quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O pensamento prático escraviza

 "Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem."

(Zygmunt Bauman [1925 - 2017], sociólogo e filósofo polonês)
Significado de prático

Que tem o senso da realidade; que sabe tratar de negócios; pragmático: ter espírito prático.

De aplicação ou de uso fácil; cômodo: instrumento prático.

A finalidade do momento dicionário apresentado acima é auxiliar na interpretação da entrevista concedida pelo filósofo Mario Sergio Cortella à jornalista Silvia Balieiro, publicada na edição de dezembro de 2012 da revista Época Negócios. Por considerá-la bastante atual, embora oito anos tenham transcorrido após sua publicação, resolvi espalhá-la por meio deste blog. Até a publicação desta postagem, ela estava disponível em http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Visao/noticia/2012/12/mario-sergio-cortella.html.
"O pensamento prático escraviza"
O filósofo Mario Sergio Cortella é um admirador de dicionários. Em um dos nichos da estante atrás de sua mesa, há 18. Lê-los é um hobby, diz. Isso fica evidente em poucos minutos de conversa: a origem das palavras o ajuda a expor suas ideias, da robotização à felicidade, da necessidade de escutar aos problemas da geração. Para falar de seu trabalho, por exemplo, ele cita a noção grega da palavra obra, que é poiesis, de onde vem poesia, ou seja, o que se elabora. "Meu trabalho é minha obra."
Que contribuição a filosofia pode dar para as empresas?
"A filosofia oferece um pensamento estruturante que ajuda a perguntar pelo sentido, ajuda a ultrapassar o óbvio. Ela é capaz de enfrentar o que parece evidente, colocar ponto de interrogação onde ele não está mais. Não pode ter só a filosofia, porque senão perde o mundo prático. Mas o mundo prático sem a indagação automatiza e robotiza. Robota, em sérvio, significa escravo. Pensamento prático e contínuo escraviza o pensador. É preciso um pensamento que indague.
A vida moderna dificulta a filosofia?
Estamos vivendo uma laborlatria [idolatria do trabalho] que é muito perigosa. É usar o emprego como referência para todas as coisas. As pessoas dizem que não têm tempo para fazer o que não está relacionado ao trabalho. Tempo é uma questão de prioridade. Você já viu um infartado que não tem tempo? O médico manda caminhar, conviver mais, mas ele diz que não tem tempo? Basta sobreviver a um infarto para passar a conseguir. O tempo não mudou, o que mudou foi a prioridade.
As pessoas estão insatisfeitas?
Estar feliz não é ganhar muito. Fico feliz com o que faço quando entendo que é importante para mim e para os outros e tem reconhecimento das pessoas com as quais trabalho. Hoje a obsessão está nos fazendo correr atrás somente do urgente e deixar o importante de lado. A luz está piscando. Pare, olhe, escute. É importante ter humildade para aprender o que não se sabe e, como dizia Rubem Alves, não ficar muito grudado em curso de oratória, pegar alguns cursos de escutatória também. A gente aprende muito ouvindo.
Faz diferença gostar do que se faz?
Faço uma distinção entre trabalho e emprego. Emprego é fonte de renda e trabalho é fonte de vida. Meu trabalho é minha obra. A noção grega de obra é poiesis. De onde vem poesia, que é o que você elabora. Eu gosto dessa ideia. Tanto que não há estresse no meu trabalho, só cansaço. Cansaço resulta de um esforço intenso e estresse resulta de um esforço para o qual você não vê sentido. Cansaço se cura descansando. Estresse só se cura se houver mudança de rota. Você está cansado quando na segunda-feira, ao acordar, quer dormir mais um pouco. Estressado você está se não quiser nem levantar. É quando você fala 'liga lá e diz que eu morri'.
O senhor se considera um workaholic?
Seria um absurdo eu falar sobre trabalho e qualidade de vida e ser um workaholic. O que eu não posso é tirar 30 dias de férias. Mas eu sei que no ano que vem eu vou parar sete dias a cada 21. E isso já está programado. Eu sou metódico e tenho noção daquilo que preciso fazer. Eu organizo a minha semana até para o taxista que trabalha comigo.
O senhor não dirige?
Quando tinha 17 anos, tomei duas decisões: vou tomar vinho de vez em quando e para isso eu não posso dirigir. Ser metódico não é ser neurótico. É ser organizado. Eu não dirijo. Eu ando de ônibus, de metrô, de táxi ou a pé. E quando eu estou andando a pé eu falo comigo mesmo, porque vou tendo ideias e vou gravando.
O senhor anda com gravador?
Gravo no celular. O livro Qual É a Tua Obra? foi falado inteirinho. Ele só foi escrito depois.
O fato de ver seus livros na prateleira de autoajuda o incomoda?
Eu escrevo livros de autoajuda. Toda filosofia é autoajuda. O que mudou não foi o conceito de filosofia. O que mudou foi o conceito de autoajuda. Hoje se entende a autoajuda como a banalização da conduta do cotidiano. Mas você tem coisas de alto nível. Há textos religiosos, filosóficos, de literatura, que fazem um bem imenso. E há textos de autoajuda de má qualidade, como tem filosofia de má qualidade.
Como estão os jovens de hoje?
O [consultor] Pedro Mandelli, com quem eu escrevi o livro Vida e Carreira, diz que o jovem da geração Y está chegando mal-educado às empresas. Não tem noção de hierarquia, não tem compromisso com metas e acha que o gestor é o pai dele, ou seja, tem de fazer as coisas por ele. Não é uma questão de maldade. Ele é formado por famílias que estão criando personalidades frouxas, que não valorizam o esforço. Esforço não é sofrimento. É a capacidade de depositar energia vital em algo. Parte das famílias ainda facilita as coisas para os filhos e assim, em vez de ajudar, prejudica.
O que fazer com esse jovem?
As empresas terão de educar a geração Y. Terão de ensinar a respeitar hierarquia, e mostrar que o esforço é necessário. Terão de mostrar o que é trabalhar com metas. Ou seja, criar disciplina. Outro desafio é entender que mudou a relação com o tempo. A adolescência foi alongada. A minha geração trabalhava com o patamar 20-40-60. O tempo médio de vida era de 60 anos. Aos 20 anos a pessoa tinha de estar pronta. Dos 20 aos 40 trabalhava e reproduzia. A partir dos 40 começava a se acalmar para se aposentar. Por isso a vida começava aos 40. Hoje um cara de 30 anos viveu um terço da vida. O senso de urgência dele é muito menor. Por outro lado, ele tem mais pressa de crescer. Senso de urgência é habilidade. Pressa é inabilidade. Senso de urgência é a capacidade de saber que isso tem de ser feito já. Fazer velozmente é perícia. Apressadamente é ruim. Significa fazer mal.
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A mim essa antiga entrevista do filósofo Mario Sergio Cortella ainda dá o que pensar.

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