"Tempos difíceis estão por vir e, em breve,
teremos que escolher entre o que é certo e o que é fácil."
(Alvo Dumbledore, o mago barbudo dos filmes de Harry
Potter)
Eis
que o "em breve" da epígrafe já pode ser
retirado, pois os tempos difíceis que estavam por vir já vieram.
"Tempos difíceis servem para algumas coisas, entre elas grandes aprendizados e reflexões incômodas.", diz Pedro Aihara.
Quem
é Pedro Aihara? É um bombeiro militar,
mestre em Direitos Humanos, especialista em Gestão e Prevenção de desastres,
professor e palestrante. Um bombeiro militar que atuou em crises como as de
Brumadinho, Mariana, Janaúba, entre outras. Um mestre em Direitos Humanos que
teve um belíssimo texto publicado na edição de 02 de abril de 2020 do jornal EL PAÍS. Um texto imperdível que eu não
poderia deixar de espalhar por este blog.
Coronavírus escancarou a
conta do nosso egoísmo
Se antes bastava se cercar no
próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar para mim,
precisa funcionar para todo mundo
No último dia 22,
no meio da pandemia de coronavírus, uma senhora de 90 anos faleceu na Bélgica
após ter recusado o ventilador mecânico para ceder o equipamento em favor de
alguém mais jovem. "Guarde para alguém mais jovem. Eu vivi uma boa vida"
foi o que ela disse dias antes de falecer.
Não é
hidroxicloroquina ou cloroquina que irão nos salvar dessa vez.
O inimigo dessa
vez é invisível e implacável: fez os líderes das grandes nações parecerem
crianças assustadas, fez o Papa sozinho e cabisbaixo perdoar os nossos pecados,
fez judeus e muçulmanos rezarem juntos.
As nossas
tradicionais armaduras falharam. De nada adiantou o poderio militar nuclear dos
mísseis ou os inalcançáveis imóveis de luxo do Central Park: o gramado agora
está cheio de tendas de hospital de campanha. Nossos planos de saúde caros não
foram suficientes para tirar o receio da falta de equipamentos de nossas
cabeças e tampouco nossos celulares e televisões sofisticados foram capazes de
entreter no meio dessa solidão sentida e vivenciada por todos.
Sentimo-nos
amedrontados, perdidos, sozinhos. E aí, diante de algo que não sabemos como nem
quando vai acabar, fomos obrigados a ajoelhar. E para ajoelhar, todos nós fomos
obrigados a aprender que é necessário sair dos nossos tronos, das nossas
bolhas, das nossas coberturas, das nossas realidades e aproximar a cabeça do
chão, frágeis e despidos.
Quando a gente se
abaixou, acabamos esbarrando as cabeças uns nos outros e o milagre começou a
acontecer. Começamos a perceber que a doença que mata a minha mãe também mata a
mãe de quem mora do outro lado do mundo. Vimos que o mesmo problema que quebra
o meu negócio desemprega o meu funcionário mais simples. Passamos a enxergar a
importância de profissões que muitas vezes considerávamos pouco importantes ou
dispensáveis. Constatamos que o medicamento que me falta também faltará para
quem mora na favela. Sentimos que a mesma solidão que se abate sobre mim
angustia o outro que tem nome, cor, origem e religião diferentes dos meus.
Despedaçados
perante nossos medos mais ocultos, enfim fomos obrigados a admitir aquilo que
já sabíamos, mas não queríamos aceitar: somos todos iguais. No final das
contas, após todo o dinheiro, todo o status, todos os privilégios,
encolhemo-nos de medo das mesmas coisas e sentimos uma compaixão comum diante
dos números que crescem, seja na Itália, nos Estados Unidos ou na nossa cidade.
Se antes bastava
se cercar no próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar
para mim, precisa funcionar para todo mundo. Para que eu seja protegido, preciso
proteger os outros. A conta do nosso egoísmo chegou, cara e sem nenhum
desconto.
Mas com o milagre,
percebemos que essa conta pode ser paga de outra forma. Dito e repetido, não
são hidroxicloroquina ou cloroquina que encerrarão esses tempos obscuros. Já
descobrimos a cura e ela se chama amor. Pode parecer piegas, não é mesmo? Mas a
verdade é que chegamos no ponto decisivo, na curva da inflexão na qual ou nós
mudamos a maneira de convivermos enquanto sociedade ou estaremos sempre à mercê
de nosso próprio egoísmo disfarçado de vírus, guerras, crises econômicas ou governantes
inescrupulosos.
Para muito além do
desespero e caos que estafam a nossa mente, o Brasil que se apresenta agora é o
Brasil dos profissionais de saúde exaustos que se revezam incansavelmente para
salvar pessoas que nem conhecem. É o Brasil de empresários assumindo prejuízos
para não demitir seus funcionários. É o Brasil de pessoas parando suas
atividades para garantir o bem-estar de outros. É o Brasil dos entregadores, garis,
caminhoneiros e caixas de supermercados. É o Brasil de pessoas que doam o pouco
que tem para que quem tem menos ainda possa ter algo. É o país do amor ao
próximo e de gente que se preocupa com gente, de forma real e para além de
qualquer discurso vazio e hipócrita.
Esse país de gente
solidária, trabalhadora e resiliente pode afinal ser o gigante que acordou,
ainda que tantos discursos e personagens irresponsáveis tentem macular nosso
foco. A reflexão sobre para qual lado da história iremos (e optaremos por)
estar nunca foi tão necessária.
Tempos difíceis
servem para algumas coisas, entre elas grandes aprendizados e reflexões
incômodas. Quando aquela senhora heroína na Bélgica cedeu seu equipamento, a
afirmação dela pode e deve ser repetida aqui: "guarde para alguém mais jovem".
E dessa vez, não é sobre o equipamento. É sobre o legado e a história que
estamos construindo nesse momento decisivo. É a hora de abaixarmos as nossas
bandeiras ideológicas e substituí-las por empatia, bom-senso e álcool em gel.
Fiquemos em casa e ajudemos uns aos outros, irrestritamente. Construamos,
unidos, nesse momento difícil, uma nação melhor e mais solidária, para que
possamos deixar, após a crise, um país melhor "guardado para os mais jovens".
É essa a real cura para o temido vírus.
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"Tempos difíceis servem para
algumas coisas, entre elas grandes aprendizados e reflexões incômodas.", diz Pedro Aihara. Possibilitar grandes
aprendizados e provocar reflexões incômodas, eis duas coisas para as quais o
texto de Pedro Aihara serve.
Segue o endereço onde pode ser encontrado o
original do texto.
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-04-02/coronavirus-escancarou-a-conta-do-nosso-egoismo.html?ssm=whatsapp&fbclid=IwAR2zSdQWG-C1114h6sfLiETFuOakuO8BmCOa4imC9eUcBP9C_GqTgw9U-7M
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