sexta-feira, 7 de maio de 2021

O silêncio é o irmão do divino

"O silêncio é a linguagem do divino, todo o resto é má tradução."
  (Jalaluddin Rumi [1207 – 1273], poeta, teólogo e místico sufi persa)
Após a descoberta da existência de um dia para celebrar o silêncio, ocorrida em 2014, jamais deixei de publicar uma postagem alusiva a tal dia. A deste ano é uma compilação de duas passagens do livro ANAM ĊARA – Um livro de sabedoria celta, de John O'Donohue, publicado pela editora Rocco, no ano 2000. Segundo o livro, ANAM ĊARA é a palavra gaélica para "amigo da alma". O título da postagem é tomado emprestado de uma das duas passagens.
O silêncio é o irmão do divino
O silêncio é uma das grandes vítimas da cultura moderna. Vivemos em uma época intensa e visualmente agressiva. Tudo é atraído para fora, em direção à sensação da imagem. Uma das causas de a cultura se tornar cada vez mais homogeneizada e universalista é o fato de a imagem ter adquirido tamanho poder. Com o entrelaçamento contínuo de tudo, imagens selecionadas podem imediatamente atingir universalidade. Existe uma indústria moderna de desarticulação, inacreditavelmente sutil e poderosamente astuta, onde o que é profundo e vive no silêncio dentro de nós é completamente ignorado.
A superfície da nossa mente continua a ser seduzida pelo poder das imagens. Há um cruel desalojamento; a vida das pessoas está sendo continuamente arrastada para fora. O mundo interior da alma está sofrendo uma grande deturpação pelas forças poderosas da publicidade e da realidade social externa. Esse exílio exterior realmente nos empobrece. Uma das razões pelas quais tantas pessoas estão sofrendo de estresse não é porque estejam fazendo coisas estressantes, mas porque concedem tão pouco tempo ao silêncio. Um isolamento proveitoso sem silêncio e espaço é inconcebível.
O silêncio é um dos maiores limiares do mundo. A espiritualidade dos Pais do Deserto influenciou profundamente a espiritualidade celta. Para esses ascetas, o silêncio era o mestre: "Um certo irmão foi até o abade Moses em Scete, em busca de uma palavra sua. E o velho disse-lhe: 'Vai e senta-te na tua cela, e a tua cela ensinar-te-á todas as coisas.'". No mundo celta, sempre houve o reconhecimento do silêncio e do desconhecido como as companhias mais próximas da viagem humana. Encontro e despedida, que entabulam as conversas, eram sempre bênçãos.
Em The Tain, Emer oferece uma encantadora benção a Cúchulainn. Diz ela: "Que o teu caminho seja abençoado", literalmente: sigo perto de ti em uma carruagem voltada para a direita. Essa era a direção do sol e atraía boa sorte. Por trás da poesia e prece celtas, está o senso de que as palavras surgiram de um profundo silêncio reverente. Essa perspectiva de isolamento e silêncio purificava e intensificava o encontro de duas pessoas na experiência do anam ċara.
Fundamentalmente, existe o grande silêncio que encontra a linguagem. Todas as palavras provêm do silêncio. As palavras que possuem em si profundidade, ressonância, cura e desafio são palavras carregadas de silêncio ascético. A linguagem que não reconhece a sua afinidade com a realidade é banal, denotativa e puramente discursiva. A linguagem da poesia emana do silêncio e a ele retorna. Na cultura moderna, a conversa é uma das vítimas. Em geral, quando se fala com as pessoas, tudo o que se ouve é uma narrativa superficial ou uma lista de novidades terapêuticas. É muito pungente ouvir as pessoas se descreverem em função do programa em que estão envolvidas, ou do trabalho externo que o seu papel social envolve.
Meister Eckhart disse que não existe nada no mundo que se assemelhe tanto a Deus como o silêncio. O silêncio é um grande amigo da alma. Ele desvela as riquezas do isolamento. É muito difícil alcançar essa capacidade do silêncio interior. Devemos abrir-lhe espaço para que possa começar a trabalhar para nós. De certo modo, não se necessita de todo o arsenal e vocabulário de terapias, psicologias ou programas espirituais. Se temos confiança e esperança no próprio isolamento, tudo o que necessitamos saber nos será revelado. Estes são admiráveis versos do poeta francês René Char: "A intensidade é silenciosa, sua imagem não o é. Aprecio tudo o que me ofusca e, em seguida, acentua a escuridão dentro de mim." Eis uma imagem do silêncio como a força que descerra a profundidade oculta. O silêncio é o irmão do divino.
Uma das tarefas da verdadeira amizade é prestar atenção compassiva e criativamente aos silêncios ocultos. Frequentemente, os segredos não se revelam em palavras, eles se acham escondidos no silêncio entre as palavras, ou na profundidade do que é indizível entre duas pessoas. Na vida moderna existe um imenso ímpeto para a expressão. Às vezes, o que é expresso é superficial e imensamente repetitivo. É conveniente uma tolerância maior para com o silêncio, esse silêncio fecundo que é a fonte da nossa linguagem mais vibrante. A profundidade e a substância de uma amizade espelham-se na qualidade e no abrigo do silêncio entre duas pessoas.
Quando se começa a favorecer o silêncio interior, uma das primeiras coisas que se percebem é o burburinho superficial no nível exterior da mente. Assim que se reconhece isso, o silêncio aprofunda-se. Começa a emergir uma distinção entre as imagens que se tem de si mesmo e a própria natureza mais profunda. Às vezes, grande parte do conflito na nossa espiritualidade não tem relação com a nossa natureza mais íntima, mas sim com as falsas sínteses superficiais que elaboramos. Ficamos, então, enredados na formulação de uma gramática e uma geometria de como essas imagens e atitudes de superfície relacionam-se entre si. Enquanto isso, nossa natureza mais profunda permanece abandonada.
  *************
"O silêncio é uma das grandes vítimas da cultura moderna. Vivemos em uma época intensa e visualmente agressiva." Eis as duas frases iniciais do texto selecionado para esta postagem alusiva ao Dia do Silêncio. "Enquanto isso, nossa natureza mais profunda permanece abandonada." Eis a frase final. Entre as duas iniciais e a final, oito parágrafos que enxergo como capazes de provocar reflexões que podem levar-nos a interessarmo-nos por duas coisas imprescindíveis: o socorro a grande vítima citada na frase inicial e a atenção a nossa natureza mais profunda. Coisas imprescindíveis e interligadas, pois o andamento da realização da primeira implica automaticamente no início da realização da segunda. Coisas imprescindíveis, interligadas e dificílimas de realizar, das quais jamais deveremos desistir se, realmente, ainda almejarmos viver em um mundo que preste.

Nenhum comentário: