quarta-feira, 25 de julho de 2018

Radicais livres

Para qualquer coisa que seja criada - em termos de uso - existe sempre a ocorrência de vários tipos, dentre eles os citados a seguir. O uso imaginado por quem a criou e os que lhes dão os que a ela tiverem acesso. Os usos que são benéficos para a humanidade e os que lhe são maléficos. Sendo assim, para qualquer coisa que seja criada, é recomendável observar os usos que lhe são dados e fazer as devidas correções. Em conformidade com essa ideia, segue parte de uma excelente reportagem publicada na edição de 07 de julho de 2018 do jornal O Globo. Assinada por Rosane Serro e intitulada Radicais livres, ela apresenta a reação de alguns "precursores da internet" diante do que se tornou a estonteante era digital.
Radicais livres
Precursores da internet se transformam em militantes anti-digital. Pensadores que viam o mundo virtual como a nova fronteira da Humanidade agora pregam a desconexão em massa e a volta ao analógico. Até o criador da World Wide Web se diz arrependido. Saiba o que fez os 'digerati' mudarem radicalmente de ideia em três décadas e veja como eles vivem em um planeta hiperconectado.
Quando a internet comercial ainda engatinhava, um grupo de pensadores – cientistas, filósofos, sociólogos, profissionais liberais – se dedicou a imaginar e construir o ciberespaço, a então nova fronteira da Humanidade. Ele tomaria forma com a hiperconectividade dos indivíduos em rede, que poderiam, se quisessem, adotar múltiplas identidades naquele ambiente artificial. Só que hoje, pouco mais de 30 anos depois, os protagonistas desse círculo estão fazendo um apelo desesperado para que a sociedade se desconecte, sob pena de extinguir o que nos resta de humano.
O cenário retratado pelos digerati é quase devastador. A alcunha vem de literati, "homens letrados" em latim, termo adaptado, com uma certa verve, para a era digital. E a narrativa comum é a virada da internet ao avesso: de um imenso território de liberdade e experimentação criativa, ela teria se transformado num loteamento de espaços fechados, simbolizados pela onipresença das redes sociais. Um espaço em que usuários têm dados espionados, ações monitoradas e vontades manipuladas. Mais: esses agrupamentos que se vendem como locais de convivência abertos e gratuitos, portanto próximos do que imaginaram originalmente os digerati, hoje cobram caro. Quase todos os frequentadores são obrigados a ver o que é anunciado ali.
Cientista, compositor e escritor, Jaron Lanier, de 58 anos, foi o criador do conceito de Realidade Virtual. Fundador da primeira empresa a comercializar essa solução em escala industrial, o nova-iorquino é um dos principais articuladores desse movimento. Lanier tem levado seus dreadlocks longuíssimos aos quatro cantos do mundo em uma campanha de alerta contra o que chama de "os impérios de modificação de comportamento", como classificou em sua palestra no TED Talks, em maio. Ele não tem Twitter, Reddit ou Facebook e acaba de lançar o chamado às armas "Ten arguments for deleting your social media accounts right now" ("Dez argumentos para deletar agora sua conta nas redes sociais", em tradução livre).
O MECANISMO DOS LIKES
Lanier alega que nas redes sociais o cidadão perde seu livre arbítrio e se submete ao mecanismo viciante dos likes: "Eles alimentam esses sentimentos, e você fica preso num loop", diz.
A discussão é tão precedente que o criador da World Wide Web, o físico inglês Tim Berners-Lee, 63, afirmou, na edição deste mês da revista "Vanity Fair", que está "devastado" com os rumos de sua invenção. Ele decidiu desenvolver um antídoto: trabalha no momento em uma plataforma para redescentralizar a internet, para devolver aos usuários o poder e a autonomia sobre os dados que desejam acessar.
- Quem quer assegurar que a internet sirva de fato à Humanidade está hoje preocupado com o que vê no mundo digital – diz.
Especialista em estudos de ciência e tecnologia, Sherry Turkle, 70, vai além. E recomenda o desligamento de celulares e redes sociais. Professora do Massachusetts Institute of Technology, ela acompanhou a mudança de comportamento dos usuários online. E estudou as múltiplas personas que habitavam os mundos artificiais até a egotrip e alienação que comprometem o convívio na sociedade real. Turkle é autora do primeiro livro sobre a formação da identidade no ambiente virtual, "Life on the screen" ("Vida na tela", em tradução livre, de 1995). Em abril, ela publicou um artigo analisando como o crescente repúdio ao Facebook não nos impedirá de seguir ativos na rede social. O motivo? "Ele nos permite ter uma versão melhor de nós mesmos".
Cientista da computação, escritor e ativista do Software Livre, o americano Richard Stallman, 65, discorda da proposta de desconexão total. Com uma forte ressalva. O uso que ele faz é bem peculiar. Stallman não tem celular, não entra em redes sociais, e aboliu aplicativos e programas que utilizam software proprietário. Argumenta que eles são desenhados pelas corporações justamente para manipular e controlar dados dos usuários.
- As empresas que desenvolvem esses programas têm controle total sobre o que as pessoas fazem. Se quiserem, elas podem espionar usuários, restringi-los ou manipulá-los. Estamos indefesos, impotentes perante a vontade das corporações – afirma.
Todas as mensagens que Stallman envia de seu correio eletrônico chegam com uma declaração de defesa da Constituição dos EUA, num recado a "eventuais agentes federias americanos que estejam lendo". Ele fez a reportagem assumir por escrito que leria 13 artigos sobre software livre e se negou a conversar por Skype ou WhatsApp.
O cientista conta ainda que disse "não, obrigado" ao aprender que todo smartphone, sem exceção, permite às redes telefônicas seguir seus movimentos. E que, segundo ele, quase todo aparelho pode ser convertido num dispositivo de escuta.
- Não foi difícil dizer não, já que a alternativa era entregar minha liberdade –argumenta.
Procurados pelo GLOBO, Facebook e Twitter não se pronunciaram. O Google informou em nota que anunciou em maio novos recursos com o objetivo de ajudar os usuários a recorrer à tecnologia "de forma mais criteriosa, para desconectar quando necessário e criar hábitos saudáveis em suas famílias."
Sérgio Branco, diretor e fundador do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, voltado para a promoção de práticas de regulação na área, concorda que as pessoas ainda não se conscientizaram do perigo, especialmente, porque, ele diz, "vive-se a ilusão de que tudo é gratuito".
- Jamais será um ato puramente inocente fornecer dados em troca de conteúdo, porque não temos controle sobre o que as empresas farão com eles – alerta o advogado ao citar um caso exibido pelo documentário "As vítimas do Facebook" (lançado pelos diretores canadenses Geoff D’Eon e Jay Dahl em 2011).
- Uma mulher diagnosticada com depressão severa recebeu como indicação médica sair de férias. Levou a mãe a um cruzeiro no Caribe e postou fotos no Facebook. Seu plano de saúde, que monitorava os dados, viu a foto e cancelou o serviço. A alegação? Quem está em depressão profunda não viaja para o Caribe de férias e muito menos celebra a alegria no universo digital.
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A reportagem de Rosane Serro dá o que pensar, hein! Porém, como é dito no primeiro parágrafo desta postagem, o texto por ela espalhado é apenas uma parte da reportagem. Sendo assim, fica para a próxima o espalhamento de mais uma parte imperdível da excelente reportagem.

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