"A desobediência, é aos olhos de qualquer estudioso
da história, a virtude original do homem. É através da desobediência que se faz
o progresso, através da desobediência e da rebelião."
(Oscar Wilde, dramaturgo,
escritor e poeta irlandês [1854-1900])
"Senhores, é simples assim: um manda e o outro
obedece", disse um obediente e sorridente ministro da Saúde, em 22 de
outubro de 2020, ao lado de um também sorridente Presidente da República. Hoje,
seis meses depois, com quase 400 mil mortos, centenas de milhares de sequelados,
e sem conseguir vislumbrar o fim de tal devastação, faço as seguintes indagações.
Será que, realmente, é simples assim? Será que obedecer
tudo que outro mande pode ser considerado uma virtude?
Desobediência: a virtude original do homem, eis o título do texto espalhado em 02 de
dezembro de 2011. Hoje, nove anos e cinco
meses depois, este blog espalha mais um texto focalizando a desobediência.
Publicado na edição de 07 de outubro de 2018 do jornal O Estado de S. Paulo ele é atribuído a Amanda Mont'Alvão Veloso,
psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela PUC-SP.
Uma ética da
rebeldia para evitar as catástrofes
O
filósofo francês Frédéric Gros investiga o fenômeno da obediência e propõe, em
um diálogo com a psicologia, que a insubmissão pode salvar vidas
"Começo de julho de 1942, o batalhão é enviado
à cidade de Józefów. Sua missão: de uma população judia de 1.800 indivíduos,
reter 300 homens válidos e matar os demais (mulheres, idosos, crianças,
doentes). Quando o comandante Trapp toma conhecimento das ordens, fica atônito.
Mas como 'bom oficial', aceita sua missão, reúne todos
seus homens (algumas centenas) e lhes dá a oportunidade de escolher. Depois de
expor, com voz trêmula, o conteúdo da missão, pede aos que a recusassem para
dar um passo à frente, indicando que não sofreriam sanções (...) Só uma pequena
dezena se destaca do grupo para manifestar recusa."
Por que tantos homens prosseguiram no cumprimento
da cruel missão, uma vez que os membros do agrupamento encarregado de massacrar
judeus na Polônia não eram nazistas identificados com o discurso de Adolf
Hitler, mas, sim, reservistas convocados? Por que não houve desistência dos
encarregados, avisados de que não haveria retaliação? Esta e outras
perplexidades nos são endereçadas pelo filósofo francês Frédéric Gros em seu
livro Desobedecer, lançado no Brasil
pela Ubu.
Rebelião. Frédéric Gros analisa como a obediência foi a força motriz do nazismo
Especialista em Michel Foucault e estudioso da
intimidade política dos sujeitos, o professor do Institut d'Études Politiques de Paris rejeita a condescendência e convoca
a um desconfortável autoexame sobre a recusa à desobediência. Frente a
injustiças sociais, desigualdades de fortuna, degradação progressiva do meio
ambiente e à desqualificação do trabalho em nome da criação de riquezas pela
dívida e pela especulação, Gros questiona, movido pelo assombro: por que as
pessoas não se revoltam? "Por que nos
comportamos como espectadores do desastre?" Após determinado percurso do
livro, descobrimos que, mais que espectadores, somos agentes do desastre,
protegidos pelo véu da 'desresponsabilização'. O que nos une na
reprodução e manutenção destas mazelas, lamentavelmente, é a obediência,
argumenta Gros.
A
obediência já tinha sido alvo de análises anteriores, sendo a mais notória
delas feita em 1962 pelo norte-americano Stanley Milgram, que buscava descobrir
como seres humanos eram capazes de cometer atrocidades. Em um experimento com
40 homens realizado na Universidade de Yale, o cientista observou que 65% dos
voluntários aceitaram aplicar choques de até 450 volts em um desconhecido
porque estavam sob as ordens de uma autoridade. Os choques não ocorreram de
fato, mas estava ali a constatação do alcance de um comando. Milgram, que
buscava identificar a desistência dos choques como resposta recorrente, refez o
experimento com outras pessoas e alterou algumas condições, mas ainda assim
obteve a obediência sem limites como maioria dos resultados.
Gros
investiga os diferentes arranjos de obediência na coletividade e os afetos
envolvidos na construção desse sempre assimétrico vínculo. Parece conversar com
a afirmação feita por Freud em 1921, em Psicologia
das Massas e Análise do Eu, de que "um grupo é um rebanho obediente que nunca
poderia viver sem um senhor. Possui tal anseio de obediência que se submete
instintivamente a qualquer um que indique a si próprio como chefe."
Basta pensarmos nas relações de trabalho, nas
exclusões cotidianas, nas operações de guerra e em outros processos de
desumanização: as amarras da obediência são capazes de patrocinar horrores em
maior ou menor escala, desde demissões evitadas ao custo de empregos
fragilizados e constantemente ameaçados; intolerância às diferenças sancionada
por líderes ou assassinatos tornados invisíveis pelo silêncio – vide o Holocausto
Brasileiro vivido em Barbacena (MG). Dentre os ingredientes assíduos nesta
perversa equação da obediência estão a omissão e o descompromissado "estava
apenas seguindo ordens".
Este último foi o argumento de Adolf Eichmann em
1961 para justificar sua participação no transporte de centenas de milhares de
judeus para campos de extermínio. O ex-chefe da Seção de Assuntos Judeus no
Departamento de Segurança de Hitler foi julgado naquele ano, depois de ter sido
encontrado na Argentina. A partir das declarações no julgamento, Gros faz uma
torção na dicotomia em que ele era colocado – ora visto como um monstro de
antissemitismo, ora encarado como uma "peça inocente" do sistema
monstruoso – e propõe que o oficial nazista se reconhece responsável, mas
apenas pelo transporte de pessoas. Aceita ser punido por este contexto, mas não
pelo motivo das viagens. Tal responsabilização vem porque um juramento foi
prestado: "Estando atado por meu juramento de lealdade, eu devia em meu
setor ocupar-me da questão da organização dos transportes." Quanta
humanidade seria poupada se ele tivesse escolhido desobedecer?
Pistas dadas, a ética é o grande pilar do filósofo,
que aspira a construir uma estilística da desobediência a partir de uma
estilística da obediência com a diferenciação de submissão, obediência,
consentimento e conformismo. Gros está interessado em despertar a tensão ética
que deve existir no íntimo de cada um – o "si" indelegável que tem
capacidade de pensar e modificar cenários. Mas é preciso que esse si político
seja sustentado pelo coletivo, em uma ação 'vislumbradora' de futuro.
Propõe, portanto, desobedecer juntos, em uma experiência de contágio articulada
a partir da constatação e vivência do intolerável.
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"É através da desobediência que se faz o
progresso, através da desobediência e da rebelião.", diz Oscar
Wilde.
"É através da desobediência que se
evitam as catástrofes, através da desobediência e da ética da rebeldia.", digo
eu, fazendo uma paráfrase a partir do título do texto de Amanda Mont'Alvão Veloso: Uma ética
da rebeldia para evitar as catástrofes.
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