"Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o
dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração."
(Vladimir Maiakovski [1893-1930], poeta, dramaturgo e teórico russo)
"O planeta está nos dizendo: 'Vocês piraram, se
esqueceram quem são e agora estão perdidos achando que conquistaram algo com os
brinquedos de vocês'. Pois a verdade é que tudo que a técnica nos deu foram
brinquedos."
Extraído de um imperdível livro do sábio pensador e líder
indígena Ailton Krenak intitulado A vida
não é útil, publicado em 2020, e reproduzido na postagem anterior, o
parágrafo acima faz-me lembrar de um belo texto intitulado O desmonte do eu, publicado na edição de JUL
/ AGO 2021 de Sophia, uma revista que focaliza Ciência, Religião
e Filosofia. O autor? Ernani Eustáquio de Oliveira, membro da Sociedade
Teosófica em Brasília, coronel da reserva da Aeronáutica e engenheiro mecânico com
mestrado em Gestão de Projetos Estratégicos e doutorado em Ciências Políticas.
O desmonte do eu
'Nossa mente
incorpora procedimentos e "verdades", que formam o conjunto que passamos a encarar como nosso verdadeiro eu.
Isso nos torna alienados de nós mesmos, de nossa verdadeira essência'
Jiddu Krishnamurti diz que somos todos indivíduos programados,
condicionados. Quando crianças, ao assumirmos a consciência, por volta dos sete
anos de idade, apresentam-nos um Deus a quem devemos adorar e render culto. Por
termos nascido no Brasil, dentro de uma cultura cristã, aprendemos a amar e a
adorar Jesus Cristo. Se tivéssemos nascido em algum país islâmico, adoraríamos
a Alá e cresceríamos nos ritos do Islamismo. Inculcam, em nossas mentes,
valores como família (pai, mãe, avós, tios, primos), a quem devemos prestigiar
e respeitar profundamente; pátria e nação, à qual devemos adorar e amar como
nosso torrão natal – mal sabemos que, neste culto egoísta de origem, está a
raiz de todas as guerras.
Nesse processo "educacional" está embutido o
esforço de nossa modelagem segundo o padrão aceitável pela sociedade. Se não respondermos
positivamente a esses padrões, corremos o risco de ser marginalizados. Desta
forma, nossa mente incorpora procedimentos e "verdades", que formam o
conjunto que passamos a encarar como nosso verdadeiro eu.
Esta não é a natureza original com que nascemos, mas uma
segunda natureza adquirida e modelada pela sociedade. Aí vem a pergunta: e o
que isso nos torna? Torna-nos alienados de nós mesmos, de nossa verdadeira
essência. Perdemos a nossa liberdade de ser. Passamos a ser autômatos
responsivos, em comportamento, a padrões implantados em nossa mente.
Prosseguimos a "farsa de ser", alimentando conflitos, medos e
frustrações.
Diplomados na "educação para a vitória" – pois
desde crianças ensinam-nos a colocar a vitória como objetivo, em todos os
nossos empreendimentos -, tornamo-nos competitivos, os membros ideais para o
sistema onde fomos educados e onde vivemos. Ora, se vencemos, que é o objetivo
da educação, tem que haver pelo menos um vencido, não é? Se tem que existir um
vencido, que não seja eu, mas que seja o outro, pois a palavra que passamos
mais a repelir em nossas concepções chama-se "fracasso". Alimentamos,
o tempo todo, o desejo animal em nós, e surpreendemo-nos, como sociedade
organizada, quando esse animal sai do controle e mostra a sua cara.
Segundo Rohit Mehta, a nossa mente livre transita
naturalmente por três estados (que são qualidades da matéria): Tamas, Rajas e Sattva (nomes em
sânscrito). Tamas é aquele estado
passivo e receptivo da mente, onde ela se coloca em posição de receber; Rajas é aquele ativo, dinâmico, onde ela
é enérgica e agente; e Sattva é
aquele estado de harmonia mental, onde a mente se realiza, se acalma.
O trânsito da mente por esses estados é um fluxo normal
de energia, que flui livremente ao sabor das impressões que os sentidos captam
do ambiente. Por força, entretanto, desses padrões existentes, que a educação
inculca na mente, surgem, no curso desse fluxo, vórtices de energia que
interferem na corrente normal. Esses vórtices são, segundo Metha, os Centros de
Reação da mente, que aparecem em função de uma figura que nasce nessa troca do
eu com o ambiente. Essa figura chama-se interpretador. O interpretador
desfigura a impressão natural, e passamos a perceber as coisas objetivas não
como elas são, mas como o interpretador quer que seja. É assim que nasce e
incorpora-se, ao eu, a natureza objetiva do ser. Essa é a natureza responsável
por todos os conflitos e desencontros humanos, por todos os medos, pelas dores,
angústias e sofrimentos.
Na realidade, em função dela, não "somos";
passamos a ser o que querem que sejamos.
Nascer trazendo sua dose de amor; crescer sendo programado,
condicionado; ter o solo do coração ressecado; esquecer quem é e ficar perdido
achando que conquistou algo com os brinquedos que a técnica nos ofereceu;
passar a ser o que querem que sejamos, eis a trajetória de vida da imensa
maioria dos integrantes da pretensa espécie inteligente do universo. Será que tal
trajetória deveria nos dar o que pensar?
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