"Convidado para
posar por alguém que lhe dava um pequeno saco de veludo com moedas de ouro, o
rapaz não sentiu a menor ganância. Vivia bem, estava satisfeito, não aspirava a
muitas coisas, mas a família induziu-o a posar por uma semana, e receber uma
verdadeira fortuna que não ganharia durante toda a vida; assim, ele deveria
aceitar. Ele terminou por concordar com a oferta."
Elaborado com trechos da história contada nas duas postagens mais recentes, o parágrafo anterior remete-me a uma citação mantida entre as ilustrações
no blog desde sua criação, e reproduzida no próximo parágrafo.
"Ser apenas você mesmo, em um mundo que se esforça ao máximo para torná-lo igual a todos os outros - significa enfrentar a mais árdua batalha que um ser humano pode enfrentar, sem jamais poder abandoná-la."
O autor da citação? O poeta, pintor, ensaísta e dramaturgo
norte-americano Edward Estlin Cummings (1894 – 1962), usualmente abreviado como
e. e. cummings, em minúsculas, como ele assinava e
publicava. Por que recorro a ela nesta
postagem? Porque ela explica o fracasso do rapaz ao enfrentar a batalha a que cummings se refere. "Sem
sentir a menor ganância diante da oferta de um pequeno saco de veludo com
moedas de ouro, induzido pela família, o rapaz tornou-se igual a todos os
outros, e terminou por concordar com a oferta."
Terminou por concordar com a oferta, tornou-se
igual a todos os outros, e acabou atingido por uma coisa que quase todos
sentem, embora, segundo a história, o rapaz não a sentisse no menor grau. Que coisa
é essa? A ganância.
Coincidentemente, no período em que elaborava
esta postagem, tive a oportunidade de ler na edição de MAR / ABR 2019 da revista SOPHIA, um texto intitulado A doença da ganância.
Coincidência que levou-me a definir qual será a ideia a ser espalhada pela postagem
que sucederá a que será publicada no Dia do Silêncio.
Feita essa chamada, retornemos às reflexões provocadas pela história contada
nas duas postagens
mais recentes. E para prosseguir com elas, porém evitando alongar demais
esta postagem, creio que o mais recomendável seja ir diretamente para o trecho
mais sinistro da história; para o trecho em que ficam evidentes algumas
consequências da ganância.
*************
Intrigado com a
mudança comportamental do modelo após dois dias de trabalho, Leonardo
inquiriu-o: - O que se passa com você? Não é mesmo desde o momento em que o
conheci! Seus olhos já não são tão traiçoeiros. O que acontece!?
- Não posso mais. Eu o liberto do compromisso. O senhor não me deve
nada. Não posso mais, responde o bandido.
E pedindo-lhe para que voltasse a ser o bandido cruel de antes,
Leonardo ouve a seguinte resposta: - Não posso! Não posso, porque à medida que
o senhor está desenhando-me, estou voltando ao passado, quando o senhor me
contratou para ser o rosto de Cristo.
Leonardo ficou estarrecido, e indagou-lhe: - Mas o que aconteceu com
você?
- Eu era puro naquela ocasião. (...) Logo que recebi a pequena fortuna,
fui cercado por pessoas desonestas, exploradoras, e por mulheres devassas que
me corromperam. Terminei na pior situação moral da comunidade milanesa.
"Então, desci ao fundo do poço para poder defender minhas últimas
moedas de ouro. Empenhei-me em lutas terríveis contra outros bandidos e matei
um, matei dois, matei uma mulher miserável que se homiziara no meu coração para
retirar-me a última gota de sangue, que eram as moedas que eu tinha; odiei-a e
assassinei-a a punhal."
"A partir daquele dia, minha sede de sangue, o meu desejo de
destruir o mundo, fizeram de mim o pior bandido da Itália. Mas agora,
recordando-me do que fui, lembrando-me de como era puro, como era jovem e
inocente, não posso posar mais..."
*************
A reação daquele bandido (que, segundo a história contada, era tido
como o mais execrando e traiçoeiro que a polícia havia enjaulado) ao recordar o que fora, faz-me lembrar algo que li em um livro intitulado Pena de Morte,
organizado por B. Calheiros Bomfim. De um texto intitulado Sobre a Pena de
Morte apresentado no livro como algo dito em uma conferência realizada na
Faculdade de Direito de Belo Horizonte, em maio de 1951, por Nélson Hungria
(1891 – 1969), um dos mais importantes penalistas brasileiros, extraí o
seguinte trecho:
"No Congresso Penal e Penitenciário Internacional de Praga, em 1930, dizia Kellerhals, com a sua autoridade de experimentado diretor de penitenciária: 'Devo declarar que jamais encontrei, no curso da minha experiência, um indivíduo verdadeiramente incorrigível. Nos casos em que não logrei a desejada influência sobre o prisioneiro, tive a impressão de que isso decorria de nossa própria culpa, pelo simples fato de não termos sabido encontrar o método adequado para conquistar o prisioneiro com êxito'. É um ilogismo a afirmação apriorística de incorrigibilidade. Merece inteira adesão este conceito de Quintiliano Saldaña: 'O delinquente não é uma pedra, mas um homem e, portanto, pode mudar, é suscetível de se modificar'. O mais perverso e obstinado malfeitor pode ser ressocializado, tal seja a habilidade do processo empregado para tal fim."
"Devo declarar que jamais encontrei, no curso da minha
experiência, um indivíduo verdadeiramente incorrigível.", disse Kellerhals,
com a sua autoridade de experimentado diretor de penitenciária, no Congresso Penal e Penitenciário
Internacional de Praga, há 89 anos. "O mais perverso e obstinado malfeitor
pode ser ressocializado, tal seja a habilidade do processo empregado para tal
fim.", disse Nélson Hungria, há 68 anos.
E passadas tantas décadas, demonstrando nada ter entendido de tais
declarações, em que acredita a imensa maioria dos integrantes desta insana
civilização (sic)? Em um estúpido lema que diz que bandido bom é bandido
morto.
E para entender a estupidez de tal lema, assistir um documentário
intitulado Armados talvez seja uma boa ideia. Com duração de 54 minutos,
ele pode ser assistido em https://www.youtube.com/watch?v=TZwxYze7RcQ. Foi desse documentário que extraí os dois próximos parágrafos
contendo um depoimento de Francisco Chao, inspetor de Polícia Civil,
professor de Direito Penal e Justiça Criminal, promovido por "bravura e
merecimento" ao longo de sua carreira de quase 17 anos como policial.
"A gente tem sim, no Rio de Janeiro, uma corrida armamentista, isso é evidente, porque a polícia também pecou. O marginal via o policial como alguém que ia prendê-lo ou alguém que ia extorqui-lo. Por uma série de fatores, a polícia muda a sua relação com a criminalidade do tráfico de drogas. Ela começa a partir pro confronto puro e simples. A imprensa mitificava isso porque a sociedade queria isso. A sociedade estava apavorada e ela queria simplesmente o extermínio sistemático da criminalidade. A marginalidade se torna mais violenta à medida que ela não vê na ação policial a expectativa da prisão, mas sim a da morte, do extermínio puro e simples."
"A marginalidade começa a adquirir fuzis fal, fuzis HK, alemães, e aí a polícia começa também, evidentemente, a arrecadar essas armas, a apreender essas armas e a disponibilizar essas armas via autorização judicial. E aí, a marginalidade passou para outro patamar. Ela começa a adquirir as granadas. Aí, a polícia passa a utilizar os carros blindados. Aí, a marginalidade, isso é fato público e notório, adquire minas terrestres. E já passam a confrontar, a tentar impedir a entrada da polícia a qualquer custo. Aí, num quarto momento, essa marginalidade vem pro asfalto."
"Esta história real, retrata a ingenuidade e a violência, as duas
faces da mesma moeda.", eis a frase que encerra a história contada nas
duas postagens mais recentes. Frase que enxergo como tendo sido elaborada
considerando os que cometem crimes.
"Esta época atual, retrata a estupidez e a violência, a mesma face
de uma das duas da mesma moeda.", eis a paráfrase que encerra estas
reflexões. Paráfrase que elaborei considerando os que concordam com o estúpido
lema que diz que bandido bom é bandido morto.
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