quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

A utopia da desconexão

"Quando me dizem 'você é um utópico', digo: 'a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual'."
(Slavoj Zizek [1949 – ....], filósofo esloveno)
Após uma postagem dizendo que a proteção dos relacionamentos é a prioridade esquecida, segue uma dizendo que a desconexão é uma utopia. O que uma tem a ver com a outra quem se dispuser a ler esta saberá, acreditem.
O texto apresentado a seguir foi publicado na edição de 11 de novembro de 2019 do jornal O Folha de S.Paulo na coluna de Ronaldo Lemos, advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
A utopia da desconexão
Esteve no Brasil na semana passada o escritor Yuval Noah Harari, conhecido mundialmente por seus livros "Sapiens" e "Homo Deus". Tive a oportunidade de conversar com ele em três eventos distintos, incluindo um realizado no Congresso Nacional, com presença massiva de parlamentares. Em uma das conversas, ele confessou que "não tem smartphone".
Essa revelação leva a pensar o que significa no mundo de hoje – para quem tem condições de pagar por conexão – não ter um smartphone.
Uma resposta a essa indagação pode ser encontrada involuntariamente no documentário sobre a vida de Bill Gates, recentemente lançado na Netflix ("O Código Bill Gates"). O documentário é interessante. No entanto o que mais me chamou a atenção é o fato de que Gates vive praticamente desconectado. Ele lê livros em papel (muitos!) e dá a impressão de que raramente chega perto de um computador ou de um smartphone.
Isso ilustra o fato de que no mundo de hoje talvez seja preciso ser um bilionário do nível de Bill Gates para se dar ao luxo de não ter um smartphone.
Como disse Harari quando perguntei sobre isso: "O maior símbolo de status no mundo de hoje é a desconexão. Se você tem um smartphone, significa que você tem um chefe. Pode ser seu marido, seus filhos ou colegas de trabalho. Podem ser também os próprios aplicativos. Por meio do aparelho você está condicionado a ser acionado por alguém a qualquer momento".
Harari diz que, apesar de não ter smartphone, seu marido tem. E isso o protege das infinitas demandas que vêm através do aparelho, segundo ele "abrindo tempo para que ele possa pensar e escrever".
Perguntei também o que ele recomendaria nesse contexto de overdose de informação. Sua resposta foi justamente a importância de buscar proteger espaços de desconexão. Criar "santuários" mentais. Momentos em que temos autonomia e tranquilidade para deixar a mente livre.
Esse é, aliás, um dos principais pontos enfatizados por Harari. A humanidade nos últimos séculos teve um progresso imenso na área de saúde, com a invenção das vacinas e dos antibióticos e avanços em medicina e prevenção. Não por acaso a expectativa de vida era de 49 anos nos Estados Unidos no início do século 20 e hoje é de 78 anos.
O problema é que, se avançamos em saúde física, em saúde mental não se pode dizer o mesmo. Especialmente por causa da velocidade da mudança atual, casos de ansiedade ou depressão estão se tornando cada vez mais visíveis.
Harari lida com isso meditando duas horas por dia, além de partir uma vez por ano para um retiro isolado de ao menos um mês. Soluções que usualmente não são acessíveis à maioria das pessoas.
No mundo em desenvolvimento, a situação é ainda mais paradoxal. Há ao mesmo tempo o desafio de conectar os desconectados e de reparar os excessos da ultraconexão. Tarefa cada vez mais difícil em um mundo em que a sobrevivência depende cada vez mais de estar conectado o tempo todo.
No Brasil conheço apenas uma pessoa que, tendo dinheiro, optou por não ter smartphone. E você, quantas pessoas conhece?
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"O maior símbolo de status no mundo de hoje é a desconexão. Se você tem um smartphone, significa que você tem um chefe. Pode ser seu marido, seus filhos ou colegas de trabalho. Podem ser também os próprios aplicativos. Por meio do aparelho você está condicionado a ser acionado por alguém a qualquer momento", eis a resposta de Yuval Harari a Ronaldo Lemos ao ser perguntado sobre a necessidade de ser um bilionário para se dar ao luxo de não ter um smartphone.
Perguntado sobre "o que recomendaria no contexto de overdose de informação" em que hoje se vive a resposta de Harari foi: "Justamente a importância de buscar proteger espaços de desconexão. Criar 'santuários' mentais. Momentos em que temos autonomia e tranquilidade para deixar a mente livre.".
Resposta que me faz lembrar algo dito por Viktor Frankl (1905 – 1997), médico psiquiatra austríaco que sobreviveu aos campos de concentração e criou a que ficou conhecida como a terceira escola vienense de psicoterapia: a logoterapia. As anteriores são as de Sigmund Freud e de Alfred Adler. Em uma tradução literal, logoterapia significa terapia através do sentido. O que disse Frankl? "O homem precisa de uma porção de deserto para reencontrar a si mesmo."
Harari fala "da importância de buscar proteger espaços de desconexão"; Frankl fala em "precisar de uma porção de deserto para reencontrar a si mesmo." Será que faz sentido concluir que para reencontrar a si mesmo é imprescindível a desconexão? Será que faz sentido afirmar que uma consequência imediata da conexão com tudo e todos é a desconexão consigo mesmo? Será que faz sentido apontar a desconexão consigo mesmo como um dos fatores desencadeadores dos problemas de saúde mental citados por Harari? Será que faz sentido ler a 13ª postagem deste blog publicada em 14 de março de 2011 sob o título Sede de Sentido?
Segundo Harari, o imenso progresso alcançado pela humanidade em termos de saúde física não foi acompanhado pela saúde mental. "Especialmente por causa da velocidade da mudança atual, casos de ansiedade ou depressão estão se tornando cada vez mais visíveis." Como Harari lida com isso? "Meditando duas horas por dia, além de partir uma vez por ano para um retiro isolado de ao menos um mês.". O que Lemos acha do que faz Harari? Que são "Soluções que usualmente não são acessíveis à maioria das pessoas." Por quê? Porque, segundo ele, "No mundo em desenvolvimento, a situação é ainda mais paradoxal. Há ao mesmo tempo o desafio de conectar os desconectados e de reparar os excessos da ultraconexão. Tarefa cada vez mais difícil em um mundo em que a sobrevivência depende cada vez mais de estar conectado o tempo todo." Dito isto, seguem duas indagações.
Será que a possibilidade de "meditar duas horas por dia, além de partir uma vez por ano para um retiro isolado de ao menos um mês" restringe-se, realmente, aos bilionários? Será que muitos não bilionários poderiam trocar duas horas gastas diariamente em redes sociais (sic) por algum tempo de meditação? Será que muitos não bilionários poderiam trocar sua viagem de férias para lugares agitados onde procuram fugir de si mesmos por um retiro isolado onde poderiam reencontrar a si mesmos?
Nossa! Que postagem difícil de terminar! São tantas reflexões! Será que voltar ao início ajudará a terminá-la? "Após uma postagem dizendo que a proteção dos relacionamentos é a prioridade esquecida, segue uma dizendo que a desconexão é uma utopia. O que uma tem a ver com a outra quem se dispuser a ler esta saberá, acreditem.", eis a primeira frase desta postagem. Será que alguém discorda da afirmação de que as duas postagens têm alguma relação? Será que a "proteção dos relacionamentos" (citada na postagem anterior) que tem alguma coisa a ver com a "reparação dos excessos da ultraconexão" (citada nesta)?
"No Brasil conheço apenas uma pessoa que, tendo dinheiro, optou por não ter smartphone. E você, quantas pessoas conhece?", eis a frase final do texto de Ronaldo Lemos. Se Ronaldo Lemos me conhecesse dobraria essa quantidade. E você, quantas pessoas conhece?
A utopia da desconexão, eis o título do excelente texto de Ronaldo Lemos. A utopia ou a morte, eis o livro de René Dumont que me vem à mente quando vejo coisas imprescindíveis serem consideradas utopias.
A utopia ou a morte, eis uma escolha. "A vida é feita de escolhas", eis uma frase que já lemos e ouvimos inúmeras vezes. Escolhas feitas de forma consciente ou inconsciente, mas escolhas. Escolhas que muitas vezes serão difíceis, pois como diz Dumbledore, o mago barbudo do filme Harry Potter e o Cálice de Fogo: "Tempos difíceis estão por vir. Em breve, teremos que escolher entre o que é certo e o que é fácil.". Ou, dito de outra forma, entre utopias e coisas com as quais nos acostumamos. Ditas em um filme lançado em 2005, no meu entender, as sábias palavras do mago precisam ser atualizadas. Não, os tempos difíceis não estão por vir, eles já estão aqui. Sim, o tempo em que "teremos que de escolher entre o que é certo e o que é fácil.", já chegou. E classificar o que é certo como utopia é algo que, no meu entender, jamais vai prestar.
"Quando me dizem 'você é um utópico', digo: 'a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual'.", diz Slavoj Zizek. Sem qualquer solicitação de permissão para fazê-lo, a quem me disser que sou um utópico procurarei repetir as palavras do filósofo esloveno.

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