sexta-feira, 28 de maio de 2021

Não obedeça de antemão

"Quando uma lei é injusta, o correto é desobedecer."

  (Mahatma Gandhi)

Após três postagens alusivas a datas comemorativas (Dia do Silêncio e Dia do Abraço), este blog retorna ao tema desobediência. Retorno feito por meio da reprodução de um texto encontrado no livro Sobre a Tirania vinte lições do século XX para o presente. Um pequeno grande livro de autoria de Timothy Snyder, professor de história em Yale e membro do Instituto de Ciências Humanas em Viena, e autor de outros livros, entre eles um vencedor de doze prêmios e traduzido para trinta idiomas. Esta postagem espalha a primeira das vinte lições.
Não obedeça de antemão
A maior parte do poder do autoritarismo é concedida voluntariamente. Em tempos como estes, as pessoas calculam com antecedência o que um governo mais repressivo pode querer, e muitas vezes oferecem sua adesão sem que sejam solicitadas. Um cidadão que procede dessa maneira está ensinando ao poder o que ele pode fazer.
A obediência por antecipação é uma tragédia política. Talvez os governantes a princípio não soubessem que os cidadãos estavam dispostos a abrir mão de determinado valor ou de certo princípio. Talvez um novo regime não tivesse, de início, meios diretos de influenciar os cidadãos de uma maneira ou de outra. Depois das eleições alemãs de 1932, que permitiram a Adolf Hitler formar seu governo, ou das eleições tchecoslovacas de 1946, nas quais os comunistas saíram vitoriosos, a obediência por antecipação foi crucial para o passo seguinte. Como em ambos os casos grande número de pessoas ofereceu seus serviços voluntariamente aos novos poderosos, tanto os nazistas como os comunistas se deram conta de que poderiam agir rapidamente no sentido de impor uma completa mudança de regime. Depois, os primeiros atos precipitados de submissão não podiam mais ser desfeitos.
No começo de 1938, Adolf Hitler, já então firmemente instalado no poder na Alemanha, ameaçava anexar a vizinha Áustria. Quando o chanceler austríaco cedeu, foi a obediência por antecipação dos austríacos que decidiu o destino dos judeus da Áustria. Nazistas austríacos passaram a capturar judeus e a obrigá-los a fazer faxina nas ruas para remover símbolos de uma Áustria independente. É importante destacar que cidadãos que não eram nazistas assistiam a isso com interesse e achando graça. Os nazistas tinham listas de propriedades de judeus e roubavam o que podiam. Mas outros, que não eram nazistas, também aderiram à pilhagem. Como recordou a ensaísta política Hannah Arendt: "quando tropas alemãs invadiram o país e góis passaram a atacar residências de famílias judias, judeus austríacos começaram a se suicidar".
A obediência por antecipação dos austríacos, em março de 1938, mostrou à alta cúpula nazista o que seria possível. Foi em Viena, em agosto daquele ano, que Adolf Eichmann criou o Escritório Central de Emigração Judaica. Em novembro de 1938, seguindo o exemplo austríaco de março, os nazistas alemães organizaram o pogrom nacional conhecido como Kristallnacht, ou Noite dos Cristais.
Em 1941, quando a Alemanha invadiu a União Soviética, a SS tomou a iniciativa de formular os métodos de massacre em massa mesmo sem ordens nesse sentido. Presumiram o que seus superiores queriam e demonstraram o que era possível. Foi muito mais do que Hitler havia imaginado.
Em seus primeiros momentos, a obediência por antecipação se limita a uma adaptação instintiva, sem reflexão, à nova situação. Somente os alemães procedem dessa maneira? Analisando as atrocidades nazistas, o psicólogo americano Stanley Milgram quis mostrar que uma certa inclinação autoritária explica a razão pela qual os alemães tinham se comportado daquela forma. Milgram imaginou um experimento destinado a testá-lo, mas não conseguiu permissão para realizá-lo na Alemanha. Por isso concretizou a ideia num prédio da Universidade Yale, em 1961, o mesmo ano em que Adolf Eichmann foi julgado em Jerusalém por seu papel no Holocausto de judeus durante o nazismo.
Milgram disse aos participantes do experimento (estudantes de Yale e moradores de New Haven) que poderiam aplicar choques elétricos em outros integrantes num experimento sobre aprendizagem. Na verdade, as pessoas ligadas aos fios do outro lado de uma janela eram parte do esquema criado por Milgram, e só fingiam estar sendo submetidas a choques. Enquanto supostamente torturavam outras pessoas num experimento de aprendizagem, os participantes se viram diante de cenas horríveis. Pessoas que não conheciam e contra as quais não tinham nenhuma queixa pareciam estar sofrendo horrivelmente, socando o vidro da janela e reclamando de dores cardíacas. Ainda assim, a maioria seguiu as instruções de Milgram e continuou a aplicar o que pareciam ser choques cada vez mais fortes, até as vítimas darem sinal de terem morrido. Mesmo aqueles que não foram até o fim, interrompendo os choques antes da morte (aparente) de outros seres humanos, foram embora sem perguntar sobre o estado dos demais.
Milgram concluiu que as pessoas são particularmente receptivas a novas regras num ambiente novo. De forma surpreendente, mostram-se dispostas a maltratar e a matar outras pessoas a serviço de algum propósito novo se assim forem instruídas por uma nova autoridade. "Encontrei tanta obediência", lembrou Milgram, "que não vi necessidade de levar o experimento à Alemanha."
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"Partindo da premissa de que o conhecimento das experiências passadas nos revela o lado sombrio de futuros possíveis, o historiador Timothy Snyder apresenta vinte lições tiradas do século XX e adaptadas para o mundo de hoje. Sobre a tirania é um livro fundamental para refletir e enfrentar os desafios do presente.", eis uma instigante afirmação feita na contracapa do livro. Os grifos são meus.
"Sobre a tirania é um livro curto, que se lê em um só fôlego, mas ao qual se deve voltar regularmente a fim de recuperar o ânimo e a inspiração para enfrentar os desafios do presente.", eis uma instigante afirmação feita na segunda orelha do livro. Os grifos são meus.
Passado, presente e futuro, suas inter-relações e suas implicações, eis algo que jamais se deveria deixar de ter em mente, principalmente em tempos sombrios como estes que estamos vivenciando, se a verdadeira intenção for construir algo que faça jus ao termo civilização.
"Voltar regularmente" a coisas que nos possibilitem "recuperar o ânimo e a inspiração para enfrentar os desafios do presente", eis uma prática que considero imprescindível se, realmente, quisermos impedir a concretização dos sombrios futuros possíveis que podem ser vislumbrados se nos dispusermos a conhecer as experiências passadas.

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