sexta-feira, 20 de julho de 2018

Uma sólida amizade

Neste dia em que é comemorado o Dia do Amigo, a ideia espalhada por este blog é trazida por uma antiga história atribuída ao filósofo, político e orador romano Cícero (106 a.C. - 43 a.C.). Uma história extraída de um livro intitulado Livro das Virtudes, de William J. Bennett, de um capítulo que se refere à Amizade, onde, sob o título Damon e Pítias, ela aparece como um dos exemplos usados para ilustrar tal virtude.
Damon e Pítias
Essa história se passa em Siracusa, cidade-estado da Sicília, no século IV a.C.. O orador romano Cícero relata que Damon e Pítias (também chamado Fíntias) eram seguidores do filósofo Pitágoras.
Damon e Pítias eram grandes amigos desde a infância. Confiavam um no outro como se fossem irmãos e ambos sabiam, no fundo do coração, que nada havia que não fizessem um pelo outro. Chegou o dia em que precisaram demonstrar a profundidade dessa devoção. Aconteceu assim:
Dionísio, rei de Siracusa, aborreceu-se ao tomar conhecimento dos discursos que Pítias vinha fazendo. O jovem pensador andava dizendo ao público que nenhum homem deveria ter poder ilimitado sobre outro e que os tiranos absolutos eram reis injustos. Num assomo de cólera, Dionísio mandou chamar Pítias e seu amigo.
- Quem você pensa que é, espalhando a inquietação entre as pessoas? - exortou.
- Divulgo apenas a verdade - respondeu Pítias. - Não pode haver nada errado nisso.
- E sua verdade sustenta que os reis têm poder demais e que suas leis não são boas para os súditos?
- Se um rei apossou-se do poder sem a permissão do povo, sim, é o que falo.
- Isso é traição! - gritou Dionísio - Você está conspirando para me depor. Retire o que disse ou arque com as consequências.
- Não retiro nada - respondeu Pítias.
- Então você morrerá. Tem algum último desejo?
- Sim. Permita-me ir em casa apenas para dizer adeus à minha mulher e meus filhos e deixar em ordem os assuntos domésticos.
- Vejo que não somente me considera injusto, mas também estúpido - Dionísio riu, sarcástico. - Se sair de Siracusa, tenho certeza de que nunca mais o verei.
- Dou-lhe uma garantia - disse Pítias.
- Que garantia nesse mundo você me poderia dar para fazer-me crer que algum dia voltará? - exclamou Dionísio.
Nesse momento Damon, que permanecia calado ao lado do amigo, deu um passo à frente.
- Eu serei a garantia - disse. - Mantenha-me em Siracusa como seu prisioneiro até o retorno de Pítias. Nossa amizade é bem conhecida. Pode ter certeza de que Pítias voltará se eu ficar retido aqui.
Dionísio examinou em silêncio os dois amigos.
- Muito bem - disse por fim. - Mas se está disposto a tomar o lugar do seu amigo, deve se dispor a aceitar a mesma sentença, se ele quebrar a promessa. Se Pítias não voltar a Siracusa, você morrerá em lugar dele.
- Ele cumprirá a palavra - respondeu Damon. - Não tenho a menor dúvida.
Pítias recebeu permissão para partir e Damon foi atirado na prisão. Muitos dias se passaram e, como Pítias não voltava, Dionísio se deixou vencer pela curiosidade e foi à prisão ver se Damon já estava arrependido de ter feito o acordo.
- Seu tempo está chegando ao fim - o rei de Siracusa escarneceu. - Será inútil implorar misericórdia. Você foi um tolo ao confiar na promessa do seu amigo. Pensou realmente que ele iria sacrificar a vida por você, ou por qualquer outra pessoa?
- É um mero atraso - Damon rebateu com firmeza. - Os ventos não permitiram que navegasse, ou talvez tenha encontrado um imprevisto na estrada. Mas se for humanamente possível chegará a tempo. Tenho tanta certeza da sua virtude como da minha própria existência.
Dionísio admirou-se da confiança do prisioneiro.
- Logo veremos - disse ele, deixando Damon sozinho na cela.
Chegou o dia fatal. Damon foi retirado da prisão e levado à presença do algoz. Dionísio saudou-o com um sorriso presunçoso.
- Parece que seu amigo não apareceu - ele riu. - Que acha dele agora?
- É meu amigo - Damon respondeu. - Confio nele.
Nem terminara de falar e portas se abriram, deixando entrar Pítias cambaleante. Estava pálido, ferido e a exaustão tirava-lhe o fôlego. Atirou-se aos braços do amigo.
- Você está vivo, graças aos deuses - soluçou. - Os fados pareciam conspirar contra nós. Meu navio naufragou numa tempestade, bandidos me atacaram na estrada. Mas recusei-me a perder a esperança e finalmente consegui chegar a tempo. Estou pronto a cumprir minha sentença de morte.
Dionísio ouviu com espanto essas palavras. Abriam-se seus olhos e seu coração. Era-lhe impossível resistir ao poder de tal lealdade.
- A sentença está revogada - declarou ele. - Jamais acreditei que pudessem existir tamanha fé e lealdade na amizade. Vocês mostraram como eu estava errado e é justo que os recompense com a liberdade. Em troca, porém, peço um grande auxílio.
- Que auxílio? - perguntaram os amigos.
- Ensinem-me a ter parte em tão sólida amizade.
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"Ensinem-me a ter parte em tão sólida amizade.", pede o rei, espantado diante de algo que "jamais acreditara que pudesse existir": uma amizade como a de Damon e Pítias. Espanto que o leva a reconhecer que estava errado e a recompensar com a liberdade alguém que ele condenara à morte. Espanto que o leva a revogar a sentença de morte por ele decretada, porque "era-lhe impossível resistir ao poder da lealdade daquela amizade".
Que poder tem uma sólida amizade, hein! Que mal causa a este mundo a escassez de sólidas amizades! Principalmente nestes tempos líquidos que liquefazem as coisas mais importantes da vida. Tempos de líquidas amizades iniciadas por uma simples "adição" e encerradas por uma simples "subtração", digo, por um simples "bloqueio".
Que diferença entre a amizade de Damon e Pítias e o tipo de amizade predominante nesta civilização (sic), hein! Diferença que leva-me a fazer-lhes duas indagações. Olhando para seus amigos, vocês conseguem enxergar, em algum deles, alguém que assemelhe-se a Damon ou a Pítias? Olhando para si mesmos, vocês conseguem enxergar-se como semelhantes a um dos dois? Difícil, não? Ou seja, vinte e cinco séculos depois, lamentavelmente, a maioria dos integrantes desta pretensa espécie inteligente do universo ainda não é capaz de desenvolver amizades sólidas, não é mesmo?
Sendo assim, que tal destinar parte deste Dia do Amigo para refletir sobre a relação entre os dois seguintes desenvolvimentos: o de sólidas amizades e o de algo que faça jus ao termo civilização. Afinal, como disse Alexis Carrel, "A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas, mas, sim o do homem.". E, após tais reflexões, que tal responder a seguinte indagação. Será que é possível imaginar quão melhor seria este mundo se, em vez de escassez de sólidas amizades, o que nele houvesse fosse abundância de sólidas amizades?

2 comentários:

Unknown disse...

Que ótima proposta de reflexão no dia do amigo!
Estou refletindo... De quem eu seria Damon ou Pitias? Pois se não consigo me ver como eles para alguém, não tenho como esperar que o façam por mim!

Guedes disse...

Que ótimo comentário sobre tal proposta!
Ele toca em um dos mais equivocados anseios da imensa maioria dos integrantes da pretensa espécie inteligente do universo. Esperar que alguém faça por ele (o integrante) algo que ele não se dispõe a fazer por alguém.