"Mudar e mudar para melhor são duas coisas diferentes."
(Provérbio alemão)
A quantidade de vezes em que ouvi que esta
pandemia mudará o mundo faz-me lembrar de uma instigante entrevista de Roberto
Crema publicada em 16 de abril de 2018 no site do jornal Pioneiro, situado em Caxias do Sul, cidade em que estava prevista para
o dia 5 de maio a realização do 2º Congresso Nacional de Espiritualidade com
previsão da presença de Crema como um dos palestrantes. Em reportagem intitulada "'Mudar o mundo é mudar o olhar', diz reitor da Unipaz, que estará em Caxias em maio", Maristela Scheuer
Deves publica a esclarecedora entrevista.
Considerando o
tamanho da reportagem e o fôlego de grande parte dos leitores, ela será
espalhada em duas postagens.
Tendo interagido com Roberto Crema em alguns
seminários que fiz na Unipaz nos anos finais do milênio passado, tenho sobre
ele a seguinte opinião: trata-se de um autêntico ser humano e um dos indivíduos
mais sábios que encontrei nesta passagem por esta dimensão.
"Mudar o mundo é mudar
o olhar", diz reitor da Unipaz, que estará em Caxias em maio
Roberto Crema será um dos
palestrantes de congresso sobre espiritualidade
Crema defende que nem
sempre o que parece normal é o ideal: estaríamos vivendo uma "patologia da
normalidade"
Radicalização
nas redes sociais. Falta de diálogo. Corrupção. Tudo isso, por vezes, é tido
como algo "normal". Mas não deveria ser, defende Roberto Crema,
reitor da Universidade Internacional da Paz (Unipaz). Autor e coautor de mais
de 30 livros, Crema, que estará em Caxias do Sul no próximo dia 5 de maio como
um dos palestrantes do 2º Congresso Nacional de Espiritualidade, explica que na verdade o que temos aí é uma patologia
da normalidade, um desequilíbrio que ele denomina normose.
– Quando
no meio no qual vivemos predominam o egocentrismo, a violência, a falta de
visão, de escuta e de cuidado, ser normal é adaptar-se a um sistema
desequilibrado, desumano e patológico. É o que transcorre nos tempos atuais –
diz.
Com
formação em Ciências Sociais/Antropologia e em Psicologia, atua há três décadas
na Unipaz, que transcende os conceitos de uma instituição tradicional — o foco
dessa universidade não se circunscreve às ciências e à razão, e sim busca o
diálogo da ciência com a filosofia, a arte e a tradição espiritual.
Diálogo,
aliás, é uma palavra-chave para o mundo atual, acredita Crema, que, em Caxias,
falará sobre o tema Novos Olhares para a Construção de um Novo Amanhã.
Confira a
entrevista que ele concedeu por e-mail.
Pioneiro:
No congresso, o senhor vai abordar o tema Novos Olhares para a Construção de um
Novo Amanhã. Como seria esse novo amanhã, e quais os olhares necessários para
alcançá-lo?
Roberto
Crema:
Como afirma o poeta Fernando Pessoa, "A
vida é o que fazemos dela. Não há viagens, há viajantes. O que vemos não é o
que vemos senão o que somos". Mudar o mundo é mudar o olhar. O amanhã é
uma construção do agora. O que estamos pensando, falando e fazendo hoje é o que
seremos amanhã. Infelizmente, no contexto atual, nosso olhar é educado e
modelado para a fragmentação, a dissociação, a desvinculação. Se o apego,
identificação ao que é impermanente, é a raiz comum do sofrimento humano,
causador do medo e do estresse cotidianos, é interessante perceber que todo
apego advém da fantasia da separatividade, de um olhar estreito que separa e
exclui. Essa fantasia ilusória encontra-se na fonte das angústias, da
competição e exclusão social, da destruição dos ecossistemas.
Qual seria
a solução?
Neste
sentido, talvez o que mais necessitamos é de um choque de comunhão, o que é
inerente a uma espiritualidade autêntica, para mudar nossa visão. Afirmo que,
na essência, espiritualidade é amor e, na prática, é solidariedade e serviço ao
próximo — o que brota naturalmente de uma consciência de pertencimento e não
separatividade. Sobre isso, Einstein mencionava uma espiritualidade cósmica e
Capra escreveu um livro que vale pelo seu título: Pertencendo ao Universo. Para que seja
possível a sobrevivência com dignidade das nossas novas gerações, é necessária
a aliança da ciência com a consciência. Assim a nossa sofisticada tecnologia
terá uma orientação e um sentido ético, fundamentado nos valores perenes da
nossa espécie.
Em tempos
de polarizações e radicalizações, tanto na política quanto em outros setores, é
possível uma união da sociedade em prol da construção desse futuro?
Há mais de
três décadas afirmo que ninguém transforma ninguém e que ninguém se transforma
sozinho; nos transformamos no encontro. De fato, os sintomas crescentes e
intensificados de polarizações irracionais e de extremismos agressivos denotam
um momento crítico da nossa família humana que pode ser traduzido pela falta de
escuta, com base no desencontro crônico com os outros, consigo mesmo, com a
natureza e com o mistério que sempre está presente. Para escutar a outra pessoa
é necessário que, em certo grau, silenciemos nossa mente, nossos conceitos e
preconceitos, para que possa haver um diálogo criativo e renovador. É triste
constatar que na sociedade atual brasileira, ocorre um acirramento de
julgamentos passionais, de rotulações simplistas, de uma compartimentalização
alienada muito perniciosa de nós contra os outros, que representa o naufrágio
do diálogo e da compreensão, ou seja, o fracasso do encontro. Diálogo vem da
mesma raiz do latim dies,
que significa deus — talvez o divino na forma do encontro.
E por que
ocorre essa falta de diálogo?
É
importante considerar que o desencontro primeiro acontece no nosso interior,
entre nossos diversos departamentos psíquicos — razão contra coração, sensação
em luta com a intuição, efetividade em atrito com afetividade, a inteligência
do masculino em combate com a do feminino —, o que acaba sendo projetado, de
forma maciça e intensificada, no palco das relações sociais. Sabemos bem, no
universo da psicologia profunda, que o que criticamos e julgamos nos outros é,
sobretudo, o que desconhecemos e excluímos em nós mesmos. A harmonia individual
encontra-se na base da social e ambiental. Necessitamos criar uma massa crítica
de consciência que se expanda do interior para o exterior. Felizmente, assim
como o ódio e a intolerância, a paz e o equilíbrio são também contagiantes.
Quais são,
aliás, os principais problemas que o senhor identifica na sociedade atual?
Os
problemas antes de serem interpessoais são intrapessoais. Cada um de nós
simboliza um pedacinho de praça pública. A transformação da sociedade tem
início na autotransformação, quando somos capazes de conquistar um pouco de
ordem, de equilíbrio, de integridade e de amor no microcosmo que nos foi
ofertado pelo Grande Cosmo. É o que afirmavam Carl Gustav Jung, Mahatma Gandhi,
Krishnamurti e muitos outros sábios do Ocidente e do Oriente. O ser humano tem
sido o problema, e pode ser também a solução.
Termina na próxima sexta-feira
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