quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A ronda do médico do Dalai Lama

Após um intervalo de tempo entre postagens maior que o habitual (para possibilitar-lhes refletir bastante sobre a mensagem passada pelo antológico discurso proferido no filme O Grande Ditador, coincidentemente lembrado por um e-mail que recebi nestes tempos de desesperança), neste dia em que é comemorado o Dia do Médico, segue um relato de Allen Richard Selzer (1928 - 2016), cirurgião e escritor americano, sobre um episódio envolvendo Yeshi Dhondenn, (1927 - ....), médico tibetano, que de 1960 a 1980 foi médico pessoal do Dalai Lama.
Extraído do livro Histórias da Alma, Histórias do Coração – Parábolas e Narrativas do Caminho Espiritual nas Tradições e na Contemporaneidade, compiladas por Christina Feldman e Jack Kornfield, onde é apresentado sem título, nesta postagem intitulei-o A ronda do médico do Dalai Lama. Em um livro extraordinário intitulado A Conspiração Aquariana, de Marilyn Ferguson (1938 – 2008), em um capítulo intitulado Curando-nos a nós mesmos é citado um trecho do referido relato.
A ronda do médico do Dalai Lama
No quadro de avisos do saguão de entrada do hospital onde trabalho foi afixado um cartaz: "Yeshi Dhonden fará a ronda das seis da manhã no dia 10 de junho". Seguiam-se alguns detalhes e um esclarecimento: "Yeshi Dhonden é médico particular do Dalai Lama".
Na manhã do dia 10 de junho, juntei-me a um grupo de médicos que se reunira na pequena sala de conferências adjacente à enfermaria selecionada para a ronda. O ar estava carregado com mal disfarçada dubiedade e desconfiança; temor de sermos ludibriados, talvez. Precisamente às seis da manhã, Yeshi Dhonden parece se materializar. É um homem baixo e gordo, porém gracioso, vestindo uma túnica sem mangas de uma cor entre o açafrão e o castanho-avermelhado. Tem a cabeça raspada e os únicos pelos visíveis são os cílios e as sobrancelhas ralas sobre os olhos.
Ele se curva em saudação enquanto o jovem intérprete faz as apresentações. Yeshi Dhonden, diz-nos ele, irá examinar uma paciente selecionada por um membro da nossa equipe. O diagnóstico é tão desconhecido para Yeshi Dhonden quanto para nós. O exame da paciente se fará em nossa presença, após o qual voltaremos a nos reunir na sala de conferências onde Yeshi Dhonden discutirá então o caso conosco. Somos informados também que nas duas últimas horas Yeshi Dhonden purificou-se com banhos, jejum e orações. Eu, tendo comido um farto café da manhã, feito apenas a mais acanhada das abluções e não dado a menor atenção à minha alma, olho furtivamente para meus colegas. De repente parecemos um bando sujo e desgrenhado.
A paciente já havia sido despertada e informada que seria examinada por um médico estrangeiro. Fora-lhe também solicitada uma nova amostra de urina, de modo que ao entrarmos em seu quarto a mulher não demonstra qualquer surpresa. Há muito ela já assumira aquela mistura de aquiescência e resignação que marca o semblante dos doentes crônicos. Esse seria apenas mais um de uma série infindável de testes e exames. Yeshi Dhonden aproxima-se do leito. Nós médicos permanecemos afastados, observando. Durante um longo tempo ele apenas olha para a mulher, que está deitada de costas, sem privilegiar parte alguma do corpo com o olhar, embora pareça fixá-lo num ponto acima do pescoço. Eu também a estudo. Nenhum sinal físico ou sintoma evidente que nos dê uma pista da natureza da sua enfermidade.
Por fim, Yeshi Dhonden toma-lhe a mão, segura-a entre as suas e, inclinando-se sobre o leito, chega a ficar meio agachado, a cabeça recolhida no colarinho da túnica. Seus olhos estão cerrados enquanto toma o pulso da paciente. Num instante encontra o lugar certo e durante a meia-hora seguinte permanece assim, suspenso sobre a paciente como um exótico pássaro dourado de asas arqueadas, mantendo o pulso da mulher sob seus dedos, aconchegando a mão dela nas suas. Todo o poder do homem parece ter sido canalizado para essa finalidade. É a pulsação elevada à condição de ritual. Observando-o do pé da cama, onde estou, é como se ele e a paciente houvessem adentrado um local especial de isolamento, de afastamento, sobre o qual paira uma certa vacuidade e ao qual nenhuma violação é possível.
Pouco depois a mulher volta a repousar sobre o travesseiro. De tempos em tempos ergue a cabeça para examinar a estranha figura à sua frente, e volta a reclinar-se. Não consigo ver as mãos dos dois, unidas numa correspondência exclusiva, íntima, as pontas dos dedos dele captando a voz do corpo enfermo através de ritmo e palpitações que se revelam no pulso. Começo a sentir uma certa inveja; não dele, não de Yeshi Dhonden com o seu dom de beleza e santidade, mas dela. Eu gostaria de ser segurado assim, tocado assim, recebido como ela está sendo. E descubro então que eu, que já tomei mais de cem mil pulsos, nunca senti nenhum.
Yeshi Dhonden se ergue, por fim, coloca gentilmente a mão da mulher sobre o leito, e recua um passo. O intérprete traz uma pequena tigela de madeira e duas varetinhas. Yeshi Dhonden despeja um pouco da amostra de urina na tigela e começa a bater o líquido com as duas varetas. Faz isso por vários minutos, até formar espuma. Inclina-se então sobre a tigela e inala o odor três vezes. Deposita em seguida o recipiente no chão e prepara-se para partir. Durante todo o tempo não proferiu uma única palavra.
Quando Yeshi Dhonden chega à porta, a mulher ergue a cabeça e chama-o com uma voz ao mesmo tempo urgente e serena:
- Obrigada, doutor – diz, tocando com a mão o ponto onde ele segurara o seu pulso, como que tentando recapturar algo que estivera ali com ela.
Yeshi Dhonden volta-se por um instante para olhá-la e sai do quarto para o corredor. As rondas estão terminando.
Estamos agora mais uma vez sentados na sala de conferências. Yeshi Dhonden fala então pela primeira vez, em doces sons tibetanos que eu jamais ouvira antes. Mal começa e o jovem intérprete já está traduzindo, uma voz seguindo a outra em uma fuga bilíngue. É como o canto dos monges. Yeshi Dhonden fala de ventos que atravessam o corpo da mulher, de correntes que batem de encontro a barreiras, formando remoinhos. Esses vórtices estão no sangue dela, diz. Os últimos excessos de um coração imperfeito. Entre uma e outra câmara desse coração, muito antes de ela nascer, um vento soprara e abrira um grande portal que nunca deveria se abrir. Por essa abertura avançaram todas as águas de um rio, como um riacho de montanha se avoluma na primavera, esfacelando e arrastando terras, engolfando a sua respiração. Assim Yeshi Dhonden se expressou, voltando em seguida a guardar silêncio.
- Será que poderíamos agora ouvir o seu diagnóstico? – pergunta um dos professores.
O verdadeiro diretor dessa ronda, o homem que sabe, responde:
- Lesão cardíaca congênita – diz. – Má formação do septo interventricular, com resultante insuficiência cardíaca.
Um portal no coração, penso eu. Um portal que não deve ser aberto e pelo qual avançam todas as águas que engolfam a respiração. Pois então! Eis aqui um médico que ouve os sons do corpo aos quais o resto de nós somos surdos. Ele é mais do que um médico. Yeshi Dhonden é um sacerdote.
Eu sei... Eu sei... A medicina dos deuses é conhecimento puro, é potencial inconspurcado de cura. Já a medicina dos homens tropeça, e frequentemente fere; os pacientes, como o próprio médico, têm que morrer. Porém, vez por outra acontece que, ao fazer minhas rondas, ouço a voz de Yeshi Dhonden, como uma antiga prece budista, cujo significado foi há muito esquecido e da qual resta apenas a musicalidade. Uma enorme alegria toma então conta de mim, e eu me sinto tocado por algo divino.
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"Eis aqui um médico que ouve os sons do corpo aos quais o resto de nós somos surdos. Ele é mais do que um médico. Yeshi Dhonden é um sacerdote.", afirma Allen Richard Selzer, cirurgião e escritor americano, agraciado com uma oportunidade de acompanhar uma ronda daquele que em uma matéria que encontrei em "www.freedoctorhelpline.com/doctor-god-dr-yeshi-dhonden/", é denominado O Doutor de Deus. Uma matéria, publicada há um ano, na qual é dito que "Yeshi Dhonden ainda está vivo e aos 90 anos trata 40 pacientes afortunados todos os dias na cidade isolada de Mcleodganj, em Himanchal Pradesh.
Será que, nesta civilização (sic) em que a interação médico-paciente, cada vez mais, é intermediada, exclusivamente, por exames mecanizados, neste dia em que é comemorado o Dia do Médico, faz sentido espalhar o relato desse tocante episódio protagonizado pelo Doutor de Deus? O que vocês acham?
E ao falar em civilização, exames mecanizados e Dia do Médico, imediatamente, me vem à mente uma das afirmações mais marcantes que já li. "A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas; mas, sim o do homem." De quem é tal afirmação? De Alexis Carrel (1873-1944), cirurgião, fisiologista, biólogo e sociólogo francês que, em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia.

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