segunda-feira, 3 de maio de 2021

Reflexões provocadas por "Uma ética da rebeldia para evitar as catástrofes"

  "Os monstros existem, mas são muito pouco numerosos para ser realmente perigosos; mais perigosos são os homens comuns, os funcionários dispostos a acreditar e obedecer sem discutir.
  (Primo Levi)
"Quando o comandante Trapp toma conhecimento das ordens, fica atônito. Mas como 'bom oficial', aceita sua missão, reúne todos seus homens (algumas centenas) e lhes dá a oportunidade de escolher. Depois de expor, com voz trêmula, o conteúdo da missão, pede aos que a recusassem para dar um passo à frente, indicando que não sofreriam sanções (...) Só uma pequena dezena se destaca do grupo para manifestar recusa.". Eis um trecho tomado emprestado do excelente texto de Amanda Mont'Alvão Veloso.
"Só uma pequena dezena, entre algumas centenas de homens, se destaca do grupo para manifestar recusa às ordens que deixaram atônito o 'bom oficial' que as repassava.". Ou seja, eis um exemplo que demonstra a veracidade da afirmação que epigrafa esta postagem. Será que tal exemplo serve para explicar o deplorável subdesenvolvimento humano e social vigente neste planeta? Subdesenvolvimento que, no meu entender, pode ser explicado pelo próximo parágrafo, também tomado emprestado do excelente texto de Amanda Mont'Alvão Veloso.
"Frente a injustiças sociais, desigualdades de fortuna, degradação progressiva do meio ambiente e à desqualificação do trabalho em nome da criação de riquezas pela dívida e pela especulação, Gros questiona, movido pelo assombro: por que as pessoas não se revoltam? 'Por que nos comportamos como espectadores do desastre?' Após determinado percurso do livro, descobrimos que, mais que espectadores, somos agentes do desastre, protegidos pelo véu da 'desresponsabilização'. O que nos une na reprodução e manutenção destas mazelas, lamentavelmente, é a obediência, argumenta Gros."
"Por que nos comportamos como espectadores do desastre?" - questiona Gros, para mais adiante argumentar que mais que espectadores, somos agentes do desastre, protegidos pelo véu da 'desresponsabilização', e que o que nos une na reprodução e manutenção destas mazelas, lamentavelmente, é a obediência.
"O problema não é a desobediência, o problema é a obediência", eis a provocação de Howard Zinn que Frédéric Gros diz ter tomado emprestada para citá-la em seu livro Desobedecer, publicado pela Ubu Editora, em 2018 e do qual tomei emprestada para reproduzi-la no parágrafo a seguir.
"A desobediência civil não é nosso problema. Nosso problema é a obediência civil. Nosso problema são as pessoas que obedecem aos ditames impostos pelos dirigentes de seus governos e que, portanto, apoiaram guerras. Milhões de pessoas foram mortas por causa dessa obediência. Nosso problema é a obediência das pessoas quando a pobreza, a fome, a estupidez, a guerra e a crueldade assolam o mundo. Nosso problema é que as pessoas sejam obedientes enquanto as prisões estão cheias de ladrõezinhos e que os grandes bandidos estão no comando do país. Esse é o nosso problema", excerto de um discurso pronunciado em 1970, por ocasião de um debate sobre a desobediência civil, republicado em Violence: The Crisis of American Confidence (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1972).
E de empréstimo em empréstimo, seguem mais três parágrafos emprestados do texto de Amanda Mont'Alvão Veloso.
Gros investiga os diferentes arranjos de obediência na coletividade e os afetos envolvidos na construção desse sempre assimétrico vínculo. Parece conversar com a afirmação feita por Freud em 1921, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, de que "um grupo é um rebanho obediente que nunca poderia viver sem um senhor. Possui tal anseio de obediência que se submete instintivamente a qualquer um que indique a si próprio como chefe.". Basta pensarmos nas relações de trabalho, nas exclusões cotidianas, nas operações de guerra e em outros processos de desumanização: as amarras da obediência são capazes de patrocinar horrores em maior ou menor escala, desde demissões evitadas ao custo de empregos fragilizados e constantemente ameaçados. (...) Dentre os ingredientes assíduos nesta perversa equação da obediência estão a omissão e o descompromissado "estava apenas seguindo ordens".
Este último foi o argumento de Adolf Eichmann em 1961 para justificar sua participação no transporte de centenas de milhares de judeus para campos de extermínio. (...) "Estando atado por meu juramento de lealdade, eu devia em meu setor ocupar-me da questão da organização dos transportes." Quanta humanidade seria poupada se ele tivesse escolhido desobedecer?
"Pistas dadas, a ética é o grande pilar do filósofo, que aspira a construir uma estilística da desobediência a partir de uma estilística da obediência com a diferenciação de submissão, obediência, consentimento e conformismo. Gros está interessado em despertar a tensão ética que deve existir no íntimo de cada um – o "si" indelegável que tem capacidade de pensar e modificar cenários. Mas é preciso que esse si político seja sustentado pelo coletivo, em uma ação 'vislumbradora' de futuro. Propõe, portanto, desobedecer juntos, em uma experiência de contágio articulada a partir da constatação e vivência do intolerável.
"Desobedecer juntos, em uma experiência de contágio articulada a partir da constatação e vivência do intolerável.", eis a proposta feita por Frédéric Gros por intermédio de seu livro intitulado Desobedecer, publicado originalmente pela Albin Michel / Flammarion, em 2017, e posteriormente traduzido pela Ubu Editora, em 2018.
Proposta de desobedecer juntos, em uma experiência de contágio articulada a partir da constatação e vivência do intolerável, renovada por Amanda Mont'Alvão Veloso na frase final de seu artigo intitulado Uma ética de rebeldia para evitar as catástrofes, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 2018, no qual ela focaliza o livro de Frédéric Gros.
Proposta de desobedecer juntos, renovada agora, em 2021, em plena vivência do intolerável constatado por uma catástrofe originada por uma pandemia surgida em 2019 e até agora não debelada.
Será que algum dia a autodenominada espécie inteligente do universo conseguirá entender que não é por meio da obediência que ela conseguirá construir algo que faça jus ao termo civilização? Será que algum dia ela conseguirá entender que "O problema não é a desobediência, o problema é a obediência"? Será que a leitura do livro de Frédéric Gros pode ajudar a entender tal coisa? No meu entender, sim.

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