quarta-feira, 21 de abril de 2021

Só 7 em cada 100 adultos têm a profissão que sonhavam

"A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens: não há senão um verdadeiro luxo e esse é o das relações humanas."
(Antoine de Saint-Exupéry)
Exibida em uma propaganda de automóveis que talvez ainda esteja sendo veiculada na televisão, mais do que uma estatística, considero a afirmação que intitula esta postagem uma explicação para o deplorável estágio de evolução moral em que se encontra a autodenominada espécie inteligente do universo, como procuro demonstrar a seguir.
Para começar, na afirmação feita na propaganda, troquemos "têm a profissão que sonhavam" por "têm uma profissão que gostam". Afinal, em um mundo onde a combinação de um estupendo desenvolvimento tecnológico com um estúpido subdesenvolvimento humano e social produz as condições ideais para a extinção de empregos e, consequentemente, leva uma imensa quantidade de indivíduos a se ver diante da escolha entre trabalhos precários ou desemprego, enxergo a possibilidade de sonhar com determinada profissão como algo raríssimo acessível a uma ínfima quantidade de pessoas. Quanto ao número que deve substituir o 7, é algo sobre o qual não consigo opinar sem recorrer a ajuda de uma parábola atribuída ao escritor, poeta e ensaísta francês Charles Péguy (1873 - 1914), intitulada A parábola dos três pedreiros que é mais ou menos assim.
Certo dia, um viajante, percorrendo uma estrada, deparou-se com uma obra em início de construção. Três pedreiros, com suas ferramentas, trabalhavam na fundação do que parecia ser um importante projeto. O viajante aproximou-se curioso e perguntou a um deles o que estava fazendo.
- Estou quebrando pedras, não vê? - respondeu o pedreiro, expressando no semblante um misto de dor e sofrimento. Estou morrendo de trabalhar, isto aqui é um meio de morte, as minhas costas doem, minhas mãos estão esfoladas eu não suporto mais este trabalho, concluiu.
Não satisfeito, o viajante dirigiu-se ao segundo pedreiro e repetiu a pergunta.
- Estou ganhando a vida, respondeu. Não posso reclamar, pois foi o emprego que consegui. Estou conformado porque levo o pão de cada dia para minha família.
Querendo saber o que seria aquela construção, o viajante dirigiu-se ao terceiro pedreiro e repetiu a pergunta.
- Estou ajudando a construir uma Catedral!
Três pedreiros, três respostas diferentes para a mesma pergunta. Respostas com as quais cada um revelava o que sua profissão significava para si. Para o primeiro, ela significava dor e sofrimento e, consequentemente, lhe fazia mal. O segundo estava conformado, pois sua profissão lhe possibilitava levar o pão de cada dia para a sua família, e sendo assim ele a exercia por obrigação. Já o terceiro pedreiro tinha a consciência da importância do que fazia. Tinha o sentimento elevado de participar de uma grande realização, o que lhe dava força, energia, ânimo, felicidade.
"Só 7 em cada 100 adultos têm a profissão que sonhavam.", diz a afirmação exibida na propaganda.
"Só 1 dos 3 pedreiros tem uma profissão que gosta, eis uma afirmação que se pode fazer a partir das respostas dos pedreiros.
Só 33 em cada 100 adultos têm uma profissão que gostam, eis uma afirmação que considero plausível, se considerarmos todas as profissões, a proporção de 1 para 3 citada no parágrafo anterior e a insatisfação profissional que enxergo nesta sociedade onde a maioria dos indivíduos executa sua tarefas profissionais com espírito semelhante ao do segundo pedreiro da parábola, ou seja, apenas por obrigação. Apenas para se livrar da tarefa e, consequentemente, com nenhum esmero.
Será que alguém que exerce uma profissão de que não goste consegue realizar alguma coisa com esmero? Será que com a maior parte de seus integrantes fazendo coisas sem esmero, coisas que não prestam, é possível construir um mundo que preste? Não, não acredito que isso seja possível. E as indagações continuam!
Será que é difícil perceber que, em última análise, exercer uma profissão significa servir a alguém? E ao fazer esta indagação, eu a associo à afirmação que epigrafa esta postagem. "A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens: não há senão um verdadeiro luxo e esse é o das relações humanas.", diz Antoine de Saint-Exupéry.
Será que, à luz da afirmação de Saint-Exupéry, faz sentido afirmar que, exercidas por indivíduos que não gostem delas, as profissões se apequenem e que, sendo assim, em vez de unir os homens o que elas fazem é desuni-los? Será que desunidos os homens conseguirão, algum dia, construir algo que faça jus ao termo civilização?
Iniciei esta postagem dizendo que, mais do que uma estatística, considero a afirmação feita na propaganda que a provocou uma explicação para o deplorável estágio de evolução moral em que se encontra a autodenominada espécie inteligente do universo. Consideração que procuraria demonstrar com o que seria dito a seguir. Prossegui com a apresentação da interessante parábola atribuída a Charles Péguy e de uma série de instigantes indagações e termino-a com mais algumas indagações.
Será que consegui demonstrar o que eu pretendia?
Você se identifica com algum dos três pedreiros?
Onde você se coloca na afirmação "Só 33 em cada 100 adultos têm uma profissão que gostam"? Nos 33% ou nos 67%?
Será que só eu sou vítima de serviços mal prestados?
Será que eu coloco esmero nos serviços que presto?
Será que você coloca esmero nos serviços que presta?
Uma simples frase extraída de uma propaganda e tantas indagações e reflexões por ela provocadas! E após tantos "será?", foi inevitável lembrar a bela canção da banda Legião Urbana e dela pegar emprestadas as seguintes indagações. Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?
Vencer nossa inclinação a colocar esmero apenas quando fazemos alguma coisa que gostamos de fazer e passar a colocá-lo também em qualquer serviço que prestemos a alguém, pois, como diz Saint-Exupéry, "A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens". Ou seja, passar a fazer tudo com esmero, e dessa forma tornar-se um praticante daquela que é conhecida como a regra de ouro: "Não faças aos outros o que não queres que os outros façam a ti.". É difícil? Sim, é muito difícil! Mas como diz o protagonista do filme Patch Adams – O amor é contagioso, ao ouvir que o que pretende fazer é algo muito difícil, "Tudo o que vale a pena fazer é difícil.".

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