Certa vez
perguntaram a Confúcio o que faria em primeiro lugar se tivesse de administrar
um país.
- Seria evidentemente corrigir a linguagem, respondeu
ele.
Surpresos, seus interlocutores indagaram por que. O
Mestre respondeu-lhes:
- Se a linguagem não for correta, o que se diz não é o
que se pretende dizer; se o que se diz não é o que se pretende dizer, o que
deve ser feito deixa de ser feito; se o que deve ser feito deixa de ser feito,
a moral e as artes decaem, a Justiça se desbarata; se a Justiça se desbarata,
as pessoas ficam entregues ao desamparo e a confusão. Não pode, portanto, haver
arbitrariedade no que se diz. É isso que importa, acima de tudo.
O que me fez lembrar a passagem
atribuída à vida de Confúcio? A leitura de uma crônica publicada na edição de
23 de fevereiro de 2020 da Revista Ela.
Uma crônica em que Luana Génot focaliza um exemplo de uso incorreto da
linguagem. Qual é o mau exemplo? A arraigada, e incorreta, prática de usar o
mesmo vocábulo para denominar coisas completamente diferentes. Feito este
preâmbulo, segue a reprodução da crônica de Luana Génot, pois ela precisa muito
ser espalhada.
Empreen...
quê?
"Certa vez,
no ônibus que peguei, um vendedor fez sinal e o motorista abriu a porta
traseira do veículo para ele entrar. "Olha a bala, olha a bala, um saco é
dois, três por cinco reais, quem vai querer?", gritava o ambulante. O
senhor engravatado que estava ao meu lado levantou a mão. O baleiro, então,
veio em nossa direção. Percebi que ele estava com uma nota de dez e, quando o
vendedor foi dar o troco, disse que não precisava. "Sei bem o que é empreender
... Já passei por isso", contou ao vendedor, que, imediatamente,
respondeu: "Empreen... quê?"
Meu
companheiro de terno e gravata no busão puxou papo comigo e até me ofereceu
suas balas. Não resisti e aceitei. Me contou que trabalhava em uma
multinacional de carros há 25 anos e tinha 52, mas estava insatisfeito e
cansado. Disse admirar muito pessoas que têm coragem de empreender, como o
baleiro. Afinal, na sua adolescência, para fazer render mais sua mesada, vendia
chocolates na sua escola particular.
O dinheiro
dado pelos pais, que chamou de seu primeiro seed
investment (investimento semente), também o ajudava a comprar mais insumos
para sua produção, o que o ensinou a ser independente e responsável. Também
reforçou que os chocolates eram tão gostosos que, rapidamente, ganharam fama na
escola e o ajudaram a conquistar as primeiras namoradas. A demanda aumentou e a
"brincadeira" ficou tão séria que ele teve de chamar colegas de turma
para trabalhar. Os professores, inclusive, o ajudaram a fazer um planejamento
estratégico.
O negócio
prosperou e lhe rendeu dinheiro para um intercâmbio internacional e a compra de
um carro. Seu tio já estava até disposto a emprestar uma sala para tocar a
empresa. Mas, infelizmente, os amigos que contratou não entregavam os pedidos
como combinado. A verdade é que ele não era tão bom gestor de pessoas na época
e o negócio acabou quebrando.
Mais
tarde, durante a faculdade, os pais o pressionaram a ter um emprego formal. Foi
daí que, acatando a vontade alheia, "casou-se" com a empresa onde
está e de lá não saiu mais ... Quem sabe, no entanto, este não seria o momento
de utilizar seus investimentos acumulados após anos de trabalho e sair da
monotonia para abrir um novo negócio? Não por acaso, ele estava com uma revista
no colo com homens brancos na capa que falava sobre startups. Estava tentando se inspirar sobre que rumo tomar.
Papo vai,
papo vem, decidi perguntar: "Apesar dos esforços aplicados em ambos os
casos, como poderíamos comparar um empreendimento de chocolates feito com o
propósito de gerar renda extra (com suporte financeiro, estrutural e capital
social) com o negócio de um vendedor de balas que conta com cada centavo extra
e favores dos outros para sobreviver?".
Moral da
história não tão doce quanto as guloseimas do ambulante: Empreen... quê? Abrir
um negócio tendo estrutura e suporte para isso é privilégio. Portanto, que tal
deixarmos de romantizar o empreendedorismo como se todo negócio pudesse ser uma
opção profissional para todo mundo? Empreender, é bom lembrar, é diferente de
sobreviver.
Como poderíamos comparar um empreendimento de
chocolates (com suporte financeiro, estrutural e capital social) com o negócio
de um vendedor de balas?
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"Como
poderíamos comparar um empreendimento de chocolates feito com o propósito de
gerar renda extra (com suporte financeiro, estrutural e capital social) com o
negócio de um vendedor de balas que conta com cada centavo extra e favores dos
outros para sobreviver?", indaga Luana Génot. Será que chamar de
empreendedorismo as duas atividades comparadas caracteriza o uso de uma
linguagem não correta?
"- Se a linguagem não for correta, o que se diz não
é o que se pretende dizer; se o que se diz não é o que se pretende dizer, o que
deve ser feito deixa de ser feito; se o que deve ser feito deixa de ser feito,
a moral e as artes decaem, a Justiça se desbarata; se a Justiça se desbarata,
as pessoas ficam entregues ao desamparo e a confusão."
Se as palavras do parágrafo
anterior - atribuídas a Confúcio - são, realmente, dele é algo que ninguém pode
nos garantir. Se, independentemente de quem sejam, elas fazem sentido, nestes
tempos de "desamparo e confusão", é algo que, no meu entender,
ninguém precisa nos garantir. Por quê? Porque para nelas enxergar sentido creio
que basta refletir sobre as palavras de Luana Génot em sua excelente crônica.
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