Após um intervalo de tempo entre postagens maior que o habitual
(para possibilitar-lhes refletir bastante sobre a mensagem
passada pelo antológico discurso proferido no filme O Grande Ditador,
coincidentemente lembrado por um e-mail que recebi nestes tempos de desesperança),
neste dia em que é comemorado o Dia do Médico, segue um relato de Allen
Richard Selzer (1928 - 2016), cirurgião e escritor americano, sobre um episódio
envolvendo Yeshi Dhondenn, (1927 - ....), médico tibetano, que de 1960 a 1980 foi médico
pessoal do Dalai Lama.
Extraído do livro Histórias da Alma, Histórias do Coração – Parábolas e
Narrativas do Caminho Espiritual nas Tradições e na Contemporaneidade, compiladas por Christina Feldman e Jack Kornfield, onde é
apresentado sem título, nesta postagem intitulei-o A ronda do médico do Dalai Lama. Em um livro extraordinário intitulado
A Conspiração Aquariana, de Marilyn
Ferguson (1938 – 2008), em um capítulo intitulado Curando-nos a nós mesmos é citado um trecho do referido relato.
A ronda do médico do Dalai Lama
No quadro de avisos do saguão de entrada do hospital onde trabalho foi
afixado um cartaz: "Yeshi Dhonden fará a ronda das seis da manhã no dia 10
de junho". Seguiam-se alguns detalhes e um esclarecimento: "Yeshi
Dhonden é médico particular do Dalai Lama".
Na manhã do dia 10 de junho, juntei-me a um grupo de médicos que se
reunira na pequena sala de conferências adjacente à enfermaria selecionada para
a ronda. O ar estava carregado com mal disfarçada dubiedade e desconfiança;
temor de sermos ludibriados, talvez. Precisamente às seis da manhã, Yeshi
Dhonden parece se materializar. É um homem baixo e gordo, porém gracioso, vestindo
uma túnica sem mangas de uma cor entre o açafrão e o castanho-avermelhado. Tem
a cabeça raspada e os únicos pelos visíveis são os cílios e as sobrancelhas ralas
sobre os olhos.
Ele se curva em saudação enquanto o jovem intérprete faz as
apresentações. Yeshi Dhonden, diz-nos ele, irá examinar uma paciente
selecionada por um membro da nossa equipe. O diagnóstico é tão desconhecido
para Yeshi Dhonden quanto para nós. O exame da paciente se fará em nossa
presença, após o qual voltaremos a nos reunir na sala de conferências onde
Yeshi Dhonden discutirá então o caso conosco. Somos informados também que nas
duas últimas horas Yeshi Dhonden purificou-se com banhos, jejum e orações. Eu,
tendo comido um farto café da manhã, feito apenas a mais acanhada das abluções
e não dado a menor atenção à minha alma, olho furtivamente para meus colegas.
De repente parecemos um bando sujo e desgrenhado.
A paciente já havia sido despertada e informada que seria examinada por
um médico estrangeiro. Fora-lhe também solicitada uma nova amostra de urina, de
modo que ao entrarmos em seu quarto a mulher não demonstra qualquer surpresa.
Há muito ela já assumira aquela mistura de aquiescência e resignação que marca
o semblante dos doentes crônicos. Esse seria apenas mais um de uma série infindável
de testes e exames. Yeshi Dhonden aproxima-se do leito. Nós médicos
permanecemos afastados, observando. Durante um longo tempo ele apenas olha para
a mulher, que está deitada de costas, sem privilegiar parte alguma do corpo com
o olhar, embora pareça fixá-lo num ponto acima do pescoço. Eu também a estudo. Nenhum
sinal físico ou sintoma evidente que nos dê uma pista da natureza da sua enfermidade.
Por fim, Yeshi Dhonden toma-lhe a mão, segura-a entre as suas e,
inclinando-se sobre o leito, chega a ficar meio agachado, a cabeça recolhida no
colarinho da túnica. Seus olhos estão cerrados enquanto toma o pulso da
paciente. Num instante encontra o lugar certo e durante a meia-hora seguinte
permanece assim, suspenso sobre a paciente como um exótico pássaro dourado de
asas arqueadas, mantendo o pulso da mulher sob seus dedos, aconchegando a mão
dela nas suas. Todo o poder do homem parece ter sido canalizado para essa
finalidade. É a pulsação elevada à condição de ritual. Observando-o do pé da
cama, onde estou, é como se ele e a paciente houvessem adentrado um local
especial de isolamento, de afastamento, sobre o qual paira uma certa vacuidade
e ao qual nenhuma violação é possível.
Pouco depois a mulher volta a repousar sobre o travesseiro. De tempos
em tempos ergue a cabeça para examinar a estranha figura à sua frente, e volta
a reclinar-se. Não consigo ver as mãos dos dois, unidas numa correspondência
exclusiva, íntima, as pontas dos dedos dele captando a voz do corpo enfermo
através de ritmo e palpitações que se revelam no pulso. Começo a sentir uma
certa inveja; não dele, não de Yeshi Dhonden com o seu dom de beleza e
santidade, mas dela. Eu gostaria de ser segurado assim, tocado assim, recebido
como ela está sendo. E descubro então que eu, que já tomei mais de cem mil
pulsos, nunca senti nenhum.
Yeshi Dhonden se ergue, por fim, coloca gentilmente a mão da mulher
sobre o leito, e recua um passo. O intérprete traz uma pequena tigela de
madeira e duas varetinhas. Yeshi Dhonden despeja um pouco da amostra de urina
na tigela e começa a bater o líquido com as duas varetas. Faz isso por vários
minutos, até formar espuma. Inclina-se então sobre a tigela e inala o odor três
vezes. Deposita em seguida o recipiente no chão e prepara-se para partir.
Durante todo o tempo não proferiu uma única palavra.
Quando Yeshi Dhonden chega à porta, a mulher ergue a cabeça e chama-o
com uma voz ao mesmo tempo urgente e serena:
- Obrigada, doutor – diz, tocando com a mão o ponto onde ele segurara o
seu pulso, como que tentando recapturar algo que estivera ali com ela.
Yeshi Dhonden volta-se por um instante para olhá-la e sai do quarto
para o corredor. As rondas estão terminando.
Estamos agora mais uma vez sentados na sala de conferências. Yeshi
Dhonden fala então pela primeira vez, em doces sons tibetanos que eu jamais
ouvira antes. Mal começa e o jovem intérprete já está traduzindo, uma voz
seguindo a outra em uma fuga bilíngue. É como o canto dos monges. Yeshi Dhonden
fala de ventos que atravessam o corpo da mulher, de correntes que batem de
encontro a barreiras, formando remoinhos. Esses vórtices estão no sangue dela,
diz. Os últimos excessos de um coração imperfeito. Entre uma e outra câmara
desse coração, muito antes de ela nascer, um vento soprara e abrira um grande
portal que nunca deveria se abrir. Por essa abertura avançaram todas as águas
de um rio, como um riacho de montanha se avoluma na primavera, esfacelando e
arrastando terras, engolfando a sua respiração. Assim Yeshi Dhonden se
expressou, voltando em seguida a guardar silêncio.
- Será que poderíamos agora ouvir o seu diagnóstico? – pergunta um dos
professores.
O verdadeiro diretor dessa ronda, o homem que sabe, responde:
- Lesão cardíaca congênita – diz. – Má formação do septo
interventricular, com resultante insuficiência cardíaca.
Um portal no coração, penso eu. Um portal que não deve ser aberto e
pelo qual avançam todas as águas que engolfam a respiração. Pois então! Eis
aqui um médico que ouve os sons do corpo aos quais o resto de nós somos surdos.
Ele é mais do que um médico. Yeshi Dhonden é um sacerdote.
Eu sei... Eu sei... A medicina dos deuses é conhecimento puro, é
potencial inconspurcado de cura. Já a medicina dos homens tropeça, e
frequentemente fere; os pacientes, como o próprio médico, têm que morrer. Porém,
vez por outra acontece que, ao fazer minhas rondas, ouço a voz de Yeshi
Dhonden, como uma antiga prece budista, cujo significado foi há muito esquecido
e da qual resta apenas a musicalidade. Uma enorme alegria toma então conta de
mim, e eu me sinto tocado por algo divino.
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"Eis aqui um médico que ouve os sons do corpo aos quais o resto de
nós somos surdos. Ele é mais do que um médico. Yeshi Dhonden é um
sacerdote.", afirma Allen Richard
Selzer, cirurgião e escritor americano, agraciado
com uma oportunidade de acompanhar uma ronda daquele que em uma matéria que
encontrei em "www.freedoctorhelpline.com/doctor-god-dr-yeshi-dhonden/", é denominado O Doutor de Deus. Uma matéria, publicada há um ano, na qual é dito que "Yeshi
Dhonden ainda está vivo e aos 90 anos trata 40
pacientes afortunados todos os dias na cidade isolada de Mcleodganj, em
Himanchal Pradesh.
Será que, nesta civilização (sic) em que a interação médico-paciente, cada
vez mais, é intermediada, exclusivamente, por exames mecanizados, neste dia em
que é comemorado o Dia do Médico, faz sentido espalhar o relato desse tocante
episódio protagonizado pelo Doutor de Deus? O que vocês acham?
E ao falar em
civilização, exames mecanizados e Dia do
Médico, imediatamente, me vem à mente uma das afirmações mais marcantes que
já li. "A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas;
mas, sim o do homem." De quem é tal afirmação? De Alexis Carrel (1873-1944), cirurgião, fisiologista, biólogo e sociólogo
francês que, em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia.
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