"Quando uma lei é injusta, o correto é desobedecer."
(Mahatma Gandhi)
Após três postagens alusivas a datas comemorativas
(Dia do Silêncio e Dia do Abraço), este blog retorna ao
tema desobediência. Retorno feito por meio da reprodução de um texto encontrado
no livro Sobre a Tirania
– vinte
lições do século XX para o presente. Um pequeno grande livro de autoria de Timothy
Snyder, professor de história em Yale e membro do Instituto de Ciências Humanas
em Viena, e autor de outros livros, entre eles um vencedor de doze prêmios e
traduzido para trinta idiomas. Esta postagem espalha a primeira das vinte
lições.
Não obedeça de
antemão
A maior parte do
poder do autoritarismo é concedida voluntariamente. Em tempos como estes, as
pessoas calculam com antecedência o que um governo mais repressivo pode querer,
e muitas vezes oferecem sua adesão sem que sejam solicitadas. Um cidadão que
procede dessa maneira está ensinando ao poder o que ele pode fazer.
A obediência por antecipação é uma tragédia
política. Talvez os governantes a princípio não soubessem que os cidadãos
estavam dispostos a abrir mão de determinado valor ou de certo princípio.
Talvez um novo regime não tivesse, de início, meios diretos de influenciar os
cidadãos de uma maneira ou de outra. Depois das eleições alemãs de 1932, que
permitiram a Adolf Hitler formar seu governo, ou das eleições tchecoslovacas de
1946, nas quais os comunistas saíram vitoriosos, a obediência por antecipação
foi crucial para o passo seguinte. Como em ambos os casos grande número de
pessoas ofereceu seus serviços voluntariamente aos novos poderosos, tanto os
nazistas como os comunistas se deram conta de que poderiam agir rapidamente no
sentido de impor uma completa mudança de regime. Depois, os primeiros atos
precipitados de submissão não podiam mais ser desfeitos.
No começo de 1938, Adolf Hitler, já então
firmemente instalado no poder na Alemanha, ameaçava anexar a vizinha Áustria.
Quando o chanceler austríaco cedeu, foi a obediência por antecipação dos
austríacos que decidiu o destino dos judeus da Áustria. Nazistas austríacos
passaram a capturar judeus e a obrigá-los a fazer faxina nas ruas para remover
símbolos de uma Áustria independente. É importante destacar que cidadãos que
não eram nazistas assistiam a isso com interesse e achando graça. Os nazistas
tinham listas de propriedades de judeus e roubavam o que podiam. Mas outros, que
não eram nazistas, também aderiram à pilhagem. Como recordou a ensaísta
política Hannah Arendt: "quando tropas alemãs invadiram o país e góis
passaram a atacar residências de famílias judias, judeus austríacos começaram a
se suicidar".
A obediência por antecipação dos austríacos, em
março de 1938, mostrou à alta cúpula nazista o que seria possível. Foi em
Viena, em agosto daquele ano, que Adolf Eichmann criou o Escritório Central de
Emigração Judaica. Em novembro de 1938, seguindo o exemplo austríaco de março,
os nazistas alemães organizaram o pogrom nacional conhecido como Kristallnacht, ou Noite dos Cristais.
Em 1941, quando a Alemanha invadiu a União
Soviética, a SS tomou a iniciativa de formular os métodos de massacre em massa
mesmo sem ordens nesse sentido. Presumiram o que seus superiores queriam e
demonstraram o que era possível. Foi muito mais do que Hitler havia imaginado.
Em seus primeiros momentos, a obediência por
antecipação se limita a uma adaptação instintiva, sem reflexão, à nova
situação. Somente os alemães procedem dessa maneira? Analisando as atrocidades
nazistas, o psicólogo americano Stanley Milgram quis mostrar que uma certa
inclinação autoritária explica a razão pela qual os alemães tinham se
comportado daquela forma. Milgram imaginou um experimento destinado a testá-lo,
mas não conseguiu permissão para realizá-lo na Alemanha. Por isso concretizou a
ideia num prédio da Universidade Yale, em 1961, o mesmo ano em que Adolf
Eichmann foi julgado em Jerusalém por seu papel no Holocausto de judeus durante
o nazismo.
Milgram disse aos participantes do experimento
(estudantes de Yale e moradores de New Haven) que poderiam aplicar choques
elétricos em outros integrantes num experimento sobre aprendizagem. Na verdade,
as pessoas ligadas aos fios do outro lado de uma janela eram parte do esquema
criado por Milgram, e só fingiam estar sendo submetidas a choques. Enquanto
supostamente torturavam outras pessoas num experimento de aprendizagem, os
participantes se viram diante de cenas horríveis. Pessoas que não conheciam e
contra as quais não tinham nenhuma queixa pareciam estar sofrendo
horrivelmente, socando o vidro da janela e reclamando de dores cardíacas. Ainda
assim, a maioria seguiu as instruções de Milgram e continuou a aplicar o que
pareciam ser choques cada vez mais fortes, até as vítimas darem sinal de terem
morrido. Mesmo aqueles que não foram até o fim, interrompendo os choques antes
da morte (aparente) de outros seres humanos, foram embora sem perguntar sobre o
estado dos demais.
Milgram concluiu que as pessoas são particularmente
receptivas a novas regras num ambiente novo. De forma surpreendente, mostram-se
dispostas a maltratar e a matar outras pessoas a serviço de algum propósito
novo se assim forem instruídas por uma nova autoridade. "Encontrei tanta
obediência", lembrou Milgram, "que não vi necessidade de levar o
experimento à Alemanha."
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"Partindo da premissa de que o
conhecimento das experiências passadas nos
revela o lado sombrio de futuros possíveis,
o historiador Timothy Snyder apresenta vinte lições tiradas do século XX e
adaptadas para o mundo de hoje. Sobre a
tirania é um livro fundamental para refletir e enfrentar os desafios do presente.", eis uma instigante afirmação feita na contracapa
do livro. Os grifos são meus.
"Sobre
a tirania é um livro curto, que se lê em um só fôlego, mas ao qual se deve
voltar regularmente a fim de recuperar o ânimo e a inspiração para enfrentar os
desafios do presente.",
eis uma instigante afirmação feita na segunda orelha do livro. Os grifos são
meus.
Passado, presente e futuro, suas inter-relações
e suas implicações, eis algo que jamais se deveria deixar de ter em mente,
principalmente em tempos sombrios como estes que estamos vivenciando, se a
verdadeira intenção for construir algo que faça jus ao termo civilização.
"Voltar regularmente" a coisas que
nos possibilitem "recuperar o ânimo e a inspiração para enfrentar os
desafios do presente", eis uma
prática que considero imprescindível se, realmente, quisermos impedir a
concretização dos sombrios futuros
possíveis que podem ser vislumbrados se nos dispusermos a conhecer as experiências
passadas.
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