segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Mudar o mundo é mudar o olhar (I)

"Mudar e mudar para melhor são duas coisas diferentes."
(Provérbio alemão)

A quantidade de vezes em que ouvi que esta pandemia mudará o mundo faz-me lembrar de uma instigante entrevista de Roberto Crema publicada em 16 de abril de 2018 no site do jornal Pioneiro, situado em Caxias do Sul, cidade em que estava prevista para o dia 5 de maio a realização do 2º Congresso Nacional de Espiritualidade com previsão da presença de Crema como um dos palestrantes. Em reportagem intitulada "'Mudar o mundo é mudar o olhar', diz reitor da Unipaz, que estará em Caxias em maio", Maristela Scheuer Deves publica a esclarecedora entrevista. Considerando o tamanho da reportagem e o fôlego de grande parte dos leitores, ela será espalhada em duas postagens.
Tendo interagido com Roberto Crema em alguns seminários que fiz na Unipaz nos anos finais do milênio passado, tenho sobre ele a seguinte opinião: trata-se de um autêntico ser humano e um dos indivíduos mais sábios que encontrei nesta passagem por esta dimensão.
"Mudar o mundo é mudar o olhar", diz reitor da Unipaz, que estará em Caxias em maio
Roberto Crema será um dos palestrantes de congresso sobre espiritualidade
Crema defende que nem sempre o que parece normal é o ideal: estaríamos vivendo uma "patologia da normalidade"
Radicalização nas redes sociais. Falta de diálogo. Corrupção. Tudo isso, por vezes, é tido como algo "normal". Mas não deveria ser, defende Roberto Crema, reitor da Universidade Internacional da Paz (Unipaz). Autor e coautor de mais de 30 livros, Crema, que estará em Caxias do Sul no próximo dia 5 de maio como um dos palestrantes do 2º Congresso Nacional de Espiritualidade, explica que na verdade o que temos aí é uma patologia da normalidade, um desequilíbrio que ele denomina normose.
– Quando no meio no qual vivemos predominam o egocentrismo, a violência, a falta de visão, de escuta e de cuidado, ser normal é adaptar-se a um sistema desequilibrado, desumano e patológico. É o que transcorre nos tempos atuais – diz.
Com formação em Ciências Sociais/Antropologia e em Psicologia, atua há três décadas na Unipaz, que transcende os conceitos de uma instituição tradicional — o foco dessa universidade não se circunscreve às ciências e à razão, e sim busca o diálogo da ciência com a filosofia, a arte e a tradição espiritual.
Diálogo, aliás, é uma palavra-chave para o mundo atual, acredita Crema, que, em Caxias, falará sobre o tema Novos Olhares para a Construção de um Novo Amanhã.
Confira a entrevista que ele concedeu por e-mail.
Pioneiro: No congresso, o senhor vai abordar o tema Novos Olhares para a Construção de um Novo Amanhã. Como seria esse novo amanhã, e quais os olhares necessários para alcançá-lo?
Roberto Crema: Como afirma o poeta Fernando Pessoa, "A vida é o que fazemos dela. Não há viagens, há viajantes. O que vemos não é o que vemos senão o que somos". Mudar o mundo é mudar o olhar. O amanhã é uma construção do agora. O que estamos pensando, falando e fazendo hoje é o que seremos amanhã. Infelizmente, no contexto atual, nosso olhar é educado e modelado para a fragmentação, a dissociação, a desvinculação. Se o apego, identificação ao que é impermanente, é a raiz comum do sofrimento humano, causador do medo e do estresse cotidianos, é interessante perceber que todo apego advém da fantasia da separatividade, de um olhar estreito que separa e exclui. Essa fantasia ilusória encontra-se na fonte das angústias, da competição e exclusão social, da destruição dos ecossistemas.
Qual seria a solução?
Neste sentido, talvez o que mais necessitamos é de um choque de comunhão, o que é inerente a uma espiritualidade autêntica, para mudar nossa visão. Afirmo que, na essência, espiritualidade é amor e, na prática, é solidariedade e serviço ao próximo — o que brota naturalmente de uma consciência de pertencimento e não separatividade. Sobre isso, Einstein mencionava uma espiritualidade cósmica e Capra escreveu um livro que vale pelo seu título: Pertencendo ao Universo. Para que seja possível a sobrevivência com dignidade das nossas novas gerações, é necessária a aliança da ciência com a consciência. Assim a nossa sofisticada tecnologia terá uma orientação e um sentido ético, fundamentado nos valores perenes da nossa espécie.
Em tempos de polarizações e radicalizações, tanto na política quanto em outros setores, é possível uma união da sociedade em prol da construção desse futuro?
Há mais de três décadas afirmo que ninguém transforma ninguém e que ninguém se transforma sozinho; nos transformamos no encontro. De fato, os sintomas crescentes e intensificados de polarizações irracionais e de extremismos agressivos denotam um momento crítico da nossa família humana que pode ser traduzido pela falta de escuta, com base no desencontro crônico com os outros, consigo mesmo, com a natureza e com o mistério que sempre está presente. Para escutar a outra pessoa é necessário que, em certo grau, silenciemos nossa mente, nossos conceitos e preconceitos, para que possa haver um diálogo criativo e renovador. É triste constatar que na sociedade atual brasileira, ocorre um acirramento de julgamentos passionais, de rotulações simplistas, de uma compartimentalização alienada muito perniciosa de nós contra os outros, que representa o naufrágio do diálogo e da compreensão, ou seja, o fracasso do encontro. Diálogo vem da mesma raiz do latim dies, que significa deus — talvez o divino na forma do encontro.
E por que ocorre essa falta de diálogo?
É importante considerar que o desencontro primeiro acontece no nosso interior, entre nossos diversos departamentos psíquicos — razão contra coração, sensação em luta com a intuição, efetividade em atrito com afetividade, a inteligência do masculino em combate com a do feminino —, o que acaba sendo projetado, de forma maciça e intensificada, no palco das relações sociais. Sabemos bem, no universo da psicologia profunda, que o que criticamos e julgamos nos outros é, sobretudo, o que desconhecemos e excluímos em nós mesmos. A harmonia individual encontra-se na base da social e ambiental. Necessitamos criar uma massa crítica de consciência que se expanda do interior para o exterior. Felizmente, assim como o ódio e a intolerância, a paz e o equilíbrio são também contagiantes.
Quais são, aliás, os principais problemas que o senhor identifica na sociedade atual?
Os problemas antes de serem interpessoais são intrapessoais. Cada um de nós simboliza um pedacinho de praça pública. A transformação da sociedade tem início na autotransformação, quando somos capazes de conquistar um pouco de ordem, de equilíbrio, de integridade e de amor no microcosmo que nos foi ofertado pelo Grande Cosmo. É o que afirmavam Carl Gustav Jung, Mahatma Gandhi, Krishnamurti e muitos outros sábios do Ocidente e do Oriente. O ser humano tem sido o problema, e pode ser também a solução.
Termina na próxima sexta-feira

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