Conforme prometido no final da postagem anterior, segue um artigo do biólogo Fernando Reinach publicado na edição de 22 de fevereiro de 2020 em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo sob o título Mundo de oportunidades.
Mundo de
oportunidades
Quando observamos
a destruição de ecossistemas resultante de nossa falta de respeito pelo
planeta, pensamos em extermínio e morte. Mas essa atividade do Homo sapiens tem outro lado: ela cria um
mundo de oportunidades a outros seres vivos.
Se você tem um móvel
de madeira, ele vai seguramente ser atacado por cupins. Basta deixar uma roupa
úmida no armário para os fungos começarem a proliferar. Lixo atrai ratos,
comida apodrece atacada por microrganismos e por aí vai. Desde que surgiram no
planeta há 3 bilhões de anos, os seres vivos, pressionados pela seleção
natural, evoluíram e aos poucos passaram a crescer por todo o planeta. Dos
mares foram à terra firme, da terra ao ar e, para cada minúsculo ambiente, o
processo evolutivo selecionou seres vivos capazes de ocupá-lo.
Se existe água
sulfurosa no fundo do mar, lá encontramos seres vivos capazes de utilizar
enxofre como fonte de energia. Altas montanhas, frestas nas rochas? Lá estarão
seres vivos. Fezes são transformadas em bolotas por besouros. Insetos colonizam
o interior de outros insetos, carrapatos sugam o sangue de mamíferos e morcegos
imitam carrapatos. Se é possível comer as poucas raízes presentes no deserto
seguramente vamos encontrar lá um rato que vive em túneis escuros consumindo
essas raízes. Se um trono cai na floresta, fungos vão lá destruí-lo.
Se você não enxuga
entre os dedos do pé, um fungo vai achar esse ambiente acolhedor. No mundo, o
difícil é encontrar ambientes desprovidos de seres vivos. E, quando os
cientistas encontram um lugar realmente morto, ficam desconfiados: será que não
existe mesmo nenhum ser vivo lá?
Não apenas os
seres vivos ocupam todos os nichos possíveis, mas há uma competição feroz entre
eles pela ocupação de cada um dos nichos. Leões e leopardos disputam as
gazelas, que disputam o capim com outros herbívoros. E espécies de gramíneas
disputam cada metro quadrado das savanas. Essa disputa não é diferente da que
ocorre entre bactérias que habitam nosso intestino ou fungos que querem dominar
o espaço úmido entre nossos dedos metidos em sapatos abafados.
O resultado dessa
disputa por espaço é que nenhum ambiente no planeta fica desprovido de vida por
muito tempo. A perda de espaço no planeta por um ser vivo é uma grande
oportunidade de expansão a outros seres vivos. É assim há 3 bilhões de anos, e
é isso que faz da vida um processo tão resiliente.
Como toda espécie
que tem sucesso, o ser humano tem criado grandes oportunidades a outras formas
de vida. Quando construímos cidades, matamos árvores, mas demos espaço a pulgas
e ratos que nos acompanham nos esgotos. Baratas também comemoram. Com o
surgimento da agricultura, não somente destruímos a vegetação nativa, mas demos
grande chance para o milho se espalhar. Cães, gatos, galinhas e bovinos não
seriam tão abundantes se não fosse por nossa ajuda. E aves enjauladas são um
ótimo ambiente para insetos e vírus.
Aglomerações
criaram ambiente propício a parasitas e vírus, que passaram a festejar a
oportunidade de viver no interior de seres humanos. O novo coronavírus está
nesse grupo. Uma floresta cortada e queimada é uma visão deprimente, mas um
novo ambiente propício para insetos e plantas.
É por isso que não
me preocupo com o destino da vida na Terra. O homem pode cortar, queimar,
derrubar, poluir e aprontar todas. Se ele continuar nesse ritmo, na verdade,
vai destruir o ambiente que ele mesmo precisa para viver: água potável,
atmosfera limpa, terras férteis, temperatura e umidade compatíveis com nossa
vida. E, se isso deixar de existir, ele vai desaparecer e aí sim vai criar um
mundo de oportunidades para seres vivos prontos para ocupar nosso espaço. Vai
demorar, mas espécies semelhantes às que estamos destruindo ressurgirão, assim
como a vida se recuperou depois de desastres como a queda do meteoro que
destruiu os dinossauros.
Desse ponto de
vista, o que o homem está fazendo não é acabar com a natureza - ele simplesmente
está em via de se suicidar, e quando isso ocorrer, ao longo de milhões de anos,
a biodiversidade do planeta vai se recuperar. Não quero que guepardos e baleias
desapareçam, mas nossa preocupação de longo prazo não deve ser com a vida na
Terra e sim com nosso lento suicídio.
O que o homem está
fazendo não é acabar com a natureza - ele está em via de se suicidar
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"Desse ponto de vista, o que o
homem está fazendo não é acabar com a natureza - ele simplesmente está em via
de se suicidar, e quando isso ocorrer, ao longo de milhões de anos, a
biodiversidade do planeta vai se recuperar. Não quero que guepardos e baleias desapareçam,
mas nossa preocupação de longo prazo não deve ser com a vida na Terra e sim com
nosso lento suicídio.", eis como Fernando Reinach termina seu excelente artigo.
Ao falar em "Desse ponto de vista, ....", Fernando Reinach faz-me
lembrar uma inesquecível fala de José Saramago
no documentário intitulado Janela da Alma,
reproduzida no próximo parágrafo.
"Eu ia
muito à ópera no São Carlos, um teatro de ópera de Lisboa. E ia sempre pro
galinheiro, lá pra parte de cima onde havia uma coroa. Quer dizer, o camarote
real começava embaixo, ia até lá em cima e fechava com uma coroa, uma coroa
dourada enorme. Coroa essa que vista do lado da platéia e do lado dos camarotes
era uma coroa magnífica, e do lado em que nós estávamos não era porque a coroa
só estava feita em três quartas partes e dentro era oca, e tinha teias de
aranha, e tinha pó. Isso foi uma lição que eu nunca esqueci; nunca esqueci essa
lição: Para conhecer as coisas há que dar-lhes
a volta; dar-lhes a volta toda.".
"Para conhecer as coisas há que dar-lhes a
volta; dar-lhes a volta toda.". Em outras palavras: é preciso olhá-las de vários pontos de
vista, pois como defende a postagem publicada em 19 de dezembro de 2011, "Todo ponto de vista é a vista de um ponto".
Será que a prática de ler com a intenção de conhecer novos pontos de vista, seguida de reflexões sobre o que se leu (o que poderá inclusive levar-nos a novos pontos de vista) é uma boa
prática no sentido de conhecer as coisas?
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