Continuação de segunda-feira
O senhor é
reitor da Unipaz, que tem inclusive uma unidade no RS. Como é o trabalho
desenvolvido pela instituição, e no que ele pode contribuir para uma mudança no
cenário atual?
A Unipaz é
a terceira Universidade da Paz criada no mundo, após a de Tóquio e a de Costa
Rica. Com um diferencial: partimos do princípio de que não é com o paradigma
que inventou o problema que iremos resolvê-lo. A palavra hebraica para a paz,
Shalom, brota da mesma raiz de Shalem, que significa inteireza. Então, há mais
de três décadas, desenvolvemos uma educação integral, a partir da concepção de
uma ecologia inclusiva, individual, social e ambiental, suportada na abordagem
transdisciplinar holística. Compreendemos que tudo o que é inteiro é belo, é
saudável, é pacífico e é sagrado. A transdisciplinaridade significa o diálogo
da ciência com a filosofia, a arte e a tradição espiritual. Em outras palavras,
a aliança da ciência com a consciência. Holística deriva do grego Hólon, que
implica a integração do todo e da parte, que possibilita uma visão global para
uma ação lúcida e consciente local.
Todos os
nossos programas e projetos encontram suporte numa estratégia de integração
dialógica, dirigida ao público em geral, para complementar o que nossas
academias convencionais, centradas no paradigma do racionalismo científico —
necessário, porém esgotado — não são capazes de promover por estarem
circunscritas à razão crítica e empírica.
Por quê?
Não é
difícil constatar que a razão nem sempre tem razão quando lhe faltam os ditames
do coração. A partir de nosso projeto mais consagrado, implementado em nossa
matriz de Brasília a partir de 1989, a Formação Holística de Base, que visa
integrar as quatro funções psíquicas pesquisadas por Jung — o pensamento, o
sentimento, a sensação e a intuição —, para engendrar uma quinta função, a do
Self, inteligência da inteireza psíquica, a Unipaz irradiou-se para
praticamente todo o Brasil e também para a Argentina, Portugal, França e Bélgica.
Estamos colaborando concreta e significativamente com a Unesco que, desde 1992,
propõe os quatro pilares de uma nova educação transdisciplinar: educar para
conhecer, para fazer, para conviver e para Ser.
Por outro
lado, partimos também do princípio de que paz é fluxo, é processo, é movimento.
Como afirma o I Ching, o Livro da Mutação da tradição chinesa, o oposto de paz
é estagnação. Onde estivermos estagnados, no corpo, na alma e na consciência,
ali teremos perdido a paz, e a saúde. Uma boa metáfora para indicar a paz e o
seu oposto, é a da água corrente em contraposição à água estagnada. Paz é
mutirão, é bom combate, é a conquista do fluxo de uma inteireza sempre em
curso, em permanente marcha.
Entre os
conceitos que o senhor trabalha nos seus artigos está o de normose, ou
patologia da normalidade. Em que consiste essa patologia?
Eis o
grande obstáculo para nossas boas intenções de paz, de justiça e de saúde
integral: a normose. Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e eu desenvolvemos esse
conceito no livro Normose,
a Patologia da Normalidade, para nos referirmos a uma anomalia da
mediocridade, de uma normalidade doentia. Na minha visão, há dois grandes
fundamentos da normose: o sistêmico e o evolutivo. O axioma sistêmico implica
que a normose nem sempre existiu e nem sempre existirá. Ela surge de uma
degeneração sistêmica: quando no meio no qual vivemos e convivemos predomina o
egocentrismo, a violência, a falta de visão, de escuta e de cuidado, quando a
corrupção impera. Nesse caso, ser normal é adaptar-se a um sistema
desequilibrado, desumano e patológico. É o que transcorre claramente nos tempos
atuais.
Então, a
pessoa saudável é a desajustada que sofre em algum grau de uma indignação
lúcida, de um desespero sóbrio, e faz alguma coisa para mudar o contexto no
qual habita. Alguns dizem que, do ponto de vista da consciência, vivemos a
idade de ferro: a do esquecimento da integridade e da grandeza do projeto
humano. Nesse sentido o normótico é alguém que faz pequenas as grandes coisas,
que sempre está encapsulado na bolha do ego, que se expressa por
corporativismos mesquinhos e uma irresponsabilidade crônica frente ao bem
comum. Enquanto a pessoa autenticamente saudável é capaz de fazer grandes as
pequenas coisas, introduzindo nas suas ações a consciência, a corresponsabilidade,
o respeito e o amor compassivo.
Poderia
citar exemplos de como a normose se manifesta?
Uma
normose muito estridente que testemunhamos é a da corrupção. As pessoas
envolvidas dizem: "Mas todo mundo faz assim". Eis uma descrição
precisa dessa anomalia da normalidade. Gosto de confiar que estamos
presenciando, no Brasil, o início de um processo de cura dessa normose perversa
e degenerativa para o corpo social. As pessoas despertam, ocupam as ruas e
bradam que não suportam mais tanta insanidade, que quem a comete não as
representam. E mudanças acontecem, bem sabemos. Longe de mim a ingenuidade de
crer que a corrupção desaparecerá; ela deixará de ser normose para ser um
crime, como já ocorreu com a normose da escravidão que era aceita
dominantemente nas instituições em geral. Se alguém pratica a escravidão hoje,
sabe que se trata de um crime passível de punição severa. Simples assim.
E o outro
fundamento da normose?
O outro
fundamento é o evolutivo: o normótico é alguém que sofre de uma estagnação no
seu desenvolvimento humano, por falta de investimento no potencial de saúde e
de plenitude inerente a todo ser humano, nas dimensões não apenas material, mas
também psíquica e consciencial. Como afirmava Confúcio há cerca de 2500 anos: o
que nos distingue de outras espécies é o inacabamento, a incompletude. É o que
traduzo quando afirmo que não nascemos humanos, nós nos fazemos humanos
investindo na semente de uma plenitude possível em nosso interior, e fazendo
render os talentos que o Mistério nos confiou sob medida.
Outro
conceito interessante dos seus escritos é o "complexo de Jonas",
sobre o temor de abandonar uma situação confortável e apostar na mudança. Como
esse complexo se manifesta, e como pode ser combatido?
Esse
complexo refere-se particularmente à questão evolutiva inerente à normose.
Jonas é um arquétipo que consta do Velho Testamento que, em hebraico, significa
pomba das asas podadas. Foi Abraham Maslow que denominou de complexo de Jonas a
um tipo de resistência que impede o processo de pleno desenvolvimento e de
autorrealização individual. Jean-Yves Leloup desenvolveu essa perspectiva no
livro Caminhos da Realização. Eis uma breve síntese deste interessante e sábio
mito bíblico: Jonas foi despertado com uma voz que lhe convocou a ir para
Nínive, a grande cidade dos inimigos dos hebreus, para converter esse povo que
tinha se desviado das trilhas da sabedoria e do amor, que se entregava a todos
os tipos de iniquidades, de injustiças e de desumanidades — o que ilustra a
grande atualidade desse texto simbólico. Com medo da desafiadora tarefa, ele
foge para Társis.
Então
surge uma tempestade, que simboliza que quando fugimos da senda da vocação,
atraímos sintomas e infortúnios não só para nós, mas também para os que estão
ao nosso lado. Jonas é despertado pelo capitão do navio, que representa a
consciência humana. Ele reconhece que está fugindo da sua missão, a sorte é
tirada, e finalmente Jonas é jogado nas águas do oceano e engolido pelo grande
peixe, onde permanece até converter-se à sua tarefa profética. Assim, Jonas
representa o medo normótico da vastidão do potencial humano no interior de cada
um de nós, a força de resistência frente à tarefa imperativa do florescimento
humano. Necessitamos transcender os trilhos normóticos, confortáveis e
previsíveis, para trilhas que não existem, e que serão inventadas pelos nossos
próprios pés nos caminhos que tem coração.
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Que
entrevista densa! Quantos ensinamentos compartilhados por Roberto Crema! Que tal usá-los para
mudar o nosso olhar?
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