm, "Os indígenas tinham um tipo de conversa informal, criando significado compartilhado através da palavra falada, compartilhando histórias de seu trabalho e atividades diários, processando quaisquer tensões que possam ter se desenvolvido, espalhando as sementes de sua forma de vida e trabalho em conjunto, em comunidade, agindo como a linha que une os integrantes de um todo sem costuras. (...) Nas reuniões de conselho dos nativos norte-americanos, um bastão é frequentemente passado adiante para indicar quem tem a palavra. Evita a ocorrência de conversas cruzadas, honra as palavras e demonstra respeito pela pessoa que o detém."
Segundo a história que eu poderia escrever (com base no que vivenciei e no texto do parágrafo anterior), "Os chefes do mundo corporativo tinham um tipo de conversa formal, dificultando o significado compartilhado através da palavra voltada para a prática de cada um defender o seu lado, desenvolvendo tensões que poderiam ter sido evitadas, espalhando as sementes de sua forma de vida e trabalho individual, egoísta, agindo sem uma linha que une os integrantes de um todo sem costuras. Até porque naquele sinistro ambiente a insanidade chegou ao ponto de criar programas para escolher destaques individuais entre profissionais cujo trabalho é realizado em equipes. (...) Nas reuniões do mundo corporativo, não há bastão a ser passado adiante para indicar quem tem a palavra, e não é evitada a ocorrência de conversas cruzadas (que ocorrem em todas as reuniões). Em relação ao bastão, temo que sua presença em reuniões do mundo corporativo possa levar ao surgimento de uma nova modalidade de uso: o arremesso de bastão sobre algum participante que não esteja com a palavra.

Segundo a história contada por David Bohm, "Se a tribo indígena fosse das planícies norte-americanas, na manhã seguinte todos poderiam se levantar e ir caçar bisões juntos. Nosso ocidental poderia ver como suas ações seriam bem coordenadas. Os que participassem da caçada saberiam exatamente o que fazer sem qualquer estrutura ou plano óbvios. (...) Essa situação não faz qualquer sentido para nossa maneira ocidental de fazer as coisas."

Segundo a história que eu poderia escrever, "Se os chefes fossem como a maioria dos que encontrei durante a minha trajetória no mundo corporativo, na manhã seguinte todos poderiam se levantar e ir "caçar" reuniões separados, pois participar de reuniões é a atividade quase única de tais indivíduos. Nosso indígena poderia ver como suas ações seriam mal coordenadas. Os que participassem da nova reunião não saberiam exatamente o que fazer mesmo com alguma estrutura ou plano óbvios. (...) Essa situação não faz qualquer sentido para a maneira indígena de fazer as coisas.
"Essa situação não faz qualquer sentido para a maneira indígena de fazer as coisas.". Eis uma afirmação que pode ser estendida a muitas coisas feitas pelos caras pálidas. A visão de mundo dos indígenas é extremamente diferente das nossas, e uma interessante demonstração de tal diferença pode ser vista na Carta do Cacique Seattle, um texto oriundo da tradução de um histórico discurso proferido pelo cacique Seattle em janeiro de 1854, publicada pela primeira vez em outubro de 1887. A postagem publicada em 22 de fevereiro de 2011 é intitulada A história de uma certa carta. A postagem publicada dois dias depois é intitulada A Carta do Cacique Seattle. Em termos de sabedoria indígena, em setembro de 2021 li dois livros do sábio pensador e líder indígena Ailton Krenak que espalham ideias e visão de mundo incomodadoras da nossa inconsciência. Os títulos? Ideias para adiar o fim do mundo e A vida não é útil.
E ao falar em ideias incomodadoras, em uma postagem onde foi dito que "Os (indígenas) que participassem da caçada saberiam exatamente o que fazer sem qualquer estrutura ou plano óbvios.", o método das recordações sucessivas leva-me a reproduzir aqui as seguintes palavras de Antoine de Saint-Exupéry (outro incomodador): "Se quiseres construir um navio, não reúna pessoas para elaborar planos, distribuir tarefas, buscar ferramentas, cortar madeira, mas desperta nelas o desejo de buscar a amplidão dos mares. Então, elas construirão o navio por si." É o desejo de fazer determinada coisa, e não as ordens recebidas para fazê-la, que possibilitam a realização de qualquer coisa que preste.
Sobre elaborar planos, cito aqui uma conhecida frase de John Lennon (um incomodador que imaginou um mundo melhor): "A vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos." Sobre Antoine de Saint-Exupéry, acrescento aqui algo que li em um antigo artigo escrito por Frei Betto em uma coluna que mantinha no jornal O Estado de S. Paulo. Segundo ele, algum dia o livro O Pequeno Príncipe será estudado nas universidades. Existe, inclusive, uma edição deste livro traduzida por ele. Será que faz sentido dizer que não só O Pequeno Príncipe, mas também os demais livros de Saint-Exupéry deveriam ser lidos no mundo corporativo?
Redescobrir o poder transformador da conversa, eis a recomendação feita no título do livro em que foi obtida a história que provocou esta postagem. Espalhar A necessidade de conversar, eis a intenção da postagem publicada em 31 de maio de 2011. 

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