"O mal do passado foi os homens se tornarem escravos. O perigo do futuro é que eles se tornem robôs".
(Erich Fromm [1900-1980], psicanalista,
filósofo e sociólogo alemão)
"Não pode ter só a filosofia, porque senão perde o mundo prático. Mas o mundo prático sem a indagação automatiza e robotiza. Robota, em sérvio, significa escravo. Pensamento prático e contínuo escraviza o pensador. É preciso um pensamento que indague."
Extraídas
da entrevista espalhada pela postagem anterior, as palavras de Mario Sergio Cortella,
reproduzidas no parágrafo anterior, fazem-me indagar se o mundo prático por ele
citado torna realidade o perigo previsto por Erich Fromm na afirmação em
epígrafe. E fazem-me lembrar também um alerta do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017): "Nenhuma
sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas
para os problemas que a afligem."
"Faço uma distinção entre trabalho e emprego. Emprego é fonte de renda e trabalho é fonte de vida. Meu trabalho é minha obra. A noção grega de obra é poiesis. De onde vem poesia, que é o que você elabora. Eu gosto dessa ideia. Tanto que não há estresse no meu trabalho, só cansaço. Cansaço resulta de um esforço intenso e estresse resulta de um esforço para o qual você não vê sentido. Cansaço se cura descansando. Estresse só se cura se houver mudança de rota. Você está cansado quando na segunda-feira, ao acordar, quer dormir mais um pouco. Estressado você está se não quiser nem levantar. É quando você fala 'liga lá e diz que eu morri'."
Que palavras sinistras de Cortella! "Cansaço
resulta de um esforço intenso e estresse resulta de um esforço para o qual você
não vê sentido. Cansaço se cura descansando. Estresse só se cura se houver
mudança de rota.". Considerando que, segundo Cortella, "É preciso um
pensamento que indague.", que tal cada um fazer a seguinte indagação: Como
é que eu costumo acordar na segunda-feira - querendo dormir mais um pouco ou querendo
que alguém ligue para o meu emprego e diga que eu morri?
"Toda filosofia é autoajuda. O que mudou não foi o conceito de filosofia. O que mudou foi o conceito de autoajuda. Hoje se entende a autoajuda como a banalização da conduta do cotidiano. Mas você tem coisas de alto nível. Há textos religiosos, filosóficos, de literatura, que fazem um bem imenso. E há textos de autoajuda de má qualidade, como tem filosofia de má qualidade."
"Há textos religiosos,
filosóficos, de literatura, que fazem um bem imenso.", diz Cortella. "Textos
que fazem um bem imenso" a quem lê-los, eis o meu conceito de autoajuda. "Textos
que fazem um mal imenso" a quem lê-los, eis, analogamente, o meu conceito
de autodesajuda.
"O [consultor] Pedro Mandelli, com quem eu escrevi o livro Vida e Carreira, diz que o jovem da geração Y (...) é formado por famílias que estão criando personalidades frouxas, que não valorizam o esforço. Esforço não é sofrimento. É a capacidade de depositar energia vital em algo. Parte das famílias ainda facilita as coisas para os filhos e assim, em vez de ajudar, prejudica.", diz Cortella.
Durante a minha vida profissional,
algo que sempre me incomodou foi o uso da expressão "melhores
práticas" para referir-se a práticas que estavam muito longe de serem as
melhores. "Facilitar as coisas para os filhos e assim, em vez de ajudar,
prejudicar.", eis algo que, no meu entender, está muito perto de estar entre
as "piores práticas" adotadas por uma imensa parcela dos integrantes
da autodenominada espécie inteligente do universo. É impressionante a
capacidade que tal espécie tem para entender as coisas de modo contrário ao que
deveria entender!
"A adolescência foi alongada. A minha geração trabalhava com o patamar 20-40-60. O tempo médio de vida era de 60 anos. Aos 20 anos a pessoa tinha de estar pronta. Dos 20 aos 40 trabalhava e reproduzia. A partir dos 40 começava a se acalmar para se aposentar. Por isso a vida começava aos 40. Hoje um cara de 30 anos viveu um terço da vida. O senso de urgência dele é muito menor. Por outro lado, ele tem mais pressa de crescer. Senso de urgência é habilidade. Pressa é inabilidade. Senso de urgência é a capacidade de saber que isso tem de ser feito já. Fazer velozmente é perícia. Apressadamente é ruim. Significa fazer mal."
"A minha geração trabalhava com
o patamar 20-40-60. (...) Aos 20 anos a pessoa tinha de estar pronta. Dos 20
aos 40 trabalhava e reproduzia. A partir dos 40 começava a se acalmar para se
aposentar.", diz Cortella. E ao
dizê-lo, faz-me lembrar um antigo provérbio chinês que diz: "A vida
humana consiste de três fases: vinte anos para aprender, vinte anos para lutar
e vinte anos para atingir a sabedoria.".
A geração atual trabalha com o
patamar 30-60-90. Com a extensão do patamar, segundo
Cortella, o senso de urgência, ou seja, a capacidade de saber que algo tem de
ser feito já fica muito menor. Por outro lado, a pressa de crescer fica maior.
Associando a visão de Cortella ao provérbio chinês citado no parágrafo acima,
ouso dizer o seguinte: tornar menor a probabilidade do atingimento da sabedoria
é mais uma lamentável consequência do patamar atual, pois pressa e sabedoria
são coisas, simplesmente, incompatíveis.
O pensamento prático escraviza, eis o
título dado a reportagem que provocou estas reflexões. Título que faz-me
lembrar de uma instigante reportagem que encontrei em uma das edições da
revista Manchete (revista que
circulou semanalmente no Brasil até o ano 2000), em uma data que não lembro
(provavelmente no início da década de 1990), cujo título era mais ou menos
assim: Dentro de alguns anos o
ser humano estará livre da necessidade de pensar.
Ou
seja, enquanto alguns entendem que um determinado tipo de pensamento escraviza,
outros entendem que deixar de pensar liberta. Escravização versus libertação!
Será que a libertação da necessidade de pensar pode resultar em escravização
a outra (s) coisa (s)? Escravização e libertação, eis duas coisas que talvez
nunca tenham recebido de nós a devida atenção!
O pensamento prático escraviza, eis um título que faz-me
lembrar uma frase da qual gosto muito, pois considero-a perfeita para explicar
a composição desta insana sociedade na qual uma imensa parcela de seus
integrantes acredita que o mais prático seja não pensar. "Tem gente que
pensa; tem gente que pensa que pensa; tem gente que acha que pensar não faz
parte de suas atribuições".
Pensar, indagar, questionar! Será que faz
sentido acreditar que seja possível construir algo que faça jus ao termo
civilização sem considerar tais coisas como atribuições de todos? Será que faz
algum sentido acreditar que tal construção seja possível sem o pensamento
indagador, sem o pensamento questionador e apenas com o pensamento prático?
Será que ainda somos livres para questionar os absurdos que assolam esta insana
sociedade em que sobrevivemos ou o pensamento prático já nos escravizou? E para
ajudá-los a responder esta última indagação, segue uma passagem do livro Eu
Maior, organizado e editado por Fernando Schultz, na qual o extraordinário Roberto
Crema diz o seguinte:
"A minha história é a história de alguém que sempre se sentiu um prisioneiro. Quando eu tinha 11 anos, meus pais me colocaram num reformatório por engano. Oficialmente, o local era um colégio interno, mas alguns adolescentes estavam lá presos, por terem cometido crimes. Lá fiquei durante um ano e pude me aprofundar nessa vivência de ser um prisioneiro. A experiência me fascinou de tal forma que, anos mais tarde, já adulto, eu quis fazer serviços voluntários na Papuda, que é um presídio em Brasília. Foi lá que me dei conta de que a grande diferença entre os presos da Papuda e o resto de nós é que lá eles sabem que são prisioneiros, enquanto aqui nos iludimos achando que somos livres. É mais fácil arrebentar as paredes de uma Papuda do que conseguir transcender os grilhões que nos prendem à ignorância de nós mesmos! Em última instância, como bem dizem os orientais, a prisão é maya, a ilusão."
Será que se trocarmos a vivência de ser
um prisioneiro pela vivência de ser um escravo aquilo que Roberto Crema se deu
conta continua válido? No meu entender, sim. Sim, enquanto não formos capazes
de enxergar nossa real situação, a construção de algo que faça jus ao termo
civilização, também é maya, a ilusão.
E para
terminar estas já longas reflexões, creio que uma boa opção seja repetir aqui o
sábio alerta de Zygmunt Bauman:
"Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar
respostas para os problemas que a afligem." Não, não é com o pensamento prático
que as verdadeiras respostas para os problemas que afligem uma sociedade serão encontradas.
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