"Nada é veneno, tudo é veneno: a diferença está na dose."
(Paracelso [1493 - 1541], médico e alquimista suíço)
"Um mundo em que parecia que
tudo era possível com ciência, com engenharia e com tecnologia.",
eis como era o mundo em que cresceu o escritor H. G. Wells (1866 – 1946). "Pioneiro em dar um tom
pessimista a suas histórias sobre progresso, ciência e tecnologia, (...) os
romances de Wells têm um foco diferente. Neles, o progresso oferecia um lado
sombrio que o autor mostra de forma ostensiva, tanto que muitas vezes se torna
o tema principal da obra.".
E ao falar em "parecer que tudo seria possível com
ciência e em lado sombrio do progresso", o parágrafo acima (extraído do
artigo do jornalista Pablo G. Bejerano) leva-me a trazer para estas reflexões algo que li na edição
de 29 de julho de 2001 do jornal Folha de
S.Paulo. Em entrevista publicada no
caderno mais! (suplemento dominical que havia no referido jornal), é
atribuída ao renomado físico brasileiro Marcelo Gleiser (1959) a afirmação
reproduzida no próximo parágrafo.
"O cientista tem o dever moral de alertar a
população não só para o lado luz, 'a ciência vai resolver os males do mundo',
mas também mostrar o lado de que ela provoca vários desses males."
Ou seja, igualmente a tudo na vida, a ciência também tem
dois lados: por um deles ela pode capacitar-se a resolver os males do mundo,
por outro alguns dos males são por ela provocados. O problema é que criaturas
fascinadas tornam-se incapazes de admitir que aquilo que as fascinam tem também um lado
sombrio capaz de provocar males.
E ao falar em "parecia que tudo era possível com
ciência e com tecnologia", o velho método das recordações sucessivas leva-me a trazer para estas reflexões dois
parágrafos de um imperdível livro do sábio pensador e líder indígena Ailton Krenak intitulado
A vida não é útil, publicado em 2020.
"A ciência e a tecnologia acham que a humanidade não só
pode incidir impunemente sobre o planeta como será a última espécie
sobrevivente e a única a decolar daqui quando tudo for pelo ralo."
(...) "Estamos transformando os oceanos em depósitos de lixo
impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar um bioquímico ou um
engenheiro espertalhão dizendo que tem uma start-up que vai jogar um negócio na
água, derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem orienta, inclusive,
as escolhas de jovens que vão fazer especializações em universidades na
Alemanha, na Inglaterra, ou em qualquer lugar, e voltam ainda mais convencidos
do erro. Voltam, assim, transbordantes de competência para persuadir os outros
de que comer o mundo é uma ótima ideia."
Uma pilantragem que
orienta jovens a fazerem especializações em universidades do primeiro mundo (primeiro em quê?) de
onde voltam transbordantes de competência para persuadir os outros de que é possível viver de formas inteiramente
irresponsáveis, pois toda e qualquer coisa estúpida produzida pelo
comportamento desta pretensa espécie inteligente (sic) do universo poderá ser
resolvida, magicamente, por uma start-up. Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem, solicitou um mestre que veio a este planeta com a
intenção de ensinar as pessoas a viverem de forma correta. E haja perdão! Mas
até quando haverá?
"Amigos que trabalham com história da
filosofia e da tecnologia me disseram que o desvio dos humanos em seu
sentimento de pertencimento à totalidade da vida se deu quando descobriram que
podiam se apropriar de uma técnica.", eis mais um trecho extraído do imperdível
livro de Ailton Krenak.
Mais do que o desvio em seu sentimento de
pertencimento à totalidade da vida, creio que a apropriação de uma técnica pelos
humanos criou neles uma inversão no que tange a tal sentimento, ou seja, o
sentimento passou a ser de que a totalidade da vida pertence a eles. Uma
inversão que leva-me a reproduzir nestas reflexões o seguinte trecho de A vida não é útil.
"O
planeta está nos dizendo: 'Vocês piraram, se esqueceram quem são
e agora estão perdidos achando que conquistaram algo com os brinquedos de vocês'. Pois a
verdade é que tudo que a técnica nos deu foram brinquedos. O mais sofisticado
que conseguimos é esse que bota gente no espaço; e também o mais caro. É um
brinquedo que só dá para uns trinta, quarenta caras brincarem. E, claro, tem
uns bilionários querendo brincar disso. O que me faz pensar que essa humanidade
imaginária, além de ter uma tremenda infantilidade espiritual, não consegue
tecer críticas sobre a sua história. História que, na maioria das vezes, é uma
vergonha. O que há para ser celebrado no fato de que podemos falar numa live
para 3 mil ou 4 mil pessoas por um aparelhinho que é produto de uma civilização
que está comendo a Terra para fazer brinquedos? Só que a Terra é um organismo
muito maior que nós, muito mais sábio e poderoso, e nós, seu brinquedo mais
inútil. A Terra pode nos desligar tirando nosso ar, não precisa nem fazer
barulho."
Negar a imprescindibilidade da ciência e da
tecnologia para o progresso é algo que ninguém, em sã consciência, fará. O problema é que há vários tipos de progresso, e ciência e tecnologia são
responsáveis por apenas um deles. Outro problema é que o fascínio pelo progresso
oriundo de um estupendo desenvolvimento tecnológico nos impede de perceber que há
uma hierarquia entre os vários tipos de progresso. Uma hierarquia que Alexis
Carrel definiu bem em uma das mais significativas afirmações que vi nesta vida: "A
civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas; mas, sim o do
homem."
E para terminar
esta postagem que focaliza uma cegueira provocada por fascínio, segue uma
comparação entre a elaboração de medicamentos (talvez um colírio) e a
utilização de tecnologia. Assim como na formulação de um fármaco é fundamental encontrar
a quantidade ideal do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) a ser usada, creio que também na utilização
de tecnologia seja fundamental encontrar a quantidade ideal a ser usada
por seres humanos.
"Ao participar do Lions
Innovation, evento do Cannes Lions – Festival Internacional de Criatividade
dedicado à tecnologia, a antropóloga digital Amber Case – eleita como uma das
mulheres mais influentes do setor pela revista 'Fast Company', fez a seguinte
afirmação: 'A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima
necessária'.".
O parágrafo acima foi extraído
de uma reportagem de Fernando Scheller publicada na edição de 22 de junho de
2016 do jornal O Estado de S. Paulo, intitulada "O
desafio da tecnologia é ser útil". Reportagem que originou uma
postagem homônima publicada no blog Lendoeopinando,
em 23 de agosto de 2016.
"Nada é veneno, tudo é
veneno: a diferença está na dose", já dizia Paracelso, há cinco séculos. O
fascínio pelo progresso equivocado é a dose de colírio, digo, de tecnologia que
a torna veneno, e que consequentemente nos faz cegos para o apocalipse.
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