"Guarde para alguém mais jovem. Eu vivi uma boa vida", disse uma senhora de 90 anos, após ter recusado o ventilador mecânico para ceder o equipamento em favor de alguém mais jovem, dias antes de falecer na Bélgica, no último dia 22, no meio da pandemia de coronavírus.
"Tempos difíceis servem para algumas coisas, entre
elas grandes aprendizados e reflexões incômodas.",
diz Pedro Aihara em seu belíssimo texto espalhado pela postagem anterior.
Reflexões incômodas que, no meu caso, começam com a leitura do primeiro
parágrafo de seu texto. Parágrafo que, reescrito por mim usando as palavras do autor em
outra ordem, considero ideal para iniciar estas reflexões. Por quê? Porque diante
da conta do nosso egoísmo escancarada, creio que tomar conhecimento de que
existem pessoas que conseguem livrar-se desse mal - que leva o indivíduo a
considerar apenas seus interesses e necessidades e a desprezar as necessidades
alheias - seja algo capaz de provocar reflexões que, algum dia, conseguirão despertar
em nós a vontade de juntarmo-nos a tais pessoas.
E ao ler o referido
parágrafo, a primeira coisa que me ocorreu foi imaginar como pessoas dotadas de
sensibilidade se comportariam na condição de espectadores desse exemplo de
desprendimento dado por aquela nobre senhora. "Eu vivi uma boa vida", disse ela. Ela teve uma boa morte, digo eu, associando
sua morte a um conhecido episódio da morte de Albert Einstein.
"Ao ser comunicado que, em decorrência da ruptura de um aneurisma da aorta abdominal, fazia-se necessária nova cirurgia, com urgência, complicada e imprevisível, em face de sua idade, Einstein recusou a cirurgia pronunciando as seguintes palavras: 'É de mau gosto ficar prolongando a vida artificialmente. Eu fiz a minha parte, é hora de partir e vou fazê-lo com elegância.'. Na manhã do dia seguinte desencarnou, aos setenta e seis anos, após uma existência dedicada à ciência, trabalhando sempre, até o último suspiro."
"Eu fiz a
minha parte, é hora de partir e vou fazê-lo com elegância.", disse
Einstein. "Eu vivi uma boa vida", disse a nobre senhora. "Ela
fez a sua parte, era hora de partir e o fez com dignidade", digo eu, à luz
do seu gesto de extremo altruísmo. Que espírito evoluído! É a existência de
espíritos com esse grau de evolução que me possibilita manter a esperança de
que, algum dia, a quantidade desses espíritos seja suficiente para transformar
a autodenominada espécie inteligente em outra espécie: em espécie humana. Ter
uma quantidade suficiente para transformar uma espécie, eis a ideia passada
pelo Fenômeno
do Centésimo Macaco.
"De pernas pro ar – A escola do
mundo ao avesso, eis o título de
um extraordinário livro de Eduardo Galeano (1940 – 2015) publicado em 1999. Por
que cito-o nesta postagem? Porque serve para explicar o seguinte trecho do
texto de Pedro Aihara.
"Passamos a enxergar a importância de profissões que muitas vezes considerávamos pouco importantes ou dispensáveis. (...) É o Brasil dos entregadores, garis, caminhoneiros e caixas de supermercados."
"É o Brasil dos entregadores, garis, caminhoneiros e
caixas de supermercados". "Profissionais que considerávamos pouco importantes
ou dispensáveis" que passamos a enxergar como "essenciais".
De pouco importantes ou dispensáveis a essenciais! Que mudança sinistra, hein! Será que faz sentido afirmar que o coronavírus evidenciou
que vivemos em um mundo ao avesso?
"É o Brasil dos profissionais de saúde exaustos que se revezam incansavelmente para salvar pessoas que nem conhecem."
Sim, é o Brasil dos profissionais exaustos que se revezam incansavelmente
para salvar pessoas que nem conhecem, embora
sejam também enxergados como pouco importantes ou dispensáveis. Como assim?
Vocês concordam que profissionais de uma área que teve sua verba congelada por
vinte anos são profissionais enxergados como pouco importantes ou dispensáveis?
"Profissionais de saúde exaustos que se revezam
incansavelmente para salvar pessoas que nem conhecem", inclusive algumas que jamais atingirão à
exaustão, pois sua jornada de "trabalho" restringe-se a três dias por
semana, tempo suficiente para aprovarem o congelamento da verba da saúde e da
educação por vinte anos. "Profissionais" que se revezam sem cansaço
algum para - por meio de leis - matarem pessoas que nem conhecem. É ou não um
mundo ao avesso?
"É o Brasil de empresários assumindo prejuízos para não demitir seus funcionários."
Mas é também o
Brasil de empresários que por terem financiado uma campanha eleitoral pressionam
o financiado para que (contrariando tudo o que o restante do mundo enxerga como
o correto a fazer em uma pandemia) faça tudo para induzir pessoas –
principalmente as essenciais - a partirem para o enfrentamento de uma pandemia que
elas não têm condições de enfrentar. Será que faz sentido afirmar que um mundo onde
os essenciais são os primeiros a morrer é um mundo ao avesso?
"É o Brasil de pessoas que doam o pouco que tem para que quem tem menos ainda possa ter algo. É o país do amor ao próximo e de gente que se preocupa com gente, de forma real e para além de qualquer discurso vazio e hipócrita. Esse país de gente solidária, trabalhadora e resiliente pode afinal ser o gigante que acordou, ainda que tantos discursos e personagens irresponsáveis tentem macular nosso foco. A reflexão sobre para qual lado da história iremos (e optaremos por) estar nunca foi tão necessária."
Sim, "A reflexão sobre para qual lado da história iremos
(e optaremos por) estar nunca foi tão necessária.",
pois este é o momento que faz vir à tona o melhor e o pior de cada indivíduo. E
que evidencia qual dos dois prevalece: o melhor ou o pior.
Se antes bastava se cercar no próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar para mim, precisa funcionar para todo mundo. Para que eu seja protegido, preciso proteger os outros. A conta do nosso egoísmo chegou, cara e sem nenhum desconto.
E ao dizer que "Para
que eu seja protegido, preciso proteger os outros.", Pedro Aihara faz-me lembrar Ubuntu. O que é Ubuntu? É uma palavra-conceito que, nas
línguas africanas zulu e xhosa, significa "Sou quem sou por aquilo que
todos somos". A postagem publicada em 17 de novembro de 2015 é intitulada Ubuntu.
"Dito e repetido, não são hidroxicloroquina ou cloroquina que encerrarão esses tempos obscuros. Já descobrimos a cura e ela se chama amor. Pode parecer piegas, não é mesmo? Mas a verdade é que chegamos no ponto decisivo, na curva da inflexão na qual ou nós mudamos a maneira de convivermos enquanto sociedade ou estaremos sempre à mercê de nosso próprio egoísmo disfarçado de vírus, guerras, crises econômicas ou governantes inescrupulosos."
Sim, neste momento
em que tanto se fala em curva, "chegamos ao ponto decisivo, na
curva da inflexão na qual ou nós mudamos a maneira de convivermos enquanto
sociedade ou estaremos sempre à mercê de nosso próprio egoísmo disfarçado de
vírus, guerras, crises econômicas ou governantes inescrupulosos." De vírus cada vez mais letais enquanto não
conseguirmos conviver segundo o seguinte significado de sociedade obtido em https://www.significados.com.br/. "Sociedade é um conjunto
de seres que convivem de forma organizada. A
palavra vem do Latim societas, que
significa "associação amistosa com outros" (os negritos
vieram na busca).
"Quando aquela senhora heroína na Bélgica cedeu seu equipamento, a afirmação dela pode e deve ser repetida aqui: 'guarde para alguém mais jovem'. E dessa vez, não é sobre o equipamento. É sobre o legado e a história que estamos construindo nesse momento decisivo. Construamos, unidos, nesse momento difícil, uma nação melhor e mais solidária, para que possamos deixar, após a crise, um país melhor 'guardado para os mais jovens'. É essa a real cura para o temido vírus."
"Tempos difíceis servem para
algumas coisas, entre elas grandes aprendizados e reflexões incômodas.", diz Pedro Aihara. Reflexões
incômodas que levem a aprendizados; aprendizados que levem à revisão de
conceitos e à inversão de valores. Afinal, como disse Eduardo Galeano este é um
mundo ao avesso. Portanto, creio que além de escancarar a conta do
nosso egoísmo o coronavírus tenha outra função: evidenciando a
imprescindibilidade da inversão de valores, instigar-nos a buscar a face
correta deste mundo.
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